“É bater à porta. A casa vai estar sempre aberta. Se a porta estiver fechada será porque está vento, ou chuva ou estamos lá para o fundo, mas a ideia é estarmos sempre abertos para quem nos quiser visitar. Amigos, vizinhos, artistas, quem for”, garantiu a criadora artística da Cassandra, a atriz, encenadora e autora Sara Barros Leitão, em declarações à agência Lusa.

A porta do número 118 da Avenida Camilo, mesmo em frente ao 'liceu' Alexandre Herculano, é de madeira, larga, desdobra-se em três e satisfaz a curiosidade de quem passa. Para lá da ombreira da porta, um chão em cimento e paredes altas recebem quem entra e, logo depois do primeiro ou segundo passo, à esquerda, estão os painéis com os 82 Lenços do Amor.

A Cassandra foi ali parar com a água da chuva. A também atriz explicou que a Cassandra acontecia numa cave no Campo 24 de Agosto, também no Porto, que com a chuvada do inicio de janeiro ficou inundada. Aquela porta 118 era para ser o “local provisório” para secar as galochas.

“Quando abrimos a porta soubemos que a nossa história ia mudar, porque tudo muda a partir do momento em que temos um espaço com uma porta virada para a rua, com tanta a gente a passar, em frente a um liceu, por baixo de um infantário e com a capacidade de recebermos amigos e vizinhos, essa dinâmica é extraordinária”, explicou.

A porta do número 118 da Avenida Camilo abre com uma exposição com “todo o significado” para a Cassandra, "Lenços de amor - Séculos de poesia bordada no feminino", da artista Sara Duarte Brandão.

“É um trabalho que fiz para o Mestrado, em que tinha que trabalhar uma obra de literatura feminina de autoras portuguesas. Sempre gostei dos tradicionais lenços dos namorados, que são muito mais antigos do que se pensa, recuam ao século XVII, às mulheres do povo que imitavam as aristocratas nos bordados mas que eram analfabetas”, explicou à Lusa Sara, a desenhadora.

“Estes lenços são obras literárias que não são citadas na literatura portuguesa, um sinal de afirmação feminina; [são] criados por mulheres do povo e que vão muito além do lenço que hoje conhecemos, uma imagem apropriada no Estado Novo”, disse, explicando que a exposição é também uma “reivindicação” por aquelas obras não estarem acessíveis.

Os 82 desenhos são retratos dos lenços originais, propriedade do Museu de Etnologia e de Arte Popular, e estão arquivados no Museu Nacional do Traje, ambos em Lisboa: “Para os ver é preciso pedir, não se podem fotografar, o acesso não é fácil e para usar as fotografias disponibilizadas é preciso pagar valores que não fazem sentido. A minha solução foi desenhá-los numa tentativa de reivindicação de mostrar o que não é acessível a qualquer pessoa”, explicou Sara Duarte Brandão.

Para a Cassandra fazia “todo o sentido” abrir a nova porta com aqueles desenhos: “Respondemos ao 'email' da Sara e convidámo-la para ser o nosso primeiro momento. Ela veio tirar o primeiro café que conseguimos tirar na nossa máquina aqui”, contou Sara Barros Leitão.

Além da exposição, o novo espaço daquela estrutura artística vai receber, no primeiro dia de porta aberta, a encenadora e atriz Cátia Terrinca, para uma sessão de teatro radiofónico gravado ao vivo, no contexto do "Mil e Uma Noites", um projeto de mapeamento de mulheres do século XX a partir de fragmentos literários.

“É isto que queremos que este espaço seja. O nosso local de criação, a nossa sala de estar, de visitas. Vamos ter uma biblioteca no vão da escada. Já escrevemos à vizinhança a dizer que não temos pé de salsa para trocar mas temos exposições e braços abertos”, garantiu Sara Barros Leitão.

A Cassandra foi fundada em 2020, recebeu o nome da mulher que Apolo amaldiçoou por ter recusado a sua sedução, tornando-a capaz de prever o futuro sem que ninguém acreditasse nela, e assume-se como uma estrutura de criação original de espetáculos e projetos multidisciplinares de desenvolvimento de públicos.

A primeira criação da Cassandra, "Monólogo de uma mulher chamada Maria com a sua patroa", estreou-se em 2021, e continua em cena pelo país e além-fronteiras. A peça parte no domingo para o Uruguai, com espetáculos já agendados para 2024.

Outro marco da Cassandra são as "Heróides", conversas à volta de livros, “um clube do livro feminista” que junta mais de 300 pessoas em sessões 'online' mas que tem também vindo a percorrer o pais com sessões presenciais.

A nova 'previsão' da Cassandra está a crescer pelas paredes ao fundo do mundo a que a porta 118 dá acesso: uma “história de um país possível”, para já só retratado em ‘post its’ coloridos organizados pela cronologia dos Presidentes da República do pós-25 de Abril.

A porta 118 da Avenida Camilo abre hoje oficialmente às 18:00.

“Por favor tragam os copos, é o que estamos a pedir, não temos suficientes, queremos receber bem quem quiser cá vir”, pediu Sara Barros Leitão.