José Mário Branco é um dos nomes da programação da terceira edição do MIL - Lisbon International Music Network, festival focado na divulgação e internacionalização da nova música atual produzida não só em Portugal, mas nos países de língua oficial portuguesa. O músico dará a única keynote interview nacional, esta quarta-feira, 27 de março, no Palacete dos Marqueses de Pombal, no Cais no Sodré.
Embalada pelo compasso de um relógio de parede e com as devidas pausas para o cigarro, esta é uma entrevista feita na casa do cantautor, no final de 2018, e que agora publicamos.
Uma conversa sobre música, sobre a falta de motivos para a voltar a fazer em nome próprio, sem nostalgia e com o devido sentido das palavras. Uma conversa sobre política, porque uma coisa leva a outra, sobre o futuro e sobre um optimismo descrente. São estas "queixinhas" de José Mário Branco, pá, e o que ele andou p'ra a elas chegar.
Reparei que faz as entrevistas sempre aqui, em sua casa. É onde se sente mais confortável?
Aqui estou concentrado a trabalhar. Não me convém nada perder tempo aí, no trânsito.
Atalhemos então. Não gosta de falar sobre si e sobre o seu trabalho? Ou isso é uma falsa perceção?
Eu gosto de falar, desde que isso sirva para alguma coisa. Falar por falar, não. Mas gosto. Não me lembro de ter recusado entrevistas. Se há algum problema, é do vosso lado.
O que é não se cumpriu nestes cinquenta anos de carreira? Se é que gosta deste termo, “carreira”.
Não gosto nem desgosto, mas não o aplico a mim. A minha relação com a música foi sempre uma relação de amantes. Não é uma relação de matrimónio, carimbada. E as coisas vão acontecendo entre dois amantes… Quando se encontram é para ser bom, não é porque tem de ser. Foi sempre uma relação muito próxima e muito apaixonada, mas também muito livre e muito solta. Se tivesse acontecido, que felizmente não aconteceu, essa amante [a música] deixar de me sustentar, como me tem sustentado ao longo deste tempo... Praticamente desde que me dediquei só à música e deixei os outros empregos que tive, ainda em Paris no exílio... Não tinha qualquer problema em voltar para um emprego qualquer para sobreviver... Mas a gaja paga-me renda, a gaja paga-me o carro, enche-me o frigorífico…
Mas a gaja paga-me renda, a gaja paga-me o carro, enche-me o frigorífico…
Pegando nessa metáfora, em que fase dessa relação estão agora?
A relação agora... Vai mudando conforme o quotidiano, o enquadramento social e o mundo em que a gente vive.
Por ter mais experiência também tenho mais vontade de fazer coisas diferentes. Na maneira como entrei nas canções, sempre tive um lado muito polivalente. Não só em fazer umas canções e depois ir cantá-las às pessoas, mas também de ligar a música com o teatro e com o cinema, trabalhar na música dos outros como produtor ou orquestrador, dirigir outros cantores… Sempre houve aqui uma grande polivalência. O que foi uma grande ajuda e outra consequência dessa relação de amantes. Essa coisa do 'nunca farei música que não goste' não é um princípio. Não tem nada a ver com uma decisão minha. Não sou é mesmo capaz.
No disco “Canções Escolhidas”, editado no final de 2018, assina um texto que termina com a seguinte frase: “Desde 1971, data do primeiro álbum, e 2004, data do mais recente, o mundo não parou de mudar. E eu mudei com ele. As canções também”. Mudou de que forma? A mesma pergunta para as canções.
Na leitura das coisas. O verbo "mudar" não tem a ver com mudar de valores ou mudar de motivações. É mudar, evoluir. A vida da gente é muito marcada pelo que acontece no mundo fora, não é? Pelo menos a minha é, eu tenho consciência disso. E o mundo, de facto, está muito diferente do que era há cinquenta anos ou há trinta anos. Isto evoluiu muito, mudou muito…
Para melhor?
Nalgumas coisas para melhor. Em muitas coisas para muito pior.
E que coisas são essas?
