Com cerca de 1,80 por 1,20 metros, o quadro de pastel sobre papel pintado por Paula Rego em 2006 faz parte de um lote de 35 peças de arte contemporânea que vão ser colocadas à venda em leilão na quinta-feira, anuncia a leiloeira no seu ‘site’.
Ao longo da carreira, Paula Rego construiu uma linguagem visual inspirada pelas visões literárias e culturais do século XIX, que entrelaça várias referências históricas com elementos da sua própria vida.
É o caso da peça que vai a leilão, um quadro que espelha a estética de uma época passada e retrata uma cena inspirada no célebre romance “Nada” da escritora espanhola Carmen Laforet, publicado originalmente em 1945, e posteriormente traduzido para inglês, em meados dos anos 2000, a versão que Paula Rego leu.
O texto segue a história de uma menina órfã, Andrea, que vai viver para casa de uma tia, em Barcelona, cidade onde inicia uma série de amizades complexas e onde descobrirá um mundo muito diferente do seu, feito de personagens ambíguas e conturbadas, que vivem, numa humilhante pobreza, os cruéis anos da ocupação franquista.
A família de Andrea é, como Paula Rego descreve, “a família mais disfuncional […] e pobre. A tia é uma mulher difícil e uma figura de autoridade, mas é também vulnerável porque tem um caso com um homem casado”.
Ultrapassando os contornos específicos do romance de Laforet, Paula Rego incorpora a sua própria imaginação dentro do quadro existencial, com sinais das suas experiências vividas em Portugal e da vida posterior em Londres, uma vez que, quando estudava na Slade School of Fine Art, entre 1952 a 1956, a artista estava também a familiarizar-se com uma cidade desconhecida, enquanto aperfeiçoava o seu ofício artístico.
Após os estudos, surgiu como a única artista feminina da London School no início dos anos 1960, trabalhando ao lado de artistas homens tão célebres como Francis Bacon, Frank Auerbach, Lucian Freud, e David Hockney. Foi também nesta altura que conheceu o marido, o artista britânico Victor Willing (1928-1988).
“The Aunt (Nada)” foi incluída na maior retrospetiva (na altura) do trabalho de Paula Rego, que viajou do Museu Rainha Sofia, em Madrid, para o Museu Nacional de Mulheres nas Artes, em Washington, nos Estados Unidos, entre 2007 e 2008.
Em junho deste ano, a artista vai voltar a chamar a atenção do público, através de uma exposição monográfica na Tate Britain, em Londres, a maior e mais ambiciosa até à data, destaca a casa de leilões.
Embora “The Aunt (Nada)” não seja autobiográfica, está, como muitas outras obras da artista, enraizada em experiências e memórias pessoais, concebendo fantasias sinistras e realidades transformadas.
Nascida em Lisboa, em 1935, Paula Rego foi deixada aos cuidados da avó quase imediatamente após o nascimento – quando os seus pais se mudaram para o Reino Unido por causa do trabalho do pai — e cresceu num lar de mulheres.
Foi só no início dos anos 1950 que se mudou para Inglaterra e adotou Londres como sua residência principal.
Na década de 1970, sentindo-se sem inspiração, Paula Rego começou a viver um período de tumulto interior, o que resultou, três anos depois, no seu envolvimento com a psicologia analítica (ramo da psicologia iniciada por Carl Jung), que lhe reacendeu o interesse por contos populares e histórias.
Graças a uma bolsa de investigação da Fundação Calouste Gulbenkian, em 1975, e a um período de investigação de seis meses na Biblioteca Britânica, Paula Rego aprofundou mais a origem dos contos populares.
Em julho de 2015, um quadro de Paula Rego no qual a pintora aludia à morte do marido, em 1988, foi arrematado num leilão em Londres por 1,6 milhões de euros, estabelecendo um recorde da artista portuguesa.
Uma outra obra da artista, “Looking Out” (1997), um pastel sobre papel em suporte de alumínio, com estimativa entre 707 mil euros e 989 mil euros, foi arrematado no mesmo leilão por uma licitação final de 1.360.941 euros.
Em fevereiro de 2016, realizou-se outro leilão em Londres de uma obra de Paula Rego, “The Bullfighter’s Godmother” (“A madrinha do toureiro”), datado de 1990-91, mas a licitação de 420 mil libras (541 mil euros) foi insuficiente para se efetivar a aquisição do quadro, que estava estimado entre 500 mil e 700 mil libras (687 mil e 961 mil euros).
Um dia depois, a artista viu um quadro da série “Menina e o Cão” ser leiloado por 137 mil libras (174 mil euros), um valor acima da estimativa de base.
Ainda no mesmo mês, novo leilão em Londres, desta vez de um dos raros autorretratos da pintora, avaliado por uma estimativa base de entre 200 mil a 250 mil libras (257 mil e 321 mil euros), voltou a falhar a venda.
Mais recentemente, em julho de 2018, um quadro intitulado “A Ilha do Tesouro” foi vendido num leilão, em Lisboa, por 200 mil euros.
Paula Rego foi elevada, em 2004, à Grã-Cruz da Ordem Militar de Sant’Iago da Espada de Portugal pelo Presidente Jorge Sampaio e em 2010 foi distinguida pela rainha Isabel II, com o grau de Dama Comandante da Ordem do Império Britânico, pela sua contribuição para as artes.
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