Foi no Le Consulat, no Largo Camões, em Lisboa, que nos sentámos com o duo. Ali onde o fadista e o pianista fizeram a ronda de imprensa. E não muito longe do sítio onde há dois anos havíamos entrevistado Camané. Esse dia veio há memória pelo contexto em que aconteceu. O país não estava sossegado, os incêndios de outubro ainda lavravam e as notícias eram negras. Foi com esta inquietude que começou a entrevista, mas cedo cedeu espaço ao sossego que viria a ditar o tom desta conversa.
O mote era "Aqui está-se sossegado", poema-título de Fernando Pessoa, reeditado neste disco que junta onze temas retirados ao cancioneiro do fado ou à carreira de Camané e cinco inéditos nunca antes gravados. Registo que chega a álbum depois de mais de duas dezenas de espetáculos pelo país e do reencontro de Camané com Mário Laginha. Mas não só. Também do reencontro do fado com o piano.
Aqui está-se sossegado,
Longe do mundo e da vida,
Cheio de não ter passado,
Até o futuro se olvida.
Aqui está-se sossegado.
Qual é a vossa definição de sossego?
Camané (C): "Aqui está-se sossegado" é uma música do meu bisavô [José Júlio Paiva], que a terá feito em 1918. O título da música original era "Fado Espanhol" e o poema adaptei-o de um do Fernando Pessoa. Nunca tinha ouvido a voz do meu bisavô, até há quatro anos quando disse o nome dele a um colecionador que tinha o disco e que me deu para ouvir. O poema do Pessoa tem a ver com o agora, com o não ter culpa do passado ou medo do futuro. O sossego é sentirmo-nos bem com o que estamos a fazer. E este sossego também acontece porque não pensámos fazer um disco; pensámos fazer concertos. De repente, quando fomos para o disco, foi um sossego porque já tínhamos trabalhado imenso. Normalmente vamos para um disco muito stressados.
Mário Laginha (ML): Acho que havia vários sossegos, na realidade. Estes todos que o Camané disse e ainda o facto de sermos só dois. É sossegado, não há uma grande confusão no palco; os ensaios de som não são intermináveis, tudo é feito com algum sossego e intimismo.
Em que circunstância descobriu o disco do bisavô?
C: Já tinha ouvido falar sobre o meu bisavô em livros, mas nunca tinha ouvido a voz dele. O meu pai falava nele, mas nunca o tinha ouvido. Há um colecionador do norte, José Melícias, a quem disse o nome dele. E ele tinha um disco que andou perdido nos Estados Unidos. Não me deu o disco, mas fez-me uma cópia. Foi engraçado.
A vossa ligação e cumplicidade musical já tem alguns anos. Dela destaca-se o espetáculo "Vadios", em 2008, no CCB, do qual fez também parte Bernardo Sassetti. Mas já havia história para trás?
C: Já nos cruzamos há mais de 20 anos. Com algumas participações minhas em espetáculos do Mário e do Mário nos meus concertos [em 2009 rescreveu temas do fadista para serem tocados pela Orquestra Metropolitana de Lisboa num outro concerto no CCB]. Mas a primeira coisa que fizemos juntos foi um lançamento de um carro na Culturgest, uma ideia do Manuel Faria, dos Trovante, que na altura tinha uma produtora que trabalhava no meio da publicidade.
ML: Lembro-me dele [Manuel Faria] me telefonar e dizer: 'adorava que fizessem uma coisa juntos e arranjei aqui uma coisa...'. A verdade é que foi algo meio descontraído, em que tocámos uns cinco-seis fados, e correu muito bem. Esse foi o ponto de partida, talvez há mais de 17 anos.
Numa entrevista cinco anos depois do espetáculo "Vazios", o Camané adiantou que "estava previsto" um disco a três, que os juntaria ao Bernardo Sasseti...
C: Estava previsto irmos naquele ano para estúdio, estava. Depois, de um momento para o outro, recebi uma chamada, a notícia...
É por essa razão que este disco surge apenas uma década depois?
C: A demora do espetáculo, porque a ideia não seria o disco.
ML: Isto é outra coisa, não é um substituto. Nestas coisas não há substituições. Ou era assim ou não era. Claro que isso foi importante, foi muito importante e sinto que aprendi bastante sobre fado nessa época por trabalhar para esse espetáculo. Uma pessoa vai sempre aprofundando e melhorando.
Aprender em que sentido, pode dar um exemplo?
