Remember the eighties. Lembrem-se de todas aquelas paixões, de todas aquelas armas, de todos aqueles vícios. Lembrem-se do cinema, das viagens por estradas longas, dos rostos. Lembrem-se da vossa música, dos galãs, dos heróis. Lembrem-se de Grace Jones, ser alienígena tornado sex symbol improvável na década de todas as loucuras, mulher afrofuturista que não deixou nenhuma arte para trás ao construir a sua carreira: a moda, os filmes e, claro, os álbuns. Como “Slave to the Rhythm”, editado em 1985, manifesto disco-mutante lançado pela ZZT de Trevor Horn e Paul Morley, duas das pessoas que mais fizeram pelo mundo alternativo nessa década em particular.
Ouviu-se o tema que dá nome a este álbum, nesta segundo dia de NOS Alive em que os anos 80 pareceram voltar a todo o gás (já lá vamos). Mas foi preciso esperar. Uma hora de concerto, mais os dez minutos de atraso até que Jones, vinda de uma qualquer Wakanda caribenha, se mostrou em palco já depois da queda de um gigante pano preto que não deixou antever o que se seguiria.
O reino fictício da Marvel poderia muito bem ser o seu; aos 71 anos de idade, Grace Jones movimenta-se ainda como uma verdadeira Pantera Negra, assanhada e extremamente sexual. Vimo-la abrir as pernas em movimentos lascivos por diversas ocasiões, vimo-la ceder às tentações de uma stripper, vimo-la baixar o seu top para mostrar os seios desnudos aos que tiveram o discernimento de não perder, no Palco Sagres, uma das poucas artistas à qual se pode dar o estatuto de lenda viva.
E o que vimos – sobretudo – foi uma mulher negra extremamente segura de si, independentemente dos números que possam constar do seu bilhete de identidade. Quase que arriscamos que Jones é hoje mais símbolo sexual do que era na década de 80, quando despontou como estrela andrógina e demasiado bizarra para um mundo que, à época, desconhecia ainda o significado da palavra queer. A sexualidade de Jones não tem rótulo; abarca todos os sexos, todos os géneros, todas as preferências. Como se quisesse fazer amor com o mundo inteiro, mostrar que o sexo não tem que ser um tabu, que existe epifania num orgasmo.
Logo a abrir, foi 'Nightclubbing', tema de Iggy Pop que Jones cantou em 1981 aquele que fez mexer as hostes, entre os fiéis ao seu culto e aqueles que por ali deambulavam por mera curiosidade. Estes últimos deverão ter saído dali com mais perguntas do que respostas, mas com uma certeza: nunca mais verão nada igual. Algo inspirado, talvez (lembramo-nos, a título de exemplo, dos espetáculos techno-queer do venezuelano Arca), mas nunca igual. O anúncio da sua presença no NOS Alive foi uma surpresa. No final do concerto, saímos a pensar que valeu a pena a romaria até Algés só para presenciar a sua força.
Pelo ar pairava o cheiro do dub jamaicano, baixo pesado e ondulante, ritmo ponderado e poderoso. Qualquer pessoa sabe mexer as ancas; difícil é fazê-lo com tanta graciosidade – e é por isso que há que prestar atenção ao ritmo, deixarmo-nos escravizar por ele. Ou por ela, neste caso, que começou por esconder o rosto atrás de uma caveira dourada e o corpo numa plataforma acima de tudo o resto, rainha-sombra da beatitude.
«Estás pronta, Lisboa?». Talvez não estivesse. O groove vai penetrando no osso até estalar, a batida flutua no horizonte. Chegamos a 'Warm Leatherette', também ela uma versão, esta de Daniel Miller (mais conhecido como The Normal, ou como o fundador da mítica Mute Records), e provavelmente uma das canções mais importantes da história da música eletrónica. Versos ballardianos chocando de frente com o suor das discotecas. Jones vai trocando de visual, espantando a cada passo que dá em palco, mostrando-se tão jovem quanto os mais jovens. Espanta e assombra e reescreve-nos as ideologias: acima de tudo há a boémia.
Escutamo-la em modo gospel, e à potência da sua voz, durante uma curta interpretação de 'Amazing Grace' e depressa percebemos que essa canção deixou de ser sobre o Espírito Santo e passou a ser sobre a própria Jones. À promessa de um novo álbum em breve (o último foi “Hurricane”, em 2008) juntou-se a de vir um dia a aprender português. Não que isso importe. Tivemo-la connosco, uma vez mais (e não pela primeira vez, como havia sido anunciado pelo festival). Tivemo-la a gritar 'Love Is the Drug', dos Roxy Music, qual glam rocker não perdida no tempo, mas a fazer deste o seu tempo. Tivemos o Palco Sagres transformado numa enorme pista de dança, quando as luzes incidem sobre o seu chapéu de coco e criam o efeito de uma bola de espelhos. Tivemo-la e a um dançarino e contorcionista hábil, só de tanga, e que nos ajudou a abrir as bocas de felicidade e fascínio em 'Pull Up to the Bumper'. Tivemo-la a descer para junto dos plebeus, às cavalitas de um pajem que no final recebeu um caloroso beijinho. Tivemo-la por inteiro até que ela se esfumou por entre sorrisos e palmas e abraços de homens a homens e mulheres a mulheres e homens a mulheres. Pelo NOS Alive passou um cometa. Não é todos os anos que isso acontece.
