Digressões que podem durar meses, semanas a fio longe de casa e da família e aeroportos que se transformam em salas de estar. E-mails por responder, riders técnicos para confirmar, promoção para fazer e horas de entrevista para dar. Cabos por estender, material pesado para carregar e testes de som para fazer. Fusos horários diferentes, poucas horas de descanso, má alimentação e algumas substâncias aditivas. A lista, nem sempre repleta de glamour, é interminável e não se resume apenas àqueles que sobem a palco — roadies, agentes e promotores, não nos esquecemos de vocês. A vida de estrada não é fácil e o sonho de uma vida na indústria da música pode rapidamente tornar-se num pesadelo.
O bem-estar físico e mental em tour foi o ponto de partida de uma conversa que juntou a osteopata portuguesa Carolina Kopf, o diretor do Ancienne Belgique, emblemática sala de espetáculos belga, Dirk De Clippeleir e, da Macedónia, Lina Ugrinovska, responsável pelo booking internacional na agência Password Production e rosto da iniciativa pelos Cuidados de Saúde Mental na Indústria da Música. Ao painel moderado pelo jornalista Davide Pinheiro só faltou o contributo de um dos lados mais afetados por esta problemática: os músicos.
O tempo de excessos e loucura parecem ter terminado e com ele o mito e o romantismo de lemas como sexo, drogas e rock'n'roll. O conforto, a boa alimentação e a saúde física e mental são agora preocupações não só dos artistas como de toda a indústria. Nesta tarde partilharam-se experiências, do limite e das boas práticas. E não se falou apenas de álcool e outras substâncias que possam alterar comportamentos, mas também de hábitos saudáveis de trabalho.
Negoceiam-se cachets, não se negoceiam condições
O diretor da sala belga, e também fundador da LiveEurope, rede que reúne 14 salas de concertos que apoiam um circuito musical emergente europeu, defende que o estereótipo do 'sexo e drogas' já não faz sentido porque, diz, hoje boa parte dos músicos são profissionais. Algo que gera outro tipo de necessidades e requer um acompanhamento diferenciado e mais exigente por parte dos programadores, como é o seu caso. "Se um artista quiser fast food, claro que será providenciado, mas vemos cada vez mais uma predisposição para comida mais saudável ou vegetariana", dá como exemplo. Para além disso, se o ambiente que receber esses artistas for controlado, como através de políticas de zero álcool para todo o staff, e oferecer alternativas, isso vai criar exemplos e refletir-se no comportamento dos músicos.
E mais: hoje em dia a produção de uma tour passa tanto pelas questões técnicas como pela garantia da hospitalidade. "As digressões são uma das partes mais importantes das suas carreiras. Se antes os agentes eram quem arranjavam drogas aos artistas agora são quem dizem que sopa há à disposição", lembra em tom de brincadeira Lina Ugrinov. "Podemos negociar o cachet, mas não podemos negociar as condições que um promotor pode oferecer, ele tem de estar preparado para receber toda a equipa", alerta a agente. Ela que sofreu de burnout [esgotamento físico e mental] causado pelo excesso de stress motivado pelo trabalho e que hoje, tal como nesta sessão do MIL, encabeça os principais painéis sobre o tema de certames da industria musical. "A primeira coisa que fazia quando acordava era ver os e-mails e pensar que tinha de ir a correr para o escritório para começar a despachar trabalho. Quando viajava levava sempre formas extra de estar ligada, e arranjava soluções para estar ligada durante os voos. Isto levou-me a um ponto em que não conseguia dormir e a linha vermelha foi o momento em que já não conseguia discernir e comecei a pensar que já não era boa o suficiente para o meu trabalho. Agora, em pequenas coisas, mudei a minha vida: já não vejo os e-mails pela manhã e quando saio do trabalho não vou logo para casa", conta.
E da mente para o corpo são, as mãos de Carolina Kopf são bem conhecidas entre músicos. A portuguesa especializou-se em tratamento de lesões causadas pela prática musical, e desde 2015 que dá apoio osteopático em festivais e concertos. A osteopata começou por dizer que os primeiros "pacientes" que viu tinham problemas, que já vinham de trás, associados a esforços e a movimentos repetidos. Depois, diz que se apercebeu que outras das dores eram causadas pela falta de sono, pelos nervos e pelo stress acumulado. Carolina Koft lembrou uma história com um artista, que não nomeou, numa edição passada do festival Super Bock Super Rock. "Contou-me que tinha dores e depois de o observar para ver se não era algo mais grave que precisasse de cuidado médico, disse-me que já tinha sentido aquela dor num concerto importante onde 'congelou' com o nervosismo. Então desbloqueei-lhe a zona lombar e depois do concerto veio ter comigo a dizer que até conseguiu saltar no concerto", recordou. "Tento ajudá-los a sentirem-se melhor e a ter mais forças para atuar. Alguns músicos já conhecem o que é osteopatia e ficam contentes por um festival ou espetáculo ter um profissional à disposição", disse.
O festival MIL termina esta sexta-feira. Entre os destaques da vertente formativa estão a masterclass do jornalista e crítico mundial Simon Reynolds e a keynote do músico e produtor Peter Kember.
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