Do Salazar paternalista aos presidentes da participação ativa, aquilo que o Palácio de Belém tem dito nos últimos cem anos passou por várias mudanças. Investigadoras da Universidade do Minho analisaram essas alterações e concluíram que os discursos dos presidentes da República estão cada vez menos paternalistas.
Muda o presidente, muda a forma como se fala aos portugueses. Os discursos - de tomada de posse dos 28 presidentes, as suas mensagens de Natal, as mensagens de ano novo, discursos do 10 de junho ou 25 de Abril - sofreram alterações, e se no passado havia paternalismo, hoje o foco está no apelo ao envolvimento dos cidadãos.
“A construção da imagem presidencial paternalista e passiva no Estado Novo, muito cara a Salazar, difere da imagem presidencialista na atual democracia, que faz um apelo ao povo e à participação ativa”. A explicação é de Aldina Marques, do Centro de Estudos Humanísticos da Universidade do Minho, que lidera um estudo inédito sobre os discursos dos presidentes da República entre 1910 e 2010.
O trabalho é para o doutoramento de Micaela Aguiar e insere-se no projeto de investigação “O Discurso do Presidente. Cem anos de discursos presidenciais em Portugal”, coordenado por Aldina Marques, professora do Instituto de Letras e Ciências Humanas da Universidade do Minho.
As investigadoras debruçam-se sobre a forma como é construída a imagem dos Presidentes, e como isso mudou entre o Estado Novo e a Democracia. A análise pondera não apenas as características dos discursos proferidos nas tomadas de posse, mas também o seu tom, o tipo de argumentos utilizados e a relação que é criada por esta via entre o locutor e os destinatários.
Explica Micaela Aguiar que "o caráter mais paternalista de alguns discursos de tomada de posse se encontra ligado sobretudo ao enquadramento político-social" característico do período entre a 1.ª República e o Estado Novo. O facto é que este paternalismo "já não tem lugar após o 25 de Abril".
E mesmo já nos tempos da República pós-revolução é possível notar diferenças entre os chefes de Estado. Basta olhar para a postura de Aníbal Cavaco Silva e de Marcelo Rebelo de Sousa para que as evidências se exaltem. No atual presidente, apesar de não estar no âmbito do estudo, as investigadoras identificam uma postura mais ativa face ao antecessor: nos primeiros 100 dias de presidência, Marcelo esteve em 250 iniciativas.
No comparativo entre Belém e São Bento, Micaela Aguiar salienta que "o estatuto institucional do presidente da República, no Estado Democrático, prevê o exercício de um poder sobretudo moderador, o que se traduz num discurso conciliador e não polémico". Isto "contrasta naturalmente com a agressividade característica do discurso parlamentar”, diz a investigadora, apontando para o trabalho de Aldina Marques sobre as palavras dos deputados na Assembleia da República.
“Apesar de ser um género discursivo que prevê a agressividade, como no Regimento da Assembleia da República, alguns deputados ultrapassam esses ‘limites’, recorrendo na sua argumentação a insultos ad hominem’, refere Aldina Marques, que há mais de duas décadas se dedica ao estudo do discurso político.
Um centenário de discursos
O projeto de investigação surgiu com os cem anos de República em Portugal (1910-2010). A ideia é olhar para os discursos presidenciais e atos públicos e de celebração nacional, mas também recolher e disponibilizar os conteúdos ao público. Para isto, é necessário tempo, dinheiro e parcerias com outras ciências (como sejam as que se debruçam sobre os comportamento não verbais, ou paraverbais, isto é, aquilo que os presidentes fazem e não apenas o que dizem).
“A interdisciplinaridade é fundamental para entender a construção do discurso, as suas características e os contextos sociais e situacionais. Quantos mais nos dedicarmos, maior será a dinâmica”, diz Aldina Marques.
Para além de olhar para os discursos dos presidentes portugueses, a coordenadora do projeto não descarta também a hipótese de uma comparação transnacional entre os discursos presidenciais de Portugal e do Brasil, que de Teodoro da Fonseca a Michel Temer soma 37 presidentes da República.
E o que há a dizer das Marcelfies?
Os discursos de Marcelo Rebelo de Sousa estão fora do escopo da investigação, mas ao SAPO24 Micaela Aguiar explica que há paralelos entre o atual presidente e os anteriores, paralelos que advêm não das personalidades, mas do próprio cargo que desempenha o Presidente da República.
Ainda assim, as investigadoras identificam no último presidente da República semelhanças com o primeiro, Manuel de Arriaga, já que ambos partilham um perfil pacificador.
“Uma atitude pacificadora e conciliadora prende-se com o tipo de discurso em questão, (o discurso presidencial) e com o estatuto institucional do presidente”, disse a investigadora por e-mail. “Ou seja, esta atitude pacificadora estará mais relacionada com a imagem institucional de Presidente (aquilo que se espera de quem exerce o cargo da Presidência) do que com a imagem individual de cada presidente”, explica.
Para além disso, apesar de as questões para lá do discurso verbal não estarem no âmbito da investigação, Micaela Aguiar diz que são indissociáveis: “a construção de imagens não é um fenómeno puramente discursivo, mas multimodal (ou seja, engloba mecanismos discursivos, paraverbais e não verbais)”.
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