Um cometa, regra geral, ofusca tudo o que resta do céu; focamo-nos nele e só nele, ignoramos todas as outras estrelas que ajudam a dar alguma vivacidade ao infinito celeste. Mas seria difícil não deixar algumas palavras de apreço para Johnny Marr, que ajudou, também ele, a revisitar (o que é diferente de reviver) os anos 80. No seu regresso a Portugal após uma atuação na última edição do festival Super Bock em Stock, em 2018, Marr trouxe consigo uma banda coesa e a mesma guitarra que tantas vidas salvou através do seu trabalho nos gigantes Smiths – a única banda britânica que conseguiu rivalizar com os Beatles no que toca a compor canções excelentes e transgeracionais.
Não foi preciso esperar muito para que os Smiths regressassem aos nossos ouvidos. Ao segundo tema, já o maior dos guitarristas de Manchester arrancava para 'Bigmouth Strikes Again', entoada de forma sublime por um público claramente fiel à voz e letras de Morrissey, ao baixo de Andy Rourke e à bateria de Mike Joyce. O que não significa que o concerto além-Smiths tenha aborrecido, bem pelo contrário. Ouvimos 'Hi Hello', um dos seus últimos singles, com um sorriso no rosto e a ideia de que não destoaria na discografia do quarteto (que vá buscar parte da melodia a 'There Is a Light That Never Goes Out' também ajuda). E ouvimos, tal como em Grace Jones, o disco – este através de 'Getting Away With It', dos Electronic, banda que Marr formou com Bernard Sumner (New Order) já depois do fim dos autores de “Meat Is Murder”.
Mas dizer que os melhores momentos do concerto de Johnny Marr não foram as incursões pelos temas dos Smiths seria mentir – afinal de contas, nunca mais teremos oportunidade de os ver ao vivo, pelas histórias e tragédias que tão bem se conhecem. Pior ainda: o legado da banda ameaça, cada vez mais, ficar manchado pelas declarações cada vez mais esdrúxulas de Morrissey, o novo menino d'oiro da extrema-direita inglesa. É preciso que venha alguém como Marr mostrar-nos que não, não há que ter qualquer vergonha de entoar a plenos pulmões I am human and I need to be loved..., da clássica 'How Soon Is Now?'. Na disputa entre o presente de Morrissey e o passado de Marr, preferimos inevitavelmente o segundo – que acabou com 'There Is a Light...', dedicada «a todos os que estão dentro da tenda, e a mais ninguém», referindo-se aos que encheram o Palco Sagres. Obrigado. Por tudo.
Num dia sem cabeças de cartaz sonantes, coube aos Vampire Weekend a maior fatia do bolo servido no Palco NOS, o qual devoraram com sagacidade. Sob um globo terrestre pendurado em palco, a banda norte-americana foi escrevendo uma carta de amor ao multiculturalismo, servindo-se de todo o tipo de sonoridades na construção da sua música, do Polo Norte à Terra do Fogo, de Nova Iorque a Tóquio, do afrobeat ao flamenco. 'Cape Cod Kwassa Kwassa', resgatada ao seu primeiro disco (de 2008), aqueceu q.b. os corações; seguir-se-iam 'Sunflower' e 'Sympathy', já do álbum novo, “Father Of The Bride”. Os Vampire Weekend são prova de que uma dança não tem credo, cor ou nacionalidade; é feita de todas as culturas e da simplicidade de uma vida onde a plenitude se resume ao sol, à brisa e a um poema. Saíram de palco com nova data marcada: 26 de novembro, no Coliseu de Lisboa.
A fechar a noite, o regresso dos Gossip aos palcos deu-se através de trechos de 'I Was Made For Loving You', dos Kiss, e de 'War Pigs', dos Black Sabbath, num concerto que serviu sobretudo para uma certa franja da intelligentsia indie matar as saudades de há 10 anos. A voz de Beth Ditto continua no ponto, o groove também, mas ainda não há revivalismo suficiente pela década dos zeros (2000-2009) que consiga encher um recinto, quanto mais o interesse. Valeu por 'Standing in the Way of Control', que foi hino em 2006 e que agora contou com mensagens de arremesso contra o fascismo, contra Donald Trump e contra o Reino Unido (e que acabou com 'Smells Like Teen Spirit', dos Nirvana, metida ali no meio).
Dos Primal Scream pouco se viu (atuavam praticamente à mesma hora que Johnny Marr), mas soube bem ouvir 'Movin' On Up' (do clássico “Screamadelica”) logo a abrir, aliada à fatiota rosa choque de Bobby Gillespie, que foi dançando como pôde. De Perry Farrell e sua orquestra rock, que ali mostrou os temas do novo trabalho a solo do líder dos Jane's Addiction, pouco há a dizer: parece-nos tudo tão desprovido de sentido que não vale a pena perder muito tempo com isso. Mesmo que alguma mistura entre psicadelismo sujo e ritmos eletrónicos nos tenha despertado, a confusão na cabeça de Farrell – que olhou para o Tejo e questionou-se se seria o oceano – tirou a vontade para mais.
O NOS Alive termina este domingo, com atuações de Smashing Pumpkins, Idles, Thom Yorke ou Marina, entre outros. Os bilhetes diários estão à venda pelo preço de 60,98 euros.
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