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Bebé
Sceaux, arredores de Paris, 8 de outubro de 1926
O ar é suave, nem uma brisa se levanta. No muro do cemitério, um melro entoa a sua canção crepuscular, e ouve‐se, vindo ali de perto, o choramingar de uma criança. As sombras dos ciprestes já estão tão longas que quase chegam ao muro, e as do rododendro cobrem já a campa, em frente à qual está uma mulher baixa de cabelo grisalho. Veste um casaco escuro de verão sobre o vestido preto e traz um chapéu de tafetá.
– Tivemos muita sorte, Pierre – murmura a mulher. – Nem imaginas como o outono este ano está agradável. O sol de outubro faz tão bem à alma.
Um sorriso cansado brinca‐lhe nos lábios sem cor.
– A Irène e o Frédéric não podiam ter escolhido uma altura melhor para o grande dia.
Aqui, atrás do rododendro, está protegida dos olhares dos visitantes do cemitério, aqui pode falar sem ninguém franzir a testa de estranheza. As violetas‐dos‐alpes brancas, que cobrem a campa, estão cinzentas devido à sombra do rododendro, mas, em compensação, os botões amarelos das roseiras, que são mais altas, brilham em frente à lápide, graças a um raio de sol que conseguiu furar caminho por entre o arvoredo. Continua a ouvir‐se o choramingar da criança. Que vozinha tão débil, pensa a mulher, ainda deve ser muito pequeno.
De repente, ouve‐se um resmalhar e um rumor, como se alguém tivesse despejado uma bacia de água para o sabugueiro atrás das campas, e depois o arvoredo estremece com os trinados de um bando de pardais. Como uma rajada, as aves precipitam‐se sobre os arbustos outonais, e há agora folhas vermelhas e amarelas a cair na relva, por todo o lado. A mulher inclina a cabeça e fica algum tempo à escuta do palavreado bravio daquele bando emplumado.
Uma borboleta esvoaça ali perto, desce na direção da campa e pousa sobre um botão da roseira que se ergue à frente da lápide. – Uma borboleta‐limão! – diz a mulher. – Uma borboleta‐limão em outubro – ias gostar, Pierre!
A borboleta voa de rosa em rosa, depois esvoaça de um lado para o outro em frente aos três nomes inscritos na lápide e acaba por pousar a seguir ao nome que está mais abaixo, nos últimos dois algarismos do ano da morte. A mulher olha para ela, contempla os números visíveis, pensa naquele ano, naquele dia aziago e naquela hora amarga. A saudade fá‐la apertar o maxilar.
Mas no instante seguinte um sobressalto atravessa‐lhe o rosto fino, e endireita‐se e bate as palmas das mãos duas vezes, com força. O gorjear dos pássaros emudece, e ouve‐se um resmalhar e um rumor quando o bando de pardais deixa o sabugueiro e segue, num trinado vibrante, até ao muro. A borboleta‐limão, no entanto, permanece pousada na data da morte e abre e fecha as asas amarelas.
– Pois é, vai ser amanhã – diz a mulher de preto, e respira fundo. – É amanhã o dia, Pierre – a nossa filha mais velha vai casar. E tu não vais estar lá. – O murmúrio some‐se‐lhe nos lábios, e agora só é capaz de suspirar e sussurrar. – Eu gostava tanto que as coisas fossem diferentes.
Deixa ainda escapar um suspiro e depois começa a contar‐lhe: dos preparativos frugais dos noivos para o casamento, da pequena celebração que foi planeada para essa noite; de Irène, para quem o «grande dia» não parece nem de longe ser tão importante como para ela, sua mãe. Primeiro num sussurro, depois a murmurar, fala‐lhe por fim também do futuro genro.
– O senhor Frédéric Joliot – diz, e prolonga cada sílaba como se fosse parte do estranho nome de um novo elemento que um concorrente afirmasse ter descoberto e de cuja existência ela desconfiasse. – Frédéric – será que algum dia vou ser capaz de dirigir‐me ao senhor Joliot pelo nome próprio? Ou até de tratá‐lo por tu?
Como se escutasse uma voz longínqua, a mulher inclina a cabeça para o lado.
– Estou a ouvir‐te rir, Pierre, mas custa‐me mesmo muito. Afinal, o homem vai tirar‐me a minha melhor assistente! – Faz um gesto involuntário. – Pelo menos no laboratório, a Irène conseguiu substituir‐te até certo ponto. E o Joliot é tão... – Interrompe‐se, encolhe os ombros, procura uma palavra. – Tão pouco sério.
Ainda assim, tem de admitir, Frédéric Joliot tem toda a seriedade necessária quando se trata de trabalho.
