Resolvi ponderar e pesar, nos dois pratos da balança da História de Espanha e da Europa, o notável contributo do rei que nasceu no exílio em Roma, mas que seria tremendamente cruel e injusto deixar morrer fora do seu amado país, que tanto lhe deve. Apesar da sua avidez económica e sexual, que se podem justificar pela solidão e falta de afectos na infância, longe do feliz núcleo familiar, e pela alegada escassez de recursos económicos para ombrear com os verdadeiramente ricos deste mundo, espero e estou certo, como reconhece o seu biógrafo Paul Preston, que «a História o absolverá». O catedrático da London School of Economics defende que «o incrível serviço que prestou ao seu país se irá impor ao negativo a que agora assistimos» pois foi ele que «se empenhou em que Espanha abraçasse a democracia. E isso, na minha opinião, vai estar por cima de todas estas… sujidades».

Paralelamente, ao mergulhar em todo o extenso material disponível do meu desorganizado arquivo, surgiram, inevitavelmente, recordações pessoais e familiares que não resisti em converter em memórias escritas e fotográficas. Estas, se bem que não façam parte do relato biográfico principal, são testemunhos dos longos anos da estada da família real espanhola em Portugal, foram contemporâneas do meu percurso nos cinco anos e meio na embaixada em Madrid ou das inúmeras ocasiões em que voltei a ter o privilégio de rever sua majestade o rei Don Juan Carlos I.

Ou, como escreve Ruy Castro: «Há muitas vidas em jogo numa biografia. Cabe ao biógrafo lutar por elas, com a única arma que lhe é permitida: a verdade.»

Devido a pressões de Franco, que não queria que os condes de Barcelona se fixassem definitivamente em Portugal, a polícia salazarista tinha advertido os monárquicos aqui residentes para que não fossem ao aeroporto, especialmente Sainz Rodríguez e Gil-Robles. Nessa mesma noite chegaram, procedentes de Sevilha, os pais de Doña María, que não se viam há dez anos, o infante Don Carlos de Borbón-Duas Sicílias e a infanta Dona Maria Luísa de Orléans, irmã da rainha Dona Amélia, última soberana de Portugal. A proximidade com Espanha já dava, assim, frutos à condessa de Barcelona.

Vários eram os aristocratas espanhóis que tinham casas em Portugal e na linha de Cascais, propriamente, pois foram muito úteis para fugir às atrocidades no país vizinho, durante a Guerra Civil. O simpático casal dos marqueses de Pelayo tinha uma pequena casa no Estoril, que puseram logo à disposição dos régios exilados, o que enfureceu Franco, que vira recusada a sua oferta da Quinta do Anjinho e do Packard, e insistia que a estada do pretendente à coroa seria «privada e temporal». Mas Salazar, a quem o conde de Barcelona foi apresentar cumprimentos, não queria satisfazer a vontade insistente de Franco, de expulsar a família recém-chegada e um lote de monárquicos, em que incluiriam os marqueses de Pelayo, acusada ela de promover uma campanha dirigida a destruir a unidade dos espanhóis, «fomentando divisões entre os elementos que integram o nosso movimento».

"É Desta Que Leio Isto"

"É Desta Que Leio Isto" é um grupo de leitura promovido pela MadreMedia e por Elisa Baltazar, co-fundadora do projeto de escrita "O Primeiro Capítulo”.

Lançado em maio de 2020, foi criado com o propósito de incentivar à leitura e à discussão à volta dos livros. Já folheámos as páginas de livros de autores como Luís Sepúlveda, George Orwell, José Saramago, Dulce Maria Cardoso, Harper Lee, Valter Hugo Mãe, Gabriel García Marquez, Vladimir Nabokov, Afonso Reis Cabral, Philip Roth, Chimamanda Ngozi Adichie, Jonathan Franzen, Isabel Lucas, Milan Kundera, Joan Didion, Eça de Queiroz e Patricia Highsmith, sempre com a presença de convidados especiais que nos ajudam à discussão, interpretação, troca de ideias e, sobretudo, proporcionam boas conversas.

Ao longo da história do nosso clube, já tivemos o privilégio de contar nomes como Teolinda Gersão, Afonso Cruz, Tânia Ganho, Filipe Melo e Juan Cavia, Kalaf Epalanga, Maria do Rosário Pedreira, Inês Maria Meneses, José Luís Peixoto, João Tordo e Álvaro Laborinho Lúcio, que falaram sobre as suas ou outras obras.

