“Apeteceu-me fazer uma coisa diferente, acho que é importante renovar-me, sentia-me um bocadinho prisioneiro, eu já tinha uma etiqueta e esperava-se que eu fizesse os livros assim”, disse Mia Couto, em entrevista à Lusa a propósito do lançamento em Lisboa do segundo livro da trilogia, “A Espada e a Azagaia”.
Referindo que é a poesia que o conduz, Mia Couto disse que procura a sua constância e que esta seria se “a poesia pudesse conduzir à prosa”.
Admitindo que gosta de “manter esta linha de transgressão, de desobediência” para encontrar o seu lugar, referiu, no entanto, que gosta de se surpreender.
“Um dia que eu faça aquilo que eu próprio espero de mim, eu já morri como escritor, quero-me surpreender, quero fazer outras coisas”, acrescentou.
Recuando aos últimos dias do antigo Estado de Gaza, que se estendia desde o centro até ao sul de Moçambique, sob liderança do último imperador, Ngungunyana, que lutava contra as forças portuguesas, o novo livro de Mia Couto cruza as versões da história contada por vencedores e vencidos.
O livro conta a história do conflito do final do século XIX a partir de um romance entre uma jovem de cultura txope e um sargento português.
Trata-se de uma história de amor através de uma história de guerra “e o inverso também”, disse.
“Quis contar uma história de amor através de uma história de guerra porque essa experiência vivi-a eu quando tivemos a guerra civil em Moçambique e antes dela a guerra de libertação nacional, mais de metade da minha vida foi passada em guerra e durante esses períodos de guerra que foram muito exigentes, convidavam ao desespero”, disse, referindo que a resistência era feita “por via do amor” no “sentido total da solidariedade com os outros”.
“A guerra convida-nos a essa desumanização profunda e o amor é a única resposta”, disse.
Ngungunyana acabou por ser derrotado em 1895 pelas forças portuguesas comandadas por Mouzinho de Albuquerque e foi posteriormente deportado para os Açores, onde morreu em 1906.
Mia Couto referiu que pretendeu com esta obra mostrar que a “nação moçambicana é feita de nações diversas” e que “essas nações não tiveram todas a mesma história” e Ngungunyana é exemplo disso porque “este homem foi de alguma maneira colonizador, era um colonizador africano em confronto com um colonizador europeu que era Portugal”.
Questionado sobre o receio que manifestou no lançamento da primeira obra da trilogia, “Mulheres de Cinza”, em 2105, de que este livro pudesse ser aproveitado para “despertar fantasmas” devido aos confrontos armados, Mia Couto disse que tem hoje uma opinião contrária.
“Curiosamente eu penso hoje que um livro, o trabalho que um escritor, um músico, um artista qualquer em Moçambique faça de retorno a esse passado recente é uma ajuda para encontrar consensos, para nos sossegarmos em relação a tempos que não foram bem resolvidos, que não foram completamente superados. Hoje penso ao contrário, que a única maneira de lidar com fantasmas é lidar com eles de maneira a que eles deixem de ser fantasmas”, referiu.
O segundo livro da trilogia, editado pela Leya, é lançado hoje na discoteca B.Leza, em Lisboa, numa festa em que atuarão o DJ Lucky e o tocador de kora Mestre Galissa.
Com mais de 30 livros publicados, Mia Couto, 61 anos, é um dos escritores mais destacados da literatura em língua portuguesa, traduzido em várias línguas, incluindo mandarim, alemão, francês, italiano e inglês.
O escritor é formado em Biologia e foi jornalista em vários órgãos de informação, incluindo a Agência de Informação de Moçambique e a revista moçambicana Tempo.
Em 2015, Mia Couto fez parte dos dez finalistas do Man Booker International Prize. Foi distinguido com o prémio Virgílio Ferreira em 1999, prémio da União Latina de Literaturas Românticas em 2007, Prémio Camões em 2013 e no mesmo ano com o Prémio Internacional de Literatura Neustadt.
Mia Couto está este ano nos 20 finalistas do Prémio São Paulo de Literatura, promovido pelo Estado de São Paulo, do Brasil, com "Mulheres de Cinza", na categoria Melhor Livro do Ano.
Sobre se ainda hoje continua a ser confundido com uma mulher por causa do nome, disse que sim e congratulou-se por isso porque “essas confusões são reveladoras de uma coisa muito bonita, é que ninguém tem a sua identidade já feita”.
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