A desgraça que vai pelo mundo fora. Há um retrocesso enorme em relação às questões da liberdade, do progresso e do bem-estar. Pensávamos que depois da Segunda Guerra Mundial que o Estado Social era uma coisa garantida. Os pais foram-se habituando a que os filhos fossem a estar melhor na vida do que eles, e agora é o contrário. Os pais estão a verificar que os filhos vão ter uma vida pior que a deles próprios. Isso é resultado de um retrocesso enorme. Podíamos ficar aqui a falar da evolução do capitalismo e da lutas de classes pelo mundo fora. Embora eu mantenha um certo otimismo transcendente ao pensar que a humanidade vai continuar o seu caminho, desde que levantou as patas do chão, também tenho a noção de que vai haver muita dor, muito sofrimento, muita desgraça pelo mundo fora. Devido a este imenso retrocesso que está a haver nas condições de trabalho, quase à século XIX. Esta asiatização das relações de trabalho no mundo ocidental, e não só. Vai haver muita lágrima para chorar. E vai haver muita revolta, muita morte, muito horror por aí fora.
Os grandes grupos financeiros são quem já manda no mundo, os Governos já são empregados deles. Por mais que a gente os eleja e vá lá pôr o voto como quem vai à comunhão, essa democracia é puramente formal
E como é que se pode evitar isso?
Evitar?
Ou é inevitável?
[Esse cenário] é uma consequência inevitável da situação, não é? Não sou nenhum especialista em política, tento ler algumas coisas para ver se percebo o que está a acontecer no mundo. O sistema evoluiu para aí, evoluiu para uma coisa que ultrapassa muito o curto prazo e a curta distância. E há uma contradição enorme que tem resultados terríveis entre, por um lado, a globalização do capital no mundo todo, e, por outro lado, a reação identitária que há perante essa globalização. É a tendência natural da globalização, feita desta forma, pelo capitalismo. Os grandes grupos financeiros são quem já manda no mundo, os Governos já são empregados deles. Por mais que a gente os eleja e vá lá pôr o voto como quem vai à comunhão, essa democracia é puramente formal. O poder real está, em todo lado, no mundo da finança e dos grandes grupos económicos. Com os olhos no êxito da China, que é um capitalismo super desenvolvido, em que os direitos laborais são zero, em situação de ditadura unipartidária... O capitalismo achou graça e disse: 'olha, é uma boa maneira de trabalhar. Os gajos estão a ter resultados, vamos fazer o mesmo'. O que está acontecer agora no mundo ocidental é isso. Agora, vai haver a possibilidade de transformar isto numa luta a nível planetário entre exploradores e explorados? Vai ser um processo longo e muito doloroso. Não vai ser nada fácil. O que é que há a fazer para isso? Quem tem fome e quem não tem nada a perder perceberá o que há a fazer. E são engraçadas estas revoltas de classe média que estão a acontecer. Porque, pelos vistos, a classe média tem qualquer coisa a perder e não se conforma com isso. De facto a miséria, a miséria mesmo, nunca foi politicamente motivadora. Pelo contrário. Não se pode ir ao Chade ou aquelas zonas onde as crianças morrem de inanição e dizer "revolta-te". Não faz sentido, não há força sequer para a revolta.
Dizia numa entrevista recente que é hoje mais subversivo, mas não desenvolveu essa ideia…
Houve toda uma fase da minha vida em que os valores estavam lá, mas o que sobressaía era o discurso sobre os valores. Não quer dizer que fosse menos sincero ou menos assumido, mas havia um discurso, uma proposta qualquer, um projeto. A partir do momento em que esses projetos se esfarelaram e nós fomos forçados a perceber que não estávamos a entender bem a realidade, os valores ficaram na mesma e a crítica sobre a sociedade, sobre as artes, sobre o pensamento moderno, fez como que eu me radicalizasse. Não me interesso tanto na forma de promover os valores mas interesso-me em ver como é que eles são tratados no plano cultural, social, político ou até científico. É nesse sentido que posso dizer que estou mais subversivo agora, no sentido em que estou mais radicalizado, sem capacidade para compromissos de classe.