Para além dos encontros mensais para discussão de obras literárias, o clube conta com um grupo no Facebook, com mais de 2500 membros, que visa fomentar a troca de ideias à volta dos livros, dos seus autores e da escrita e histórias que nos apaixonam.

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Neste particular, Carrero Blanco alertou Nicolás Franco para o facto de ter informações de que «a marquesa mantinha relações de amizade com a mulher do presidente Carmona, pelo que se deveria ter tacto e discrição». Salazar destacou um polícia da PIDE, João Costa de Almeida, com o argumento de que era segurança do conde de Barcelona, que o seguia para todo o lado e tomava nota das pessoas com quem se avistava.

Pedro Carvajal revela, curiosamente, o que Gil-Robles, que não conhecia pessoalmente o pretendente, escreve no seu diário:

«Recebe-me o rei na sua residência do Estoril. É o meuprimeiro contacto pessoal com ele, e devo dizer, com plena sinceridade, que me deixa a mais grata impressão. Afável, jovial, inteligente, sério. Sabe ouvir e sabe perguntar. Mostra-se informado dos problemas básicos e não desdenha pedir conselho. Sobre tudo, dá-me a impressão de um homem formal, sério, amante da verdade, hostil ao que sejam deslealdades, manobras e habilidades de mau gosto. Diferentemente do seu pai, que nasceu rei, Don Juan formou-se na magnífica escola da desgraça. Em vez de adulação desde o berço, conheceu as perseguições, as deslealdades e até faltas de dinheiro. Ainda é jovem, carece de experiência e precisa de empapar-se em certos princípios básicos; mas a primeira matéria é excelente e adivinham-se nele qualidades fundamentais que, devidamente desenvolvidas, podem dar um grande rei.»

E visto a esta distância no tempo e na História teriam dado, certamente, se o destino não lhe tivesse pregado a partida de ser filho de rei, pai de rei, mas nunca ter reinado. Voltando às detalhadas memórias da condessa de Barcelona, a senhora recorda:

«No início os Rocamora e nós vivíamos numa casa que era dos marqueses de Pelayo. Chamava-se Papoila, que em português significa amapola. Desde ali organizámos a vinda das crianças e procurámos outra onde pudéssemos estar todos, porque a que tínhamos era muito pequena. Em Abril mudámo-nos para Bellver, que era do visconde de Feijó, um senhor português. As crianças chegaram num avião que tivemos de fretar, porque havia muita coisa para trazer e não se podia passar por Espanha. Vinham com Petra, mi doncella del alma, Luis Zapata e duas señoritas, uma espanhola e outra austríaca, o cozinheiro, o cão, um scottish-terrier simpaticíssimo, que tivemos muitos anos91. Todos gostámos de Portugal desde o primeiro momento.»

Bem comparava Doña María a sua vida à de um caracol, sempre com a casa às costas, pois, «ao cabo de um ano, o visconde de Feijó disse-nos que, muito a seu pesar, tínhamos de deixar Bellver, porque Dom Duarte de Bragança que, em última análise era o seu rei, estava à procura de casa, e ele queria deixar-lhe a sua.

Compreendemos, mas… outra vez de mudança! Fomos para São João do Estoril, para uma casa que se chama La Rocha, onde tinham vivido Juan Antonio Ansaldo, o aviador, com a sua mulher. A casa era muito agradável, com uma esplanada em frente e depois, a pique o mar. O mal é que tinha uma humidade espantosa.

Nós já tínhamos visto uma casa que tinha sido o clube de golfe. Nessa altura, tinha só um quarto no primeiro andar e um terraço imenso. Rocamora arranjou-a, e no terraço construíram quartos de lado e ao fundo. De um lado estavam as raparigas, com a sua casa de banho; do outro lado, os rapazes, igual. E nesse andar estavam também as señoritas, e dois quartos de serviço.A casa era muito simpática. Primeiro arrendámos e depois, dez anos mais tarde, comprámos. Custou-nos um dinheirão arranjá-la! O nome de Giralda pusemo-lo entre Juan e eu, porque assim se chamava o iate de Alfonso XIII e a minha Giralda, a de Sevilha.

