A data é redonda e merecia celebração. Se tudo começou numa pequena aldeia em Itália, a verdade é que a tradição do presépio acabou por correr mundo e é presença habitual entre os católicos como representação que ajuda a preparar o Natal.
“Não é todos os dias que celebramos 800 anos do Natal de Greccio. Desde essa altura que os franciscanos têm essa tradição do presépio e contribuíram muito para a sua divulgação, pelo que quisemos assinalar o ano com várias iniciativas, entre elas o concurso”, explica Frei Isidro Lamelas ao SAPO24.
A proposta, lançada em setembro, foi bem acolhida no país e surgiram mais de 100 presépios que estão desde esta sexta-feira, 8 de dezembro, em exposição na biblioteca do Seminário da Luz, em Lisboa. Além dessas peças, há ainda “outras tantas extra concurso”, bem como outros dois pólos de exposição: o Museu de Lisboa - Santo António e o Museu do Azulejo, ambos também na capital.
“Há presépios representantes de todas as áreas artísticas e de todo o país. Têm vários tipos, várias expressões plásticas. E foram produzidos expressamente para este ano, muitos deles ligados a S. Francisco e a Greccio”, acrescenta.
Mas voltemos à história. Para se olhar para este concurso é preciso, pois, entender o que levou um frade do século XIII a fazer a representação do nascimento de Jesus numa aldeia italiana, tão longe daquela gruta em Belém, na Palestina, onde o Menino terá nascido.
"A ideia dele foi levar Belém para Greccio, Belém em qualquer sítio onde queiram fazer o presépio, (...) porque um lugar santo é onde os homens instalam, pregam e vivem a paz’”.
“No Natal de 1223, S. Francisco pensou na situação que se estava a viver no mundo de então, muito parecida com a que se vive hoje na chamada Terra Santa: cristãos e muçulmanos digladiavam-se por causa dos lugares santos, para ver quem conquistava e quem dominava o quê, quem era senhor desses lugares, dessas terras de memórias importantes para ambas as religiões”, começa por contar Frei Isidro.
Ao ter participado na quinta Cruzada, S. Francisco de Assis “fez essa tentativa de pacificar, de levar a mensagem cristã da paz à Terra Santa, mas não teve assim um sucesso muito grande”. Por isso, “quando regressa à sua terra, teve esta ideia: ‘já que não consegui visitar Belém e ver a paz que o Salvador veio trazer ao mundo, vou trazer Belém para a terra de cada um’. A ideia dele foi levar Belém para Greccio, Belém em qualquer sítio onde queiram fazer o presépio, como quem diz ‘não vale a pena andarmos a lutar, digladiar-nos, a derramar sangue por causa de Belém ou de outros lugares santos, porque um lugar santo é onde os homens instalam, pregam e vivem a paz’”.
Para Frei Isidro, “foi esta a profecia que S. Francisco quis deixar ao fazer um presépio muito original, onde todos devemos tomar parte”. Como? De maneira muito simples: em Greccio, o presépio não tinha qualquer figura. “Ele não quis Nossa Senhora nem São José, nem os pastores, nem os Reis Magos. Só pediu os dois animais, o burro e o boi, e uma manjedoura com feno, simbolicamente representando que à volta de uma mesa podemos todos reconciliar-nos”.
“Naqueles dois animais estamos representados todos e, ao mesmo tempo, ele próprio e todos os que foram convidados, porque ele convidou toda a aldeia, todo o povo, para fazer o verdadeiro presépio. Isto é, nós é que devemos entrar na tal Belém, no tal mundo novo que nós imaginamos de cada vez que fazemos o nosso presépio”, frisa.
Assim, é a partir desse momento que o presépio vive — e não apenas como “a reprodução, a recriação teatral ou imaginária de Belém”. E essa característica persiste no presépio tradicional português, que “ainda hoje tem as lavadeiras, o ferreiro, o pescador, o padeiro, a peixeira, o pastor que guarda as ovelhas. Estas figuras representam a nossa vida que entra no presépio e isso é uma intuição de S. Francisco”, adianta Frei Isidro.
