“Guts” significa “vísceras” em português, mas como a língua inglesa é tão pródiga em duplos sentidos quanto a nossa, a palavra quer também dizer “coragem” ou “ganas”. É nessa pluralidade de sentidos que se afirma o “Young Chefs with Guts”, evento organizado no âmbito do festival gastronómico Sangue na Guelra: dar palco a jovens cozinheiros com vontade de se mostrarem e sem medo de meter as mãos na massa. Mesmo que isso sejam umas entranhas.

Apesar do festival se dar apenas uma vez por ano, a equipa do Sangue na Guelra, promove uma série de outras iniciativas, sendo estes jantares exemplo disso. O cenário desta refeição foi o Restaurante Erva, aberto desde julho deste ano e parte da vaga de novas propostas gastronómicas que têm percorrido Lisboa de uma ponta à outra.

Com a exceção de Carlos Gonçalves, anfitrião que se lançou em nome próprio neste estabelecimento, todos os cozinheiros convidados são subchefes, isto é, são os braços direitos dos chefes de cozinha, muitas vezes partilhando tantas responsabilidades quanto os seus colegas mais reconhecidos. O nível a que estão habituados é de elevada exigência, não tivessem os três experiência em restaurantes de estrela Michelin: Artur Gomes e Luke Kolpin trabalharam juntos no mundialmente famoso Noma de René Redzepi em Copenhaga, na Dinamarca, ao passo que Daniel Costa é o parceiro de longa data de Henrique Sá Pessoa no Alma, tendo participado no evento um dia antes de saber que, com a ajuda dos seus préstimos, o restaurante do Chiado iria ganhar uma segunda estrela do afamado guia gastronómico.

Numa curta pausa antes do jantar ter início, Artur Gomes admite que provavelmente é aquele que mais sente a picada da responsabilidade, talvez por ser o mais novo. “Eu não provei nada a ninguém, sou apenas um miúdo que já correu alguns sítios a quem deram esta grande oportunidade de poder estar a dividir o palco com outros chefs, os quais respeito imenso”, diz Artur. Mas os “sítios” de que fala não são meros restaurantes. Apesar de ainda ser um jovem cozinheiro de 25 anos, Artur já passou por uma constelação de estrelas Michelin, acumulando experiências no Belcanto, no El Celler de Can Roca e, mais tarde, no Noma, onde teve Luke Kolpin a coordenar-lhe o estágio antes passar para o departamento laboratorial do restaurante.

No entanto, por mais experiência que tenha adquirido, trabalhar noutra cozinha que não a sua representa sempre um grande desafio para qualquer chef, especialmente se for num evento mediático. Artur já veio com o prato definido, mas isso não chega quando se trata de se ambientar a um novo local de trabalho. Se a hora de jantar é às 20 horas, as refeições normalmente começam a ser preparadas ainda as senhoras elegantes não tomaram o seu chá das cinco. O chef e a sua equipa, contudo, adiantaram-se ainda mais: “somos malucos e entrámos na cozinha às oito da manhã”.

Há uma explicação para este zelo, a necessidade de se adaptar a outras ferramentas, dando Artur um exemplo: “eu em ‘casa’ demoro sete minutos a fazer um flatbread [tipo pão que figurou num dos seus pratos, com Xerém de berbigão], aqui demorei 17. Foram mais 10 minutos porque é um forno completamente diferente, hotspots diferentes e isso é um dos exemplo de como nos temos de adaptar no local”. Este tipo de contratempos faz com que “a azáfama seja maior, porque temos de correr mais espaços para sabermos onde estão as coisas. O que é que eu vou buscar e aonde, onde é que está tudo?”.

Luke Kolpin corrobora este sentimento. Não obstante a sua experiência a cozinhar enquanto comanda diariamente os perto de 45 estagiários do Noma, o subchef americano confessou que é sempre complicado fazê-lo fora do seu elemento. "Estou num país onde nunca estive, sou o único que teve de viajar até aqui, tive muito contra mim”, admitiu Luke já no final da noite, relaxando na companhia de uma “mini” gelada. No seu caso, não só a cozinha era outra, a língua também, pelo que o desafio foi duplo para si.