Pouco tempo depois da nossa chegada, talvez em Maio, chegou o rei Umberto de Itália. Pouco depois vieram os condes de Paris, meus primos, e também Dom Duarte, que estava casado com uma irmã da condessa de Paris e que vieram desde a Alemanha, para se estabelecerem perto de Coimbra. A família real portuguesa tinha uma relação muito correcta com o governo português. Claro que, sempre no seu lugar, sem aspirações de nenhum tipo. Só se ocupando de coisas culturais, da Ordem de Malta e tudo isso.

Os condes de Barcelona viviam no Estoril com uma certa austeridade, «o que não impedia, no entanto, os convites constantes para cocktails, festas, saraus esafaris» Quando a família se reuniu em Portugal, a mais velha, Pilar, tinha 10 anos, Juanito 8, Margarita 7 e Alfonso 5. Os primeiros anos do exílio português, sem muitos luxos mas perto dos seus, foram citados por Don Juan Carlos a vários biógrafos como as últimas recordações de felicidade, sobretudo nas férias da sua infância e puberdade. «A constante da sua vida foi que o peso do destino o impedia já que a felicidade fosse completa.»

Num livro hoje difícil de encontrar, El Rey en Estoril, José Antonio Gurriarán104 descreve a emoção e o entusiasmo do príncipe, vindo da Suíça, no trajecto de Lisboa ao Estoril, ao longo do Tejo, passando por Algés, Cruz Quebrada, Oeiras, Carcavelos:

«A Juanito tudo lhe parecia maravilhoso: as casas multicoloridas pegadas à estrada, os barcos dos pescadores varados à espera de recolher as redes, os grandes transatlânticos que entram e saem de Lisboa, o pequeno comboio que corre paralelo ao Tejo… Ao passar por São João do Estoril, na ribanceira da chamada Praia da Poça, Don Juan assinala um edifício sobre o mar, como um palácio com quatro minaretes cónicos. Diz-lhe que este será o seu colégio e o do seu irmão. Juanito, tudo o que vê lhe parece bonito, incluindo o centro de ensino, que substituirá os marianos de Ville Saint-Jean de Friburgo.»

O Colégio Amor de Deus era uma escola dirigida por freiras de uma congregação fundada em Zamora, pelo padre madrileno Jerónimo Usera, que acolhia os filhos das classes pobres da zona, os da Casa Pia, e outros oriundos das colónias portuguesas de África e Ásia. Don Juan e Doña María queriam que os dois filhos aprendessem a falar bem o castelhano, pois ambos pronunciavam os erres à maneira francesa, o que Don Alfonsito nunca perdeu.

Por outro lado, era vantajosa a presença de crianças de diferentes classes sociais e nacionalidades, para que o príncipe e os infantes conhecessem melhor o mundo real que os rodeava. Acrescia que podiam ir a pé desde casa, e aí Don Juan Carlos irá encontrar outros espanhóis de quem ficará amigo, como os irmãos Joaquim e António Eraso (este virá a ser o melhor amigo de Don Alfonsito), filhos de um diplomata; José María, Jaime, Henrique e Xavier, filhos de José María Gil-Robles e de sua mulher, Carmen Gil Delgado. A este grupo foram-se juntando os vizinhos portugueses, como o Babá Espírito Santo (cujos pais eram amigos dos condes de Barcelona), os irmãos Jorge e Maná Arnoso, Teresa Pinto Coelho e mais tarde Francisco Pinto Balsemão.

De bicicleta, os dois irmãos circulavam pelo Estoril, e na Rua Doutor João das Regras entravam no amplo e belo jardim da casa do Carlos (Litos) Baptista da Silva, que tinha um lago no meio da frondosa vegetação e um poço original, construído segundo um modelo italiano de Miguel Ângelo. O caseiro queixava-se, às vezes, dos vasos grandes derrubados e partidos na improvisada gincana em volta do lago. Juanito e Alfonsito também gostavam muito de dar pontapés na bola numa praceta que ficava entre a sua casa e a de Luís de Albuquerque Sousa Lara, numa época em que não havia quase trânsito nenhum e as crianças brincavam na rua. A bola saltava, constantemente, para o jardim dos Sousa Lara, estragandoa colecção de estrelícias que ele e a mulher tanto apreciavam.