"O que nós celebramos na Eucaristia, que é a Páscoa, começa em Belém. Começa no berço”
Além disso, o presépio é “fundamentalmente uma mensagem de paz, no sentido daquela profecia de Isaías: o lobo viverá com o cordeiro, a pantera dormirá com o cabrito, o bezerro e o leãozinho andarão juntos e o menino poderá conduzi-los. Esta ideia de uma espécie de regresso à Idade do Ouro, um regresso que é um caminhar para a frente, algo que pretendemos construir. É um pouco isso que fazemos cada vez que montamos o presépio”.
Em 1223, o presépio teve também outro simbolismo, ao ser associado à Eucaristia, “como dois momentos ou formas inseparáveis de tornarmos presente essa tal mensagem de salvação e de paz para todos”. “S. Francisco não dissociava as duas coisas e, para ele, o nascimento de Jesus, do Menino de Belém, significou o início de uma nova história. Para ele, o que nós celebramos na Eucaristia, que é a Páscoa, começa em Belém. Começa no berço”, nota.
Do presépio de Greccio ao que temos em casa
Os anos foram passando e a tradição do presépio ficou, mas teve a sua evolução ao longo do tempo. Já em 1291, o Papa Nicolau IV, também franciscano, “mandou construir um presépio para a igreja de Santa Maria Maior, uma basílica papal em Roma — que já na altura era considerada a basílica do presépio, porque tinha lá, assim diz a tradição, as tábuas do berço do Menino Jesus”.
" Presépio significa, etimologicamente, manjedoura. O coração do presépio é uma manjedoura onde está o feno ou a palha"
“Esse Papa, querendo fazer memória do gesto de S. Francisco em Greccio, teve essa ideia de representar o Natal em figuras fixas, que naquele caso eram figuras enormes, quase em tamanho real. Até que mais tarde, já no século XVI, S. Caetano de Thiene lembrou-se de reduzir as imagens para um tamanho mais acessível a todos e, em vez de serem em mármore ou pedra, começaram a fazer-se em materiais menos nobres”, evidencia Frei Isidro.
Num salto para a atualidade, o franciscano refere que o Papa Francisco tem sido também o motor que ajuda a não perder esta tradição tão antiga, já que faz com que todos repensem as figuras do presépio e a sua importância, “através de muitos dos seus textos".
E a grande questão é: afinal, o que tem mesmo de ter um presépio? “A característica do presépio na linha da maior tradição é, em primeiro lugar, o foco na manjedoura. Presépio significa, etimologicamente, manjedoura. O coração do presépio é uma manjedoura onde está o feno ou a palha. Até na música popular muitas vezes canta-se ‘nas palhinhas deitado’ porque isso é fundamental. Além da realidade de Jesus ter sido envolto em panos e colocado na manjedora, como diz o texto, depois há a parte simbólica em que a manjedoura é o local onde os animais comem e esses animais significam a humanidade toda”, reflete Frei Isidro.
"O nosso Grão Vasco, na altura das Descobertas, até começou a introduzir um quarto Rei Mago, na pele e nas vestes de um índio"
Depois, as figuras principais: Jesus, Nossa Senhora e S. José. Mas nem sempre foram como hoje as vemos. “Na tradição antiga, S. José aparecia sempre distante, um bocadinho fora de cena, para se dizer que não era o pai biológico daquela criança. Em contrapartida, Nossa Senhora está sempre junto do Menino”, diz.
“No presépio português encontramos, entre tantas coisas, a matança do porco, um daqueles costumes tipicamente rurais, e isso tem uma dupla dimensão."
Como não podia deixar de ser, “os Reis Magos também são fundamentais, por causa da Epifania” — e têm de vir sempre do Oriente. Segundo conta Frei Isidro, “inicialmente até se celebrou primeiro este momento e depois é que veio o Natal, porque o que era importante era a mensagem de que Jesus veio para todas as nações, todas as gentes, todas as raças e culturas”. É por esse motivo que "os Magos começam a ser pintados com cores de pele diferentes, com aspetos diferentes. O nosso Grão Vasco, na altura das Descobertas, até começou a introduzir um quarto Rei Mago, na pele e nas vestes de um índio, para dizer que todos os continentes são envolvidos”.