Young Chefs with Guts
Young Chefs with Guts créditos: Paulo Rascão | MadreMedia

Comunicação, o mais importante ingrediente

Todo o universo da gastronomia gravita em torno da boca. É a ela que se destina um comboio de entradas, pratos principais e sobremesas que corre durante o jantar, é à sua satisfação que os cozinheiros dedicam a sua mestria, é o objetivo último das horas infindáveis de trabalho entre planeamento, preparação e execução de um prato. Mas a boca não é apenas a finalidade desse processo, é também a principal ferramenta para que ele seja bem sucedido.

Não basta técnica, palato apurado ou horas a estudar os pantagruélicos tomos da culinária para levar uma refeição a bom porto, tudo cai por terra se não houver boa comunicação. É comum referir-se aos movimentos dentro de uma cozinha como um bailado, tamanha é a coordenação necessária, mas não é incorreto evocar a vertigem de uma via rápida onde dezenas de carros se ultrapassam: tal como no asfalto, basta alguém não fazer o sinal correto ou não exprimir a sua intenção de forma clara para desencadear um evento em cadeia e com consequências imprevisíveis.

Esta necessidade torna-se tão mais evidente numa cozinha onde equipas diferentes têm de trabalhar entre si num espaço que não conhecem assim tão bem. Dado ser um evento sui generis e com vários momentos ao longo da noite, nos bastidores tanto se observam porções de tamboril a serem separadas num ambiente o mais assético possível, como na divisão ao lado o barista prepara o café de balão para o grande final, a ser tomado depois de uma tábua de queijos e de uma sobremesa preparada por Filipe Manhita, da Fortaleza do Guincho.

É por isso que entrar nos domínios da jaleca é ver-se perante o caos organizado de vozes a falar entre si, a indagar e a certificar, a negociar ou a comandar. Tanto aparece alguém a irromper pela cozinha a perguntar onde se encontra aquela espátula específica de plástico com a ponta redonda, como se dão conversas à parte debaixo da ombreira duma porta, como a de Luke Kolpin com um cozinheiro do Erva para discutir últimos pormenores com mais calma, como quem emprata onde, se na cozinha, ou na sala, em que ordem, a que horas.

Aqui não se ouvem impropérios a cada três palavras nem se veem golpes de teatro à lá Marco Pierre White de comida atirada para o chão ou contra a parede para servir de exemplo para os demais que decidam cometer erros, mas nem por isso o ambiente deixa de ser tenso. O stress é palpável, as portas abrem-se e fecham-se num corrupio de corpos apressados e fazem-se os últimos preparativos. Estar “à civil” num cenário destes é um convite a ser alvejado por olhares que variam do surpreso ao fulminante. Admita-se que parte da razão para o fuzilamento ocular advém dum sentimento tribalista de pertença - na cozinha só deve estar quem é da cozinha - mas a verdadeira causa é a presença de um estranho ao serviço, que não está familiarizado com as regras - tácitas ou formais - do espaço, e que inadvertidamente se tenta desviar para não atrapalhar, mas acaba sempre por colocar no sítio errado à hora errada. Tiram-se notas, pede-se “com licença” e sai-se de cena para os verdadeiros atores trabalharem.

Paulo Rascão | MadreMedia créditos: Paulo Rascão | MadreMedia

Sustentabilidade, um novo caminho para a cozinha

De volta à sala principal, os convidados já se avolumam para provar estas criações de autor. Os alicerces não deixam de denunciar que sim, isto é um restaurante, mas a quantidade de verde que os cobre e as madeiras que rematam a decoração fazem-no assemelhar-se mais a uma estufa. A colagem à natureza e à frescura não é inocente, é cada vez mais comum entre os chefs portugueses a exaltação do produto nacional, que aqui se manifesta a ponto de se encontrar exibida uma carcaça de porco, ainda que ofuscada pela porta de vidro do frigorífico, na sala, capaz de retirar o apetite aos estômagos mais sensíveis.

A menção da expressão “cozinha de luxo” ainda evoca quiméricas representações de opulência, com mesas obscenamente compostas, um fartote de garrafas dos melhores vinhos a acompanhar as melhores iguarias. No entanto, é precisamente no sentido oposto que o “fine dining” tem caminhado, mantendo o requinte, mas seguindo uma procura por produtos naturais e sustentáveis, com respeito pela sazonalidade e tendo uma doutrina de desperdício zero.