– Nisso não fica nada atrás da Irène, isso é verdade – murmura a mulher –, nisso o rapaz é uma verdadeira explosão de dedicação e de ideias inspiradas.
Ouve bater o relógio da igreja e solta um queixume.
– Já são seis e meia? Será que eles os dois hoje vão sair à hora certa do Instituto, para irem à festa? Tenho dúvidas.
A borboleta‐limão deixa os dois últimos algarismos da data de morte e esvoaça pela noite dentro. O melro, no muro do cemitério, continua a sua canção crepuscular, a criança parou de chorar. A pequena mulher de chapéu preto e vestido preto murmura algumas ternas palavras de despedida, vira‐se e segue entre um cipreste e o rododendro, avançando pelo carreiro que leva ao caminho principal.
Vai andando, sem pressas, em direção ao portão do cemitério, onde combinou encontrar‐se às seis e quarenta e cinco com o motorista de táxi que a trouxe para Sceaux, para aquele sítio. O Sol vai pôr‐se dentro de meia hora, por isso só em algumas campas é que ainda há pessoas.
Não lhe agrada nada a perspetiva do pequeno convívio na sua casa do Quai de Béthune, porque não gosta de grandes ajuntamentos de pessoas. Mas os primeiros convidados já terão chegado há muito. A Eve trata de tudo, diz a si mesma, acalmando‐se, e pensa na filha mais nova cheia de gratidão. Pode confiar na Eve. Sempre.
De súbito, ouve chamar o seu nome.
– Boa tarde, Madame Curie! – De uma campa em cuja lápide sumptuosa se ergue um anjo de mármore, acena‐lhe uma mulher. – Como vai, Madame le Professeur? – É a viúva do recém‐falecido presidente da Câmara Municipal de Sceaux – A Irène casa amanhã, não é verdade? A Marguerite acabou de me contar!
Marguerite é a filha mais nova da viúva. Meio escondida por uma coluna com o busto de Victor Hugo, que está decorada com flores e rodeada por uma vedação de ferro forjado, a rapariga está sentada a três passos da campa do pai, num banco, e dá de mamar à filha recém‐nascida.
– Sim, é verdade. – Madame Curie fica de pé em frente à coluna. – Às dez horas na Conservatória do 4.º Bairro. Mas não vai haver uma grande festa a seguir, temos demasiado trabalho no Instituto. Vamos comemorar um pouco esta noite.
O que tem de ser, tem de ser, acrescenta ela em pensamento.
Marguerite faz‐lhe um aceno e um gesto delicado de convite para se aproximar e ver a criança. Madame Curie passa pelo monumento ao poeta e vai até ao banco, debruça‐se sobre a mãe para olhar a bebé. Com cuidado, Marguerite afasta um pouco o casaco de lã com que cobre o peito e a cabecita da menina, que está a mamar. Nas feições rosadas da criança está toda a satisfação do mundo.
– Não é linda? – sussurra Marguerite.
– Ah, sim, muito. – Madame Curie faz um sinal com a cabeça e um sorriso desliza‐lhe pelo rosto, normalmente tão sério. O seu olhar recai sobre um documento encadernado que está pousado no banco ao lado da jovem mãe – uma análise da lei do efeito fotoelétrico de Albert Einstein. Madame Curie conhece o título e o conteúdo – Marguerite estudou com ela na Sorbonne e a professora acompanhou o trabalho de investigação daquela jovem tão promissora.
– No dia 2 de novembro vou defender o meu doutoramento – diz a jovem mãe, ao aperceber‐se do olhar de Madame Curie.
– Eu sei. – Madame Curie endireita‐se. – Vai ser um dia bom para si, não tem motivos para se preocupar.
Olha de novo para a capa da tese de doutoramento e pensa em Albert Einstein, aquela alma gémea, irmão espiritual. Como ele a tratou com tanto carinho, a ela e às crianças, quando o resto do mundo se afastou e a condenou.
– Que pena que o papá já não possa assistir. – Com olhar triste, Marguerite olha na direção da campa do pai. – Ao princípio ele não queria que eu estudasse, mas depois, quando viu os meus bons resultados, houve momentos em que quase rebentou de orgulho. – Sorrindo suavemente, limpa uma lágrima do canto do olho.
– A minha Marguerite tem a agradecer‐lhe a si ter chegado tão longe, Madame le Professeur. – A viúva do presidente da câmara aproximou‐se de Madame Curie e fita‐lhe o rosto sério e pálido com uma comoção grata. – Sem o seu exemplo, ela nunca se teria atre‐ vido a ir estudar. – A mulher pousa‐lhe a mão no braço. – A senhora faz ideia da bênção que tem sido para as jovens mulheres francesas?