Isto é típico de um gajo da cultura ou das artes. Porque a política é sempre uma negociação e um jogo de poderes. E eu nunca tive muito jeito para isso. A aplicação desses valores numa nova circunstância é mais subversiva no sentido em que vai mais à raiz das questões que se colocam no mundo de agora. Eu continuo a achar que o motor que comanda isto tudo é a luta de classes, a exploração do homem pelo homem. Repare, o que a gente vive hoje é como reviver uma discussão que havia quase no fim do século XIX. A social democracia faliu completamente. Completamente. Aquela ideia do social democrata, do homem que é favor do capitalismo, mas acha que uma parte da riqueza, importante, deve ser gasta a criar o bem-estar das pessoas e da força de trabalho, para ela se sentir bem e para ir trabalhar com alegria e se deixar explorar mansamente... Essa social democracia faliu inteiramente, pá. Sobretudo nos países onde o capitalismo está mais desenvolvido.
A humanidade tem de pensar como é que se resolve este problema de vez. Não é cá com outra cantiguinha qualquer. É o sonho do Antero de Quental: "Não disputéis, curvado o corpo todo, as migalhas do banquete. Erguei-vos e tomai lugar à mesa". O Antero disse isto nos anos 70 do século XIX. Na altura era o sonho socialista.
A falência da social democracia e do "sonho socialista" deu espaço aos extremos?
O "sonho socialista" ainda é o mesmo. Para já, há aqui um problema: a gente perde palavras. Se começarmos agora aqui a falar de socialismo, de comunismo ou até de cristianismo vamos ficar à rasca porque não sabemos o que é que isso quer dizer, porque alguém se apropriou dessas palavras num sentido que não é de forma nenhuma aquele que eu lhe dou. Um amigo meu dizia: "Zé Mário, tu convence-te de que a gente perde palavras". Outro amigo, da UDP, durante o PREC, o António Rocha, foi mandado pelo partido fazer trabalho político em Trás-os-Montes, que era naquela altura uma região do país muito atrasada, muito controlada pelos padres e pelos caciques. Mas interessava que ele fosse lá fazer alguns contactos e ver se conseguia algumas simpatias. Então ele foi, com todo o cuidado, para uma aldeia e fez o que faziam os clandestinos do PCP antigamente: ir para a tasca conversar com os velhotes. Ao fim de muito tempo de conversa lá se arriscou a introduzir a palavra democracia e a palavra ditadura, e a diferença entre elas. E os velhotes achavam aquilo bem... Depois, ao fim de mais uma hora de conversa, é que introduziu a palavra socialismo e eles acharam ótimo. Já para a noite, com mais uns copos, lá conseguiu falar de comunismo. Foi um dia inteiro de trabalho, ali com os velhotes à conversa. Não podia ser à bruta ou corriam com ele. E há um velhote que se virou para ele e diz: "isso que você chamou de comunismo é assim que a vida devia ser, a malta organizada devia ser assim. Acho que aqui, na nossa terra, isso funcionava perfeitamente. Há só uma coisa que não percebo, porque é que nas coisas tão bonitas vocês colocam nomes tão feios". Nós perdemos palavras, conceitos, ideias. De cada vez que veem estes assuntos à baila, tenho de fazer a mesma coisa que fiz agora. Explicar que é a mesma coisa, mas que não se deixem enganar pela palavra que agora já não quer dizer o mesmo para a generalidade das pessoas. As ideias de base são as mesmas, agora a maneira de resolver esse problema é que tem de ser muito diferente no mundo de hoje, pá. Porque isto mudou imenso, pá.
Também perdemos a "esquerda" e a "direita"?
Acho que não se perdeu nada, continua a haver a exploração do homem pelo homem. Tendencialmente a esquerda é a favor do progresso e a favor de quem trabalha, dos mais pobres, é contra as injustiças sociais, como a acumulação de riqueza por poucos.
Mas nascem outras palavras, como "geringonça".
Há a mania de dizer que foi o Paulo Portas que inventou. Não foi nada, foi o Vasquinho Pulido Valente. Ele é que inventou isso. A Geringonça é uma coisa improvável porque eles nunca esperaram que os partidos ditos de esquerda fossem ajudar o PS a continuar a austeridade num clima de paz social. "Não disputeis, curvado o corpo todo, as migalhas do banquete". Portanto, decidiram espalhar umas migalhas pela malta e a austeridade continuou, déficit zero continuou, pagar ao FMI continuou. Tudo isso continuou com a ajuda dessa Geringonça muito útil à classe dominante.
E em relação à classe trabalhadora?
