Para eles a estrela da sorte tem um nome: Michelin. São jovens cozinheiros à procura de uma oportunidade, para muitos a primeira. Têm entre 16 e 22 anos e foram quase todos seduzidos pelos concursos da televisão, mas sabem que na vida real as coisas são bem mais duras.
Mesmo os que parecem inicialmente calmos e descontraídos, depressa vão mudando a expressão e o estômago enche-se de borboletas: são os nervos por ter de cozinhar para um júri internacional, primeiro um prato tradicional da região, que conte uma história, no dia seguinte o mesmo prato com um toque de modernidade.
Entre o Não e o Sim da Irlanda no referendo ao aborto ou o turbilhão político instalado em Itália, uma dentada nuns rojões à minhota e uma garfada de pica-no-chão, os jurados vão ter de decidir qual dos miúdos vai representar Portugal na final europeia na Irlanda, já em Novembro. Os professores vigiam tudo como falcões.
Durante quase dois dias o SAPO24 seguiu uns e outros para fazer a reportagem do Minho Young Chef Awards 2018, que se realiza no âmbito do Congresso Internacional de Gastronomia do Minho, entre 23 e 26 de Maio, muito mais do que uma competição de culinária, food for thought [alimento para o pensamento], porque obriga a reflectir sobre a saúde, o ensino, o ambiente ou até a tecnologia.
Ao todo são onze jovens, oito rapazes e três raparigas, mas apenas nove estão a concurso. Dois, a Inês Oliveira e o Luís Pereira, preferiram ficar na retaguarda e vêm como ajudantes. São 17h30 e está tudo a postos na cozinha da AESAcademy, em Vila Nova de Famalicão: os alunos têm agora um máximo de duas horas e meia para apresentar o prato principal.
Jovens cozinheiros nas suas bancadas, cestas cheias dos ingredientes que vão preparar, professores nas laterais – os último conselhos foram dados, mas é difícil não meter a colher -, e o chef Renato Cunha, embaixador do Minho Young Chef Awards (MYCA), faz mais uma inspecção antes do início da prova para garantir que tudo está de acordo com as regras.
Para quebrar o gelo o SAPO24 também fez algumas rondas. Cerca de 20 em cada 25 alunos que terminam os cursos de Turismo, Hotelaria, Restauração e similares vão para fora de Portugal, onde são mais bem pagos, ou desistem dos estudos por causa dos namoros. Impõem-se saber o que é mais importante: o namoro ou a gastronomia? A resposta é unânime e não se faz esperar: a gastronomia, ainda que a estatística diga o contrário. São uns spoilers, estes miúdos.
Igor Abasse, o jovem cozinheiro mais velho nesta competição, sabe o que é deixar para trás uma namorada para seguir outra paixão, a da culinária. Tem 22 anos, é moçambicano e sacrificou muito mais do que um amor de miúdo: deixou a família e a cidade onde vivia, Maputo, em Moçambique, para vir estudar para a Escola de Hotelaria e Turismo de Viana do Castelo, onde chegou em Julho de 2017.
Há dias sofreu um revés e teve de levar seis pontos. Não, não meteu facas e dedos e não foi sequer na cozinha, foi uma cabeçada num jogo de basquete; abriu o sobrolho. Vai apresentar um bacalhau à Zé do Pipo e a inovação estará na maionese com pimentos assados, na cebola desidratada e no puré de azeitonas. Fica nervoso quando um dos jurados, o chef Dinis Mendes, dono do restaurante Cor de Tangerina, em Guimarães, lhe pergunta pelo resto do bacalhau que estava em cima da bancada. "Está no lixo". Discutem quantos gramas representaria a parte que deitou fora, e Igor sabe que está a perder pontos. É que o desperdício é um "não-não" da culinária e uma das regras da competição é essa, aproveitar ao máximo.
Ali perto está André Freire, 20 anos, a representar-se a si e à Etap – Escola Profissional: vai fazer um debulho de sável, um prato que pretende isso mesmo, aproveitar tudo aquilo que, à partida, seriam os desperdícios do peixe: cabeça, rabo, ovas e sangue. Conta que é um prato antigo: "Os pescadores chegavam do mar e as mulheres iam vender o peixe de porta em porta. Os clientes queriam apenas as partes nobres do peixe, os filetes, os lombos, e o restante ia para o lixo. As mulheres criaram então um prato feito com os restos de forma a aproveitar tudo". E é neste esforço, e numa escultura do artista José Rodrigues que o simboliza (e que está ao pé da igreja de Vila Nova de Cerveira), onde estão presentes os elementos ferro, pedra e água, que André vai buscar inspiração para modernizar o prato.
Todos os pratos têm de ser tradicionais, feitos com ingredientes da época e da região e o preço de custo não pode ultrapassar os quatro euros, um valor consensual e sugerido pelos próprios alunos/escolas.