Num dia em que passou pelo portão o conde de Barcelona, Luís Sousa Lara não se conteve e explicou ao pretendente ao trono espanhol o que se passava. Don Juan respondeu-lhe que se voltasse a acontecer tinha autorização sua para lhes dar uns açoites. A bola voltou a saltar o muro, como habitualmente, e a destroçar uma das suas preciosas estrelícias. Furibundo, Luís Lara saiu do portão, meteu a cabeça dos pequenos entre as pernas e sacudiu-os com um bom par de açoites. Passaram os anos, mas não as memórias da infância. Certa noite, o rei Juan Carlos I jantava com um grupo no Horcher, em Madrid, e no mesmo restaurante estava Luís Sousa Lara com o seu neto António, que, quando soube, mandou um criado com um bilhete dizendo que gostaria imenso só de o cumprimentar. O rei mandou-o chamar imediatamente, abraçou-o e apresentou-o assim aos seus amigos:

«¿Sabéis quién está aquí? El único hombre vivo que se puede orgullecer de haber dado unos azotes en el culo al rey de España.»

Livro: "O Rei Sem Abrigo, Dom Juan Carlos I de Espanha"

Autor:José de Bouza Serrano

Editora: Oficina do Livro

Data de Lançamento: 23 de janeiro de 2024

Preço: € 19,90

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O único campo de futebol era o do colégio dos Salesianos, no Estoril, e os pais de várias crianças alugaram um terreno onde colocaram duas balizas, o denominado Campito, em que organizavam grandes campeonatos em que todos jogavam, incluindo a infanta Pilar, que era uma temível guarda-redes. Jogavam novos e velhos, rapazes e raparigas, homens e mulheres. Quem não dispunha de tanto tempo para jogar era o príncipe, porque depois das horas passadas no Amor de Deus tinha aulas suplementares na Vila Malmequer com o seu preceptor, mas no Verão de 1946, Don Juan teve uma agradável surpresa, como homem aficionado ao mar e à vela, pois um industrial de Bilbau, Peru Galíndez, colocou, generosamente, à disposição do pretendente o seu barco, El Saltillo com a respectiva tripulação, para que a família real pudesse dispor durante os meses de Verão. Como recordava o amigo íntimo de Don Juan Carlos, José Manuel Espírito Santo, recentemente falecido (2023), «o Saltillo era um barco que chegava a Cascais para veranear em meados de Junho e partia em Setembro.

A chegada do Saltillo era para nós, os mais novos, o começo da época de Verão». Um grupo de monárquicos tinha oferecido ao príncipe uma pequena embarcação, o Sirimiri, que despertou, desde criança, uma grande afeição marinheira, que perdura no rei Don Juan Carlos que, nos seus 85 anos, e apesar das suas limitações de mobilidade, ainda pretende participar em regatas. Anteriormente, recebera lições de vela de António Vasco de Mello (Sabugosa), mais tarde conde de São Lourenço. no Clube Naval de Cascais, num escaler de 12 pés.

Partilhou com os seus amigos portugueses Bernardo (Maná, já falecido) e o irmão Jorge Arnoso o fascínio do mar. Maná, da mesma idade do príncipe, fez parte da tripulação do Saltillo com 40 anos, por decisão do conde deBarcelona, que quando soube que ele se tinha atirado vestido à água para recuperar um balde que caíra no mar, lhe disse: «A partir de agora fazes parte da minha tripulação.

Mas voltemos às memórias da condessa de Barcelona, que recorda:

«Para Juan a vida era muito dura. Ele tinha renunciado à sua carreira naval para cumprir com o seu dever, e resultava que não podia fazer nada. Em Portugal, com o mar sempre ao lado, tinha uma nostalgia enorme por navegar. Mas nós não podíamos dar nos ao luxo de comprar um barco. Por isso, para ele e para todos nós, foi uma bênção que nos emprestassem o El Saltillo. Era de uns senhores encantadores de Bilbau, os Galíndez, e no Verão de 1946 disseram a Juan que lhe emprestavam o barco. Juan não queria acreditar, mas aceitou encantado. No dia em que estávamos à espera que chegasse, vivíamos ainda em Belver, e passámos ali todo o dia olhando o mar e esperando. Nessa época havia muito poucas construções e desde casa via-se muito bem o horizonte. De tarde, de repente, Juan disse: “Aí vem o barco!” e saiu correndo como uma criança. Com efeito, ali ao longe, às vezes, via-se um pedaço dos mastros. Descemos todos ao cais, chegou o barco, e assim começou tudo!»