O estoiro atordoa toda a gente. Depois do relampejo, lá do rio vem um estrondo que espanta os pássaros e exalta o povo que se empoleira em tudo o que seja ponto alto. É meia-noite. E por meia-noite ser, marcando deste modo o relógio o andamento do dia de ontem para o dia de hoje, o Porto salta de alegria ao santo que lhe não é padroeiro, mas lhe traz a maior festa: São João.
Ao ouvir os primeiros rebentamentos, as gentes vêm todas apressadas, rua Mouzinho da Silveira abaixo, a caminho da Ribeira. É lá, pertinho do Douro, que melhor se assiste ao espetáculo de fogo de artifício — mistura de pirotecnia com umas luzes dançarinas e uma seleção musical perto de um surrealismo contemporâneo.
Para aqui chegar, porém, há toda uma festa. Uma celebração que começa bem antes da meia-noite. Arranca logo no metro, transporte que funcionou toda a madrugada para levar e trazer quem dele precisasse. Comboios e autocarros idem. No centro do Porto, dos Aliados a Miragaia, o trânsito está condicionado. Seja o de carros, seja o de pessoas, que formigam por todo o lado.
Indo ruelas adentro, há festas escondidas naqueles recantos do Porto onde ainda é Porto. Nos buracos e esconderijos da cidade onde ainda não cabem turistas, a sardinha assa-se no meio do caminho, vindo o fumo inundar o bairro todo. A gente atravessa a nuvem, logo invadidos pelos altifalantes donde trovejam os bailes.
Na Vitória, a rua apertada é bloqueada por um comboio. A infraestrutura, comandada pelo músico de serviço, vai-se revezando entre ser locomotiva ou túnel, conforme passa para trás e para diante.
Na Ribeira, está tudo parado. Andar é tarefa difícil. Não basta a enchente, que impede o movimento, há ainda que sofrer o constante ataque das marteladas, cujo apito ressoa e ecoa no interior da mente, gritando como indutor de folia. O conjunto, orquestra disforme, torna-se num longo e constante ruído agudo. No túnel da Ribeira, a arquitetura ajuda o ensurdecedor assobio, multiplicando-lhe a estridência.
Os instrumentos são vendidos por todo o lado. Há-os em lojas, em bancas. Em pessoas que andam só de saca às costas a acartar martelinhos e vuvuzelas e lanternas.
O São João vem cheio de tradições. Há quem o repita, há quem o procure imitar: mas o São João é aqui, entre o Porto e Gaia. Para falar do São João no Porto não basta uma noite. Porque em cada canto da cidade há uma festa. As casas abrem-se a celebrar, e uma mole de povo cresce por todo o lado.
Os turistas encantam-se. São já muitos. Divertem-se com as marteladas. Vão largando ao céu os balões, que sobem, sobem, sobem — só não batendo nas estrelas porque esta noite elas se não veem.
Nos Aliados, avenida transformada em principal plataforma de lançamento das aeronaves de papel, punhados de gente vão deitando ao ar os balões. Um grupo de espanholas pede ajuda a portuenses mais afoitos ao voo destas caranguejolas. “Isto vai levar para aí um quarto de hora”, estima o piloto, depois de perguntar à mulher se o Rui Moreira pagará o trabalho noturno.
À beira da Sé, o exotismo. Depois de irem pegar nos respetivos martelos, de trazerem as farturas ou os crepes, os espectadores de foguetes juntam-se à roda de um homem ruivo que, ali mesmo no adro da catedral da Invicta, faz entoar a gaita de foles. À sombra da casa dos vinte e quatro, sob o céu de balões e o brado dos apitos, a visão fascina os que ali passam.
É também isto o Porto. E mais ainda há de ser o São João — festa da partilha, do ‘ó menino, venha cá provar uma sardinha’, dos finos a um euro, dos alguidares de cerveja e sumo fresco.
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