ML: No fado. Há pessoas que podem pensar que se calhar isto é um disco de fusão, entre fado e jazz. Mas não é. É um disco de fado. Tentei compreender como tocar estas canções, ouvi muito nos discos do Camané o Carlos Manuel Proença e o José Manuel Neto. Acho que eles são uma espécie de Rolls Royce a tocar, no sentido que soam tão bem e tão dentro do fado... Ouvi muito e experimentei muito. E percebi que o piano nunca iria substituir a viola e que teria de fazer qualquer coisa que legitimasse a sua existência. Esse foi o trabalho que fiz no último ano, o de aprofundar a forma de poder tocar fado, ao piano, com o Camané.
Porque um dos objetivos era o de trazer o fado às suas origens, tenho lido. Onde é que começa a história do fado ao piano e quando é que deixa de ser habitual ouvi-los juntos?
C: Não temos esse conhecimento. Dizem os historiadores que o fado começou por ser tocado ao piano. Agora percebemos, depois do trabalho feito, que funciona. E funciona muito bem. Porque há uma série de características que o fado tem e que depois de trabalhadas ao piano funcionam super bem. Os silêncios do fado ficam super bem ao piano.
ML: Já há muito tempo que deixou de existir o fado acompanhado ao piano. Nem há registos...
Antes de chegarem ao disco, percorreram o país.
C: Com espetáculos ao ar livre e tudo.
Os vossos públicos são diferentes, acredito. Como tem sido a receção?
C: Tem sido ótima.
ML: É incrível. Isso acontece várias vezes e tem muita graça, as pessoas têm experiências musicais e backgrounds como ouvintes muito diferentes. Perante uma situação como esta, acho que ouvem de maneiras não tão diferentes assim. Quer dizer, a música chega-lhes, toca-lhes e a reação é super emotiva e calorosa. Aquela coisa dos assobios e dos gritos acontece. E não é nada que possa dizer que vem do meu público ou do Camané. Muitas vezes, quem vai aos nossos espetáculos são pessoas que não estão a ser preconceituosas. E acho que há mais gente que não é. Pessoas que não têm medo de ouvir o fado acompanhado ao piano em vez de ser a viola e guitarra.
Isso poderia ser um preconceito? Nos últimos anos o fado tem sido explorado em tantas vertentes...
C: Muitos dos compositores clássicos do fado, todos eles compunham música ao piano e depois é que era transportado para a guitarra portuguesa.
ML: Não estava a dizer que achava que há um problema em relação a isso, acho que não. Mas eu podia falar de jazz e falar de preconceito.
C: Quando comecei a cantar fado, havia um preconceito em relação ao fado em si. Os meus amigos não ouviam fado, diziam que era um género associado ao regime. Havia um preconceito enorme que prejudicou um bocado o fado. Mas quando as coisas são boas o que conta é a verdade. E a verdade fica.
Como é que é a vossa relação em palco?
ML: É normal, não penso nela. Estou a tocar com um cantor e a comunicar com ele.
C: Há uma comunicação muito forte, e com o tempo foi tornando-se cada vez melhor.
ML: Às vezes perguntam-me se gosto de tocar com outra pessoa, porque tenho duos, como com o Burmester. Quando dois músicos estão em cima do palco, a primeira partilha é entre eles; o público é testemunha dessa partilha e depois da partilha que fazemos com ele. Isso é o mais importante. Acho que é isso que fazemos. Estamos em cima do palco e a comunicar um com o outro.
Porque o princípio foi um espetáculo, e ainda não falámos sobre isso, em que momento é que decidem que é altura de colocar tudo em disco?
C: As coisas começaram a acontecer e houve uma altura em que pensámos que se calhar era o momento; era um momento importante das nossas vidas. Gravámos já com muitos concertos de rodagem, o que fez com que fossemos para estúdio, gravássemos um take, dois takes e estava feito.
ML: Não aconteceu aquela coisa do corte e costura, de aproveitar este bocadinho aqui e ali.
C: Tocámos à primeira do princípio ao fim. E gravar é sempre aquele stress, um tipo acaba de aprender os temas e vai gravá-los, os temas não têm a mesma vivência. Aqui, foi um sossego gravar.
ML: Lá está, o sossego vem sempre ter connosco.
Camané e Mário Laginha levam "Aqui está-se sossegado" ao vivo no Coliseu dos Recreios, em Lisboa, a 20 de dezembro.
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