Nas representações mais populares, as figuras ultrapassam em muito as que são essenciais. Mas nem por isso deixam de ter um sentido, por mais disparatadas que possam parecer à primeira vista. “No presépio português encontramos, entre tantas coisas, a matança do porco, um daqueles costumes tipicamente rurais, e isso tem uma dupla dimensão. Não é só o ritual da matança do porco, mas um bocadinho a ligação temática, porque o presépio é também o anúncio já do sacrifício de Cristo”, exemplifica.
"S. Francisco dizia que no dia de Natal devemos espalhar trigo pelos caminhos para que as aves do céu também festejem, devemos dar uma ração melhorada a todos os animais, especialmente ao jumento e ao boi"
“Outra temática muito forte é a reposição da justiça, porque Jesus vem para acabar com a fome, com a sede, com as crises, então aparece o tema da alimentação nos presépios, não só a temática eucarística associada ao Menino. Mas já S. Francisco dizia que no dia de Natal devemos espalhar trigo pelos caminhos para que as aves do céu também festejem, devemos dar uma ração melhorada a todos os animais, especialmente ao jumento e ao boi, às cotovias, e até untar as paredes com carne gorda e sal, que era na altura um sinal da expressão da festa. Esta ideia do Natal de toda a Criação, o Natal Cósmico, é muito franciscana, mas entrou também nas tradições. Nós, no nosso presépio, temos um micro-cosmos onde está representado todo o mundo. A água, o fogo, a terra, o ar”, acrescenta Frei Isidro.
Uma mensagem de paz num mundo que precisa de ser “um bocadinho mais alegre e mais tranquilo”
Embora se possa achar que toda a gente já viu um presépio, seja ele de que forma for, Frei Isidro recorda que esta representação não passa de moda — e continua atual, principalmente pela mensagem que deixa.
"O presépio traz uma mensagem de paz, mas também uma mensagem profundamente ecológica"
“Ainda temos a necessidade de aprendermos com S. Francisco, que se deixa surpreender por coisas que a nós já não nos surpreendem. Ele fica espantado, por exemplo, com esta realidade de um Deus pobrezinho, de um Deus despojado, numa altura em que a Igreja pregava e impunha um Deus todo-poderoso, um Deus omnipotente, o Deus das Cruzadas, o Deus esmagador. Ora, hoje anunciar que o caminho é o da pobreza é dizer que este é o caminho da paz. Mas é também o caminho de uma justiça maior. Se nós quiséssemos ser mais pobres e menos ricos, todos éramos mais ricos, todos ganhávamos. Todas estas batalhas e injustiças que existem no mundo resultam um bocadinho dessa vontade excessiva de consumo e de poder que leva a uma competição desregrada”, compara.
Por isso, garante que o presépio traz “fundamentalmente uma mensagem de paz, mas também uma mensagem profundamente ecológica, porque é um bocadinho o retomarmos quase o mundo no seu equilíbrio, onde todos têm lugar e onde não há competição, não se vê quem é o maior. Os pastores pobrezinhos e os Reis Magos que vêm lá do Oriente encontram-se ao mesmo nível”, acrescenta o franciscano.
"Até nós, na nossa experiência humana, a cada vez que uma criança nasce, vemos uma esperança nova para todos, é uma alegria"
No fundo, diz, o segredo está na manjedoura. “Não é por acaso que o presépio recuperou por as profecias da Idade do Ouro, de que falavam os autores como Horácio, autores pagãos, que punham na profetiza Sibila o mesmo anúncio: virá uma era nova, depois todos os reinos cairão, virá uma era nova em que um menino trará a paz. Esta ideia é transversal, é a ideia de que o mundo novo se reconstrói a partir do tal menino. Até nós, na nossa experiência humana, a cada vez que uma criança nasce, vemos uma esperança nova para todos, é uma alegria”.
"Essa temática é do que estamos a precisar hoje, sobretudo numa Europa e num país envelhecido, onde parece que não há lugar para crianças, parece que não há lugar para esta surpresa. Deixemos que ela aconteça, se calhar o mundo será um bocadinho mais alegre e mais tranquilo”, conclui.
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