Em “Ode To a Nightingale”, um dos seus mais famosos poemas, John Keats sintetiza o desespero que sente por não conseguir alcançar a felicidade natural do rouxinol que canta, no seu estado de não-consciência de si próprio; enquanto humano, e enquanto romântico, Keats não consegue deixar de pensar no significado – ou falta dele – da vida em si. Só o álcool, ou quaisquer outras substâncias, seriam capazes de afastar este torpor. O poeta pensa e, como tal, ideias como a da morte ou a da velhice estarão sempre presentes, o que se traduz numa enorme angústia existencialista. E se eu fosse outra coisa?, parece indagar, uma coisa que não sofresse perante a morte, uma coisa que não soubesse sequer que a morte existe. Um rouxinol, por exemplo, preocupado apenas em cantar.

Durante alguns anos, essa foi uma das poucas preocupações de Marianne Faithfull: cantar. Desde que foi descoberta pelo produtor Andrew Loog Oldham, numa festa em honra dos Rolling Stones, que a britânica não vinha fazendo outra coisa. Começou com uma canção do próprio Oldham, composta em parceria com Mick Jagger e Keith Richards, o sucesso pop 'As Tears Go By' (de 1964). Daí, partiu para álbuns como “Marianne Faithfull” (1965), “North Country Maid” (1966) ou “Love In A Mist” (1967), até que o álcool e as drogas abateram, não a anomia, mas a sua garganta. Da magia, Faithfull caiu para o abismo. E sair dele revelava-se tarefa extremamente difícil.

Terminada a sua relação amorosa com Mick Jagger (com quem compôs 'Sister Morphine'), perdeu a custódia do seu filho com John Dunbar, ao mesmo tempo que cada vez mais se afundava na heroína e lutava contra a bulimia. Chegou a tentar suicidar-se. Uma intervenção rápida dos seus amigos, que procuraram livrá-la do vício em drogas, e do produtor Mike Leander, que tentou reavivar a sua carreira, adiaram o que parecia ser uma inevitabilidade, a morte. Na década de 70, tudo isto – e uma laringite – levaram o rouxinol Faithfull a ficar definitivamente sem a voz que a tinha caracterizado, que perdeu a melodia para ganhar uma dureza até então inexistente.

Só nos anos 80 é que a cantora se reabilitou das drogas, reabilitando por arrasto a sua carreira. Os álbuns que editou desde então podem não ser tão memoráveis ou pertencer tanto a um qualquer cânone quanto as suas obras anteriores, mas as suas colaborações são notáveis: Roger Waters, que a foi buscar para interpretar a mãe da ópera rock “The Wall”; Angelo Badalamenti, o autor do tema de “Twin Peaks”, que gravou consigo “A Secret Life” (1995); até mesmo os Metallica, com uma aparição fugaz em 'The Memory Remains', retirado a “Reload” (disco de 1997). A viragem do milénio também se mostrou boa para com Faithfull, artisticamente falando. Mas a saúde continuava a perturbá-la.

Em 2004, viu-se forçada a cancelar uma digressão europeia, por se encontrar exausta. Dois anos depois, foi-lhe diagnosticado um cancro na mama, cedo tratado. E, em 2007, anunciou sofrer de hepatite C, doença que já a acompanhava há mais de uma década. Precisava Marianne Faithfull de passar por tanto? O universo, ou quem ou o que quer que controle as suas leis, parece acreditar que sim: chegada a 2020, a cantora viu-se a braços com um diagnóstico positivo para a Covid-19. A mesma doença que já levou grandes figuras do mundo da música como John Prine, Lee Konitz, Toots Hibbert ou Phil Spector ameaçava agora levar Faithfull. For many a time / I have been half in love with easeful Death, escreveu Keats. De todos os que a cantora teve, o romance com a sua própria morte era o mais duradouro.

créditos: Marianne Faithfull Facebook

Mas ela viveu para continuar a contar a sua história. E para entoar os versos de “Ode To a Nightingale”, um dos poemas incluídos no seu novo disco, “She Walks In Beauty”, homenagem a grandes poetas do romantismo inglês como Keats, Lord Byron, Percy Bysshe Shelley ou William Wordsworth. A seu lado, Warren Ellis, o homem que hoje em dia controla a sonoridade dos Bad Seeds de Nick Cave – sendo que um e outro são fãs confessos de Faithfull, e o segundo até tocou piano em alguns dos temas aqui presentes. O disco, que começou a ser preparado ainda antes da pandemia, quase foi póstumo: a Covid-19 levou à sua hospitalização por três semanas, e a cantora chegou mesmo a estar em coma. «Pensavam que eu ia morrer», afirmou a cantora ao “The New York Times”, para logo em seguida acrescentar, com um gracejo: «mas não morri».

Não se poderá dizer que “She Walks In Beauty” mostra o poderio ou a musicalidade da voz de Marianne Faithfull. Este é um disco em que ela ocupa, não a dianteira, mas uma espécie de lugar de apoio aos artífices reais: Ellis, cujas passagens eletrónicas conferem uma certa dormência pastoril às declamações (aprendida talvez com Brian Eno, que também marca aqui presença), e os poemas, até mais que os poetas, lidos por uma Marianne em modo professoral, quase escondida nos textos, tentando desviar as atenções dos ouvintes em direcção ao que não escreveu. Como uma boa professora, «ela acredita no que lê», aponta o músico. E, como uma boa fã de poesia, não deixa que a sua voz circule por sobre a palavra.

Claro que esse efeito poderá ter origem nos problemas respiratórios de que padeceu. O “The New York Times” aponta, e bem, que «o que há de notável – e assustador – no disco é que não dá para perceber quais os poemas que Faithfull gravou antes e depois do seu encontro com a morte». Porque esta que se ouve não é uma voz egocêntrica, mas uma voz serena, como na oração: Dai-me a serenidade para aceitar aquilo que não posso mudar. Uma voz feliz por ter finalmente cumprido o objetivo de entoar os poemas pelos quais se apaixonou ainda na adolescência, na escola. Uma voz que não tomba perante as várias cicatrizes que a vida lhe tem deixado.

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