Madame Curie não sabe o que responder, limita‐se a sorrir com timidez e respira fundo, para se despedir.
– A mamã tem razão, Madame le Professeur – a jovem mãe volta a falar. – Muitas mulheres da minha geração só se atreveram a enveredar pelas Ciências porque a senhora nos abriu caminho. E todas as colegas que conheço a admiram. Mas seguramente foi difícil para si conseguir impor‐se aos senhores cavalheiros, não?
– Os senhores cavalheiros – murmura Madame Curie, e o sorriso fugidio que nesse momento lhe assoma ao rosto não tem nada de alegre.
– Eu li que veio ainda jovem da Polónia para Paris, para estudar na Sorbonne – continua a mãe de Marguerite. – Solteira e sem nenhuma família – com certeza não foi fácil.
Madame Curie apercebe‐se do interesse genuíno das mulheres e sente‐se tentada a contar como foi esse tempo.
– Não – diz baixinho –, não foi mesmo.
Olha pensativa para o bebé, que entretanto adormeceu, e pensa no marido morto. Onde estaria ela hoje sem Pierre? Sem o seu acompanhamento nos anos decisivos?
– Para dizer a verdade, às vezes, quando olho para trás, parece‐me um milagre o que consegui fazer. No entanto... – Vira‐se para a mãe de Marguerite. – No entanto, nessa altura não tive de me orientar em Paris sem nenhuma família. A minha irmã mais velha, a Bronia, e o marido viviam cá, e nos primeiros meses morei com eles.
– Muitas vezes me perguntei quem terá sido a figura que lhe deu coragem para seguir um caminho tão invulgar e tão difícil. – Da manga arregaçada, Marguerite puxa um lenço de seda branca bordado de azul, tira a mama à criança e limpa‐lhe os restos de leite da boca, e também do próprio peito. – Com certeza teve alguém que lhe serviu de exemplo, Madame le Professeur?
– Tive? – Madame Curie ergue os ombros num suspiro e fica com um ar um pouco perdido, pois não está preparada para este tipo de perguntas. – Talvez a diretora da minha primeira escola, Madame Sikorska. E também a minha amiga Jadviga, sim, que ainda nem tinha dezoito anos quando começou a lutar pelos direitos das mulheres. E claro, a minha tia Maria Rogowska. Ela era diferente das outras mulheres que conheci na minha juventude. Vestia calças, fumava cigarros e em vez de ficar a cozinhar e a cuidar de crianças, preferiu montar uma fábrica de móveis. Sim, talvez tenha sido o exemplo dela que me deu coragem para sonhar com uma carreira como cientista.
– Sonhar com uma coisa e concretizar um sonho são duas coisas bem diferentes – comenta a mãe de Marguerite. Pega na criança adormecida nos braços da mãe, para esta poder apertar o vestido e o casaco.
– Nisso tem razão, madame. Para sonhar, é preciso estímulos, imagens e fantasia, mas para alcançar um objetivo com que sonhámos é preciso uma enorme tenacidade e muita força. Tal como disse – quando olho para trás, às vezes nem eu percebo...
Interrompe‐se, de repente, quando o seu olhar recai sobre o lenço de seda que Marguerite estendeu no colo para dobrar – o bordado é uma mandala de miosótis entrelaçados de forma intrincada. Ao reconhecer aquelas florinhas azuis, tão inesperadas, Madame Curie é tomada por uma comoção profunda, e de repente é como se se abrisse uma janela no seu coração, uma janela para uma outra vida, um outro tempo.
– Posso ver? – Estende a mão para o lenço e a jovem mulher entrega‐lho. Madame Curie sente a seda entre os dedos e observa as flores azuis bordadas com primor. – Miosótis sobre seda branca – murmura, e abana a cabeça como se não conseguisse acreditar no que está a ver. E o que está a ver é muito mais do que o pano de seda da jovem mãe – é uma imagem que sobe dos abismos da sua memória: uma sala de aula, a irmã Helena, a amiga Kazia, um homem de uniforme, a sua professora, a menina Tupalska.
– Foi a minha irmã mais nova que me bordou o lenço e ofereceu‐mo pelo nascimento da minha filha. – A jovem mãe pega no doutoramento que está pousado no banco. – Sente‐se aqui um pouco connosco, Madame le Professeur, venha. Fico tão contente por vê‐la.
Com o lenço de seda na mão e completamente mergulhada nas imagens que lhe sobem à lembrança, Madame Curie senta‐se ao lado da sua antiga aluna. A viúva senta‐se do outro lado, com a bebé adormecida nos braços.