Ajudou um bocadinho a viver um pouco menos mal. Tudo bem, eu dou valor a isso. Não estou a dizer que não. É melhor isso do que o outro que lá estava. Agora, resolve os problemas sociais? Não. Claro que não, nem foi feito para isso. Foi feito para disputar "curvado o corpo todo, as migalhas do banquete".
Voltando ao disco de canções escolhidas. O que junta estes 16 temas? São canções que vivem com o imediato?
Um agora um bocadinho alargado. É uma escolha feita a pensar nas pessoas que me conhecem mal ou não me conhecem mesmo de todo. A ideia mais importante deste disco é: "deixa cá ver o que é que este tipo faz", "quem é?", "vamos lá ver o que é que ele anda aí a fazer". São canções que têm uma carga de atualidade bastante forte. Não é uma coletânea com aqueles critérios comerciais, do que bateu mais, do que bateu menos. Foi uma escolha feita em função dos temas que são mais atuais: a exploração, o desemprego, a condição da mulher, por aí fora. A outra que havia, a de 1999, não tinha sido escolhida por mim. Esta foi, fiz questão de ser eu. E o critério foi sobretudo esse. Claro que também há subcritérios que têm a ver com a qualidade musical, poética e com o meu gosto em relação às coisas que fiz. Fui buscar coisas que praticamente não se ouvem, como a alfabetização. Porque um dos problemas graves do nosso mundo é a desculturalização: há uma cultura de plástico. As pessoas tiram cursos superiores e até podem doutorar-se, mas continuam a fazer erros de português. Gravíssimos. O ensino todo foi sendo, nos vários escalões etários, nos últimos anos, cada vez mais orientado para a produção de mão-de-obra eficaz e rápida. Não há qualquer sentido universalista nas universidades. O ensino está ao serviço das grandes empresas...
"Do mercado de trabalho"...?
Como se o trabalho fosse uma mercadoria.
Estava a tirar um curso aos setenta anos, de Linguística [na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa], uma paixão enorme. A meio veio o processo de Bolonha e eu desinteressei-me porque o curso passou a ser um supermercado de cadeiras. As pessoas diziam "e agora vou fazer a Sintaxe IV". Mas ainda não fizeste a Sintaxe I ou a II. "Não faz mal, pá, o que é preciso é passar a cadeira". Deixou de haver turmas, ía para as aulas e não conhecia as pessoas que lá estavam. É como se for ali ao Continente, também não conheço as pessoas que estão a tirar coisas das prateleiras. Estão ali comigo, estão na mesma situação do que eu, mas não nos conhecemos. É mais uma forma de autonomização da vida quotidiana. Isto é só queixas pá...
Dizer que deixou de haver ideologias é como dizer que deixou de haver oxigénio na atmosfera. E faz parte da ideologia dominante dizer que já não há ideologias
Estive num evento onde apresentou o disco, na FNAC do Chiado. Lá disse uma frase que retive. "Vivemos sem futuro". O que queria dizer com isso?
É o que falávamos há pouco. A análise do real coexistia com um projeto para alterar esse real. Que, por sua vez, se expressava através do discurso. Era uma ideologia que tinha um projeto para o futuro. E esse projeto foi derrotado, foi eliminado do horizonte. Não foram eliminadas as causas que levaram à sua elaboração, não foi eliminada muita experiência e muito pensamento em que ele era suposto basear-se. O que houve foi um esvaziamento desse projeto. Lá está, tínhamos perdido a palavra socialismo, tínhamos perdido a palavra comunismo. Tudo isso acabou no final dos anos 90. Agora há por aí uma coisas arqueológicas, como a Coreia do Norte e não sei o quê. É isso que eu quero dizer quando digo que já não temos futuro, agora temos de construir outro futuro qualquer. Mas é completamente errado isso de se dizer que deixou de haver ideologias é como dizer que deixou de haver oxigénio na atmosfera. Qualquer organização de ideias para a construção da sociedade, para o sistema, é uma ideologia como outra qualquer. E faz parte da ideologia dominante dizer que já não há ideologias.
Os NA [Narcóticos Anónimos] têm uma coisa gira, uma regra: "um dia de cada vez". Nós estamos nessa condição: um dia de cada vez.