Beatriz Costa, da Didáxis, tem 17 anos e vai cozinhar arroz em vinha d'alhos. Na bancada tem entrecosto, cebolas, alhos, chouriças e outros ingredientes, todos de aspecto fresco e aroma de bradar aos céus. Parecem saídos de uma loja gourmet, mas são todos caseiros e locais. Beatriz garante que quatro euros chega e sobra para muita coisa boa.
Um prato, para ser equilibrado, deve ter hidratos de carbono, proteína e vegetais. Se for colorido, à partida é saudável. Mas para ter gosto precisa de mais. O chef Renato Cunha pede a todos para pararem um minuto. "Lembrem-se que ontem, nos treinos, faltava sal na comida. Estava tudo insonso. Estou a ver cozinheiros a provar com a ponta da língua, a ponta da língua é mais sensível ao doce, é por isso que os miúdos lambem os gelados. As papilas gustativas que percebem o sal, a pimenta estão lá mais atrás e é por isso que se deve provar uma colher inteira e fazer circular a comida na boca. Não precisa ser uma colher grande", ensina. Os alunos ouvem com atenção e no momento seguinte todos provam o que estão a fazer e rectificam temperos.
A cozinha fica mais agitada, já há coisas no forno, outras a refogar. Os cheiros intensificam-se. A iniciativa Jovem Chefe do Minho quer promover a igualdade de género no sector e estimula as escolas a encorajarem as suas alunas. Carla Vieira, outra concorrente feminina, vem da Associação Comercial de Braga e cozinha sob o olhar atento do professor, o chef Alexandre Costa. Sempre a sorrir, diz que não foi preciso muito para a convencer a entrar na competição: "A Carla é uma guerreira e chegou-se logo à frente". Ainda assim, ela avança que não quis arriscar e por esse motivo escolheu um prato bem básico, a carne de porco à portuguesa. Prefere a pastelaria, mas as regras do concurso aconselham a apresentação de um prato principal e é o que vai fazer. Queremos saber o que seria o chef Alexandre Costa se fosse um ingrediente ou um prato principal, uma entrada ou sobremesa. Diz que não tem coragem para responder à sua frente, mas escreve no papel: vinho do Porto. O seu mentor não tem nem ideia, mas Carla sonha isso e muito mais, como abrir um negócio. Lá mais para a frente, depois de acabar o curso e de ir a Itália, o país que escolheu para fazer Erasmus.
João Carvalho, de 20 anos, e Rómulo Martins, de 16 anos ("faço dezassete para a semana"), vêm do Agrupamento de Escolas Camilo Castelo Branco. Os professores parecem ainda mais excitados do que eles. O primeiro vai fazer pescada à poveira, o segundo bacalhau à Gomes de Sá. João lembra que "o Minho também é mar" e conta que se inspirou no poema "Mensagem – Mar Português", de Fernando Pessoa, para recriar o seu prato. Em vez do ovo cozido, a gema será curada e a clara, que simboliza a espuma, é congelada. A inovação envolve ainda uma mousse de grelos e um cremoso de batata. Será um prato muito presidencial, pois se Marcelo Rebelo de Sousa fosse um prato seria esse, "porque é cremoso e envolvente", considera João. Os outros riem, mas concordam.
Rómulo Martins opta pela cozinha molecular, mas garante que os ingredientes e sabores estarão todos lá. Também quer abrir um restaurante, de preferência em Portugal, "com um conceito metade tradicional, metade gourmet com preços acessíveis a todos".
Mais à frente há outro político que vem à baila; é o primeiro-ministro António Costa e, se fosse um ingrediente, seria uma malagueta ou um pimento. Quem o diz são Adelino Sousa, 18 anos, e Luís Leite, 19 anos, ambos da Escola Profissional Amar Terra Verde. O motivo é o mesmo: "Entrou para o governo a espicaçar e é o que faz o tempo todo". Aqui cozinha-se bochecha de porco e cavala assada. Adelino lembra-se que a avó, que vivia perto, criava animais, e a matança do porco, agora proibida, era tradição. As bochechas do porco, assadas ou estufadas, eram tenras e tinham "um sabor a avó". Estas, assadas com batatas e grelos na versão tradicional e com um puré de favas na versão contemporânea, sabem a neto, ri-se. O empratamento também é importante: "É preciso respeitar os sabores, mas embelezar". Luís concorda: "As quantidades também têm de ser mais proporcionadas" E recorda que a avó assava cavala e sardinhas na brasa. "Agora pode saber ainda melhor". A cavala será acompanhada de pica-no-chão (arroz de cabidela).
Na cozinha já há fumo, cheiro a queimado, panelas sujas aos montes – a higiene na cozinha também conta para pontos - e risos, muitos risos. Num instante passaram as duas horas e meia e chega a altura de empratar, preparar a explicação sobre o prato e servir o júri - sem demora, porque esta comida é boa quente. E que sorte que eles têm.
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