– Queiram desculpar‐me – Madame Curie suspira –, mas este lenço trouxe‐me recordações da minha infância em Varsóvia, do meu tempo de escola, para ser mais exata.
– Conte‐nos, por favor, madame – pede Marguerite. – Fale‐nos do seu tempo de escola, da sua diretora, da sua corajosa tia Maria e de como conseguiu concretizar os seus sonhos. Por favor.
Madame Curie olha para a esquerda e para a direita, para os rostos das duas mulheres, e a admiração e o interesse que neles vê deixam‐na embaraçada e fazem‐na hesitar. Habituou‐se a ignorar a admiração e a desconfiar do interesse das outras pessoas. Além disso, tem dificuldade em falar sobre assuntos pessoais.
– Bom, todos temos a nossa história – diz por fim, observando o bordado no lenço de seda –, e será que ela é assim tão importante como às vezes queremos acreditar?
– Mas claro que sim, Madame le Professeur! – De súbito, o olhar de Marguerite torna‐se decidido, quase suplicante, e a jovem mulher aponta para a bebé que está nos braços da avó. – Mesmo para a minha filha pequena, a minha história é importante! Sem si, Madame le Professeur, a história da mãe dela teria sido completamente diferente. Eu teria estudado, se não fosse a senhora? – Levanta o manuscrito com a análise da lei do efeito fotoelétrico de Albert Einstein.
– Alguma vez eu teria escrito este doutoramento sem a senhora? Madame Curie não sabe bem como responder.
Vê à frente a imagem da sua destemida tia Maria, e por momentos parece‐lhe sentir o cheiro dos cigarros dela. Como se fosse uma coisa preciosa e frágil, com ambas as mãos levanta um pouco o lenço de seda bordado, e surgem‐lhe diante dos olhos, tão nitidamente como se ainda ontem estivessem vivas, a mãe e a irmã, Sofia.
– Tem razão, Marguerite – acontece com as histórias das nossas vidas humanas o mesmo que com as moléculas: se as aquecermos, começam a movimentar‐se e fazem mover as moléculas próximas. Se nos deixarmos aquecer e mover pela história de uma outra pessoa, a nossa própria história move‐se possivelmente numa direção diferente, nova.
Devolve o lenço de seda à jovem mulher.
– Fiquei comovida por ver assim de repente este lenço tão bonito, Marguerite. É que a minha mãe recebeu um lenço muito parecido da minha irmã Helena, como prenda. – Os olhos de Madame Curie ficam húmidos e uma expressão sonhadora pousa‐lhe nas feições pálidas. – Ela chamava‐me «Mania» – continua, com uma voz quase ternurenta. – Toda a gente na minha família me chamava «Mania». – Deixa pender a cabeça. – Mas a imagem destas florinhas azuis sobre a seda branca não me fez pensar apenas na minha mãe, sabe? Também me levou de volta, inesperadamente, a uma sala de aula, nos meus tempos de escola.
– Parece estar a pensar num momento em especial, Madame le Professeur – diz a viúva do presidente.
– Na verdade, numa aula, muito concretamente. – Madame Curie encosta‐se para trás, cruza as mãos no regaço e dirige o olhar ao ramo de flores que a mãe de Marguerite dispôs numa jarra em cobre, na campa do marido. Sorveira e crisântemos brancos. – Deve ter sido na terceira ou na quarta classe. – Parece‐lhe ver numa das flores maiores o rosto da própria mãe, a sorrir. Inspira, defendendo‐se contra a melancolia que a acomete tantas vezes quando pensa na mãe, volta a respirar fundo, e depois começa a contar.
– Os meus pais eram professores, convém saberem, e durante muito tempo não me passou pela cabeça ser qualquer outra coisa que não fosse professora. Acho que já queria ser professora na altura em que estava sentada nessa sala de aula e a minha irmã Helena bordava as flores no tecido de seda branca. A minha irmã Helena, a quem ainda hoje chamo Hela.
– E tornou‐se mesmo professora – Marguerite inclina‐se e toca‐lhe no ombro –, tornou‐se a minha professora.
– É verdade. – Madame Curie sorri, como se aquela ideia fosse nova para si e lhe desse alegria. – Há uma coisa que é importante as senhoras saberem – continua –, eu cresci numa zona da Polónia que era governada pelos russos. Lá, as mulheres não tinham qualquer perspetiva de vir a ter uma educação superior. Na escola, nós, os polacos, nem podíamos falar a nossa língua materna. Ai do professor ou da professora que nos ensinasse em polaco! Não foram poucos os que, apesar desta proibição, arriscaram e acabaram por passar os seus melhores anos num campo de trabalho na Sibéria...
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