No “Young Chefs with Guts”, houve vários exemplos postos em prática, como o “caviar sustentável” - termo que em si mesmo parece um oxímoro - que Luke Kolpin utilizou num dos seus pratos, acompanhado de algas, abóbora e creme de levedura. O petisco justifica o adjetivo porque, segundo o chef, a carne do esturjão que providencia as ovas “é vendida para consumo humano, a sua pele serve para fazer roupa e dos restos que sobram destinam-se a ração animal”. Dado o cuidado que um caviar desta natureza merece, vimo-lo a ser cuidadosamente manuseado numa sala à parte, medido em pequenas porções de 4 gramas numa balança.

No mesmo comprimento de onda esteve o manjar que Artur preparou. Na ementa, o seu prato surgia descrito como “Tamboril, cogumelos e fígado de tamboril”, realçando que procurou utilizar todo o peixe. A ideia do prato, para Artur, “veio do desperdício, de ver tanta cabeça de tamboril a ir para o lixo”, tendo aproveitado “as bochechas, os fígados e a pele”, utilizando “o resto para fazer o molho”. Mencione-se ainda que a carne de porco que Carlos Gonçalves serviu não foi composta pelas partes nobres, antes pela faceira do porco, coração ou intestinos, sendo acompanhada de papas de bolota e raízes.

Esta filosofia, porém, não se limita à comida, já que Fernão Gonçalves demonstrou aplicá-la também ao universo da coquetelaria. O bartender do Restaurante Pesca foi convidado para servir um cocktail antes da refeição começar, tendo vermute como principal ingrediente. Contudo, ao invés de comprar bebidas novas, Fernão optou por aproveitar as garrafas de vinho resultantes de provas para criar dois vermutes artesanais - um de tinto doce para sobremesas e outro branco para servir como aperitivo - ambos passando por um processo de seis meses e sujeitos a um sem número de especiarias para adquirirem o seu sabor.

A tendência de aproveitamento, segundo Artur, está cada vez mais presente nos melhores restaurantes do mundo, que vão “buscar by-products (subprodutos)” para as suas criações. Este é o resultado, de acordo com o chef, de uma conversa entre a comunidade gastronómica da necessidade de “ter consciência ecológica para além da sustentabilidade, porque disso já falamos aos anos e estamos sempre a encher chouriços”.

O que isso significa, segundo Artur, é que o movimento não passa apenas por recorrer ao biológico e “usar produtos da época”, mas abordá-los no seu todo, dando o exemplo de que, se se encomenda atum de barbatana amarela apenas com o intuito cozinhar esta parte particularmente apetecível, “para cinco pessoas comerem-na tiveste de matar cinco atuns, não estás a ser sustentável”. Ao invés, é necessário comprar o produto e utilizá-lo por inteiro, realça o chef, implicando isto usar “a cabeça, o lombo, a barriga, a cauda, as entranhas”.

Eventos como este afirmam-se não só como uma oportunidade de estabelecer um diálogo, mas também de aprender com outras culturas. Apesar das dificuldades de adaptação inerentes ao processo, Luke Kolpin considera as viagens que têm feito com o Noma não só enriquecedoras, pelas gastronomias que tem vindo conhecer, mas porque estas lhe têm proporcionado “um olhar de fora, para ver os ingredientes que uma cultura tem”.

O restaurante comandado por René Redzepi abriu em formato pop-up pelo mundo nos últimos anos, com residências no Japão e na Austrália antes de, mais recentemente, se instalar na cidade costeira de Tulum, no México, onde esteve 12 de abril e 28 de maio de 2017. Acompanhando estas migrações, Luke considera-as cruciais para evitar entrar numa rotina castradora da criatividade, o que é fácil “especialmente quando as referências são restaurantes próximos”, pelo que “é importante que tenhas alguém de fora que agite um pouco as coisas”.

O processo, na sua opinião, é bilateral, porque tanto Luke influencia as culturas que visita com os ensinamentos da cozinha nórdica, como o cozinheiro traz novas abordagens refrescantes. “Do México, por exemplo, começámos a usar especiarias” explica Luke, que voltou a Copenhaga à procura de uma solução simultaneamente fosse “nórdica mas que soubesse a especiarias”. Desta forma, diz que o Noma está “a desafiar o paladar da cultura escandinava pelas influências que tivemos nas nossas viagens”. Apesar de não ter ficado muito tempo no nosso país, de Portugal, Luke leva para a Dinamarca uma lição de simplicidade, característica que diz ser central à sua forma de cozinhar. Mais do que apreciar o marisco português, marcou-o a forma como é preparado: “aqui é só cozê-lo, mandar-lhe sal e é do melhor camarão que alguma vez vais ter.”