Dois dos temas de “Canções Escolhidas”, “Casa comigo Marta” e “Aqui dentro de casa” falam sobre a condição feminina. Interessante incluí-los agora numa altura em que se fala, cada vez mais, de feminismo, de igualdade de género e até no âmbito de movimentos como o do #MeToo. Como é que olha para isto tudo?
Sinceramente, esta sociedade, tal como está organizada, não tem qualquer hipótese de resolver esse problema. A gente ouve muita conversa, como com outros problemas como o ambiente ou da pobreza, temas importantíssimos mas que são tratados para entreter o pessoal. Não há qualquer forma de resolver esses problemas nesta sociedade. Não há. Porque se a gente pegar num qualquer desses temas, e podemos pegar no da condição da mulher, a classe dominante o que é que ela quer? Quer aplicar os seus capitais e ter o maior retorno possível. O alicerce principal da sociedade é esse. A classe dominante não tem nada contra as mulheres, só há um problemazinho: são elas que têm os filhos, são elas que engravidam e têm de cuidar dos bebés. E isso não é rentável. Eles são tão atrasados que não percebem que isso é a reprodução da mão-de-obra. O que as mulheres estão a fazer é deitar filhos para o mundo que vão ser empregados deles daqui a quinze ou vinte anos. Não percebem isso. Podíamos ter aqui uma conversa, que não vamos ter, sobre a diferença entre mais valia absoluta e mais valia relativa. As mulheres começaram a ter um papel muito mais importante nos EUA com a guerra, quando os homens tiveram de sair das fábricas e dos escritórios. Quem é que foi produzir?: as mulheres. "Tu és o herói, mas eu sou o sustento". A diferença hoje é que quanto mais difícil for de resolver esse problema, mais o discurso é a favor das mulheres. O que preciso hoje é falar muito, mentir muito. Aplicar a lição do Goebbels: uma mentira mentida muitas vezes torna-se verdade. A principal ferramenta da nossa época é a mentira.
O que preciso hoje é falar muito, mentir muito. (...) A principal ferramenta da nossa época é a mentira
Diz que o seu trabalho agora é dirigir os outros. É nisso que está dedicado?
Tenho o luxo de ter muitas solicitações. Um colega seu, outro dia, dizia que esperava encontrar aqui, à minha porta, uma fila de pretendentes para a direção musical.
E não estão escondidos atrás da porta?
Há muitos e-mails e não sei o quê, mas eu tenho de ter alguma afinidade ou então não sou capaz.
Mas continua sem lhe apetecer escrever e fazer canções para as cantar?
Apetecer, apetece-me imenso. Mas vou falar do quê? Vou meter nas canções estas conversas? Ainda não tenho uma visão das coisas. Há um engano muito frequente de que o artista é um líder, um condutor de massas, sobretudo os cantautores. Eu não sou líder de coisa nenhuma. Fui ao longo do tempo testemunhando a vida à minha volta. E se não percebo o que se está a passar ou se não se está a passar nada, não tenho nada para falar. Portanto vou para cima do palco fazer o quê? Cantar as canções do costume, para o público do costume? Comecei-me a sentir mal. É o problema da nostalgia. Quando não há movimento social, a evocação das revoluções, das lutas do passado, a evocação mesmo da radicalidade que se pôs em prática no passado e não sei o quê. Tudo isso é nostalgia. Olha que lindo, eu vivi coisas tão lindas na minha vida. E agora? Não sei. Por isso comecei a não me sentir bem em palco e decidi parar.
Portanto vou para cima do palco fazer o quê? Cantar as canções do costume, para o público do costume? Cantar as canções do costume, para o público do costume? Comecei-me a sentir mal.
Dizia o mesmo público de sempre. Não sente que houve uma renovação de gerações que ouvem a sua música?
Sim, e quem trata disso são os pais. Está nos discos. Se eu tivesse, agora, uma série de cantigas onde se percebe melhor o que está a acontecer, não me importava nada de voltar a cantar a "Queixa" ou a "Inquietação". O "FMI" deixei de cantar quando a catarse foi feita. E é um exemplo giro, porque para mim é uma coisa muito daquele tempo e as gerações novas foram pegando nela. Agora tenho é de ter um substrato qualquer em que perceba e veja melhor o que está a acontecer. Não basta uma greve de estivadores durante dois meses para dizer 'ah, isto está a acontecer'. Ou uma greve de enfermeiros desencadeada pelo PSD, não é? Isso não me interessa muito. Tenho um profundo desprezo por esse simulacro de sindicalismo, essa instrumentalidade dos movimentos laborais. Não tenho qualquer respeito por isso.
Mas isto vai-me sair. As canções novas vão-me sair e vão sair olhares para a realidade. Nós somos testemunhos das coisas, se não há coisas a acontecer... Quer dizer, há coisas horríveis a acontecer, mas eu ainda não percebi bem o que querem dizer e porque as são. É uma sensação estranha esta.
Nunca a tinha vivido antes?
Não, isto é novo. Eu cresci muito agarrado ao Cristianismo e com uma infância muito triste de pais zangados. Cresci numa família desunida, infeliz, pesada... Pessoas excelentes, tanto o pai como a mãe e irmãos. Mas agarrei-me muito a valores do Cristianismo puro e duro. Depois saltei para outros valores, como os da revolução. E tenho passado a vida toda à procura desses valores. Havia sempre um futuro e um projeto. Agora não estou a ver isso. E não é da idade, porque estou muito bem. Até tenho mais uns motivos suplementares para querer puxar pela coisa. Tenho muitos netos e três bisnetos. Há aqui um lado em que, naturalmente, o fim da minha vida vai-se aproximando e eu tenho uma forte consciência de que a aceitação da morte consiste em deixar coisas para os outros. Essa é a única maneira de vencer a morte, dar e receber.
Apetece-me de facto, mas estou na situação já referida e que é de facto nova. Terá a ver com essa grande mentira em que a gente vive? Eu nasci e cresci no fascismo, uma papa cinzenta e deprimente. Mas a partir de muito cedo a minha vida foi uma luta pela liberdade, nas mais pequeninas coisas: na maneira de vestir, na relação com os professores, com a família. Não tem mérito, porque era a vida da malta. E isto agora é uma papa, já não é cinzenta, é multicor, mas também é uma papa de mentira que envolve a nossa vida toda e o discurso das coisas. Restam-nos os livros, os filmes bons e algumas pessoas, poucas, que resistem a isso.
Tínhamos paixões quando éramos novos. O que a gente inventava era carne viva. Agora não, têm um projeto. Já não há paixões, há projetos
E a música, aquela que se faz hoje?
É muito má. Em geral é muito fraca. Não é só a música, o problema é a desculturalização que existe. A deseducação do gosto, um projeto levado muito a sério pela classe dominante, a partir da década de sessenta e setenta com o pós-modernismo. A gente quando se exprime, normalmente o que está em causa não é a sinceridade da pessoa que se exprime, o que está em causa é o que é que ela dispõe para se exprimir. Qual é o seu léxico. Assim como há um léxico para a conversa ou para ler um livro, talvez até noutra língua, também há um léxico para música. A malta mais nova, às vezes até muito nova, exprime-se através da música mas o léxico que eles têm é paupérrimo. Parece linguagem de telemóvel. Repetem os clichés que já estão feitos e há uma perda de contacto com o léxico expressivo e uma deseducação do gosto. Porque quando fazemos arte procuramos a beleza. A estética enquanto busca da beleza implica a educação do gosto, depois há a questão da técnica. Isto é, conhecer a matéria sobre a qual se está a trabalhar, apurar as ferramentas para trabalhar. E depois há ainda a ética, o ato criativo enquanto relação com a comunidade. O pós-modernismo veio dizer que na criação artística não tem de estar relacionado com a ética. Há livros e livros a explicar isso, que o artista quando produz a obra não tem de dar satisfações a ninguém. A obra só existe quando é partilhada. Se eu não quero cantar a canção para ninguém, a obra não existe. O que o Pedro Osório chamava de gaveta. Fazer para a gaveta significa que essas obras não existem. Existem quando são partilhadas, ou diretamente, em cima do palco, ou então através de fonogramas. Esta malta mais nova, também não tem isto. Nós tínhamos paixões quando éramos novos: 'inventei aqui isto, vou experimentar cantar isto hoje em público'. O que a gente inventava era carne viva. Agora não, têm um projeto. Já não há paixões, há projetos.
Chegaram ao fim as queixinhas.
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