CAPÍTULO 1

Pré-pós-tudo

Escrever História década a década é como tentar colocar uma rede para o cabelo num polvo. Quanto mais se enfia o material recalcitrante da História dentro de uma fatia bonitinha de dez anos, mais esse material escorre por todo o lado. As forças que moldam as nossas vidas atuam mais profundamente, e durante mais tempo, do que qualquer perspetiva de dez anos consegue detetar. Se escavar- mos minimamente as causas de qualquer acontecimento histórico, damos por nós a deslizar para trás no tempo, em busca de solo firme.

A década é um produto arbitrário do tempo calendarizado, que nasce de um acaso, o facto de termos dez dedos nas mãos e nos pés, a origem do nosso sistema numérico decimal. Se os nossos corpos tivessem evoluído de outra forma, as livrarias estariam cheias de volumes que dividiriam o caos da História em conjuntos bem alinhados de sete, doze ou quinze anos — todos eles, no fundo, unidades arbitrárias.

A nossa atração pelas histórias de décadas isoladas é um fenómeno relativamente recente, um produto da miopia histórica da idade moderna e do nosso desejo de reduzir a realidade a fragmentos fáceis de processar. Se olharmos retrospetivamente e tentarmos recordar as grandes décadas da História, quanto mais para trás recuarmos, mais difícil o exercício se torna. O século XX está cheio de boas décadas, em que aconteceu muita coisa. Os anos 80 da ganância, os anos 70 da ansiedade, os anos 60 das grandes mudanças, até aos anos 30, das crises profundas, e aos «loucos» anos 20. Mas, assim que ultrapassamos, por exemplo, o limiar dos anos 90 do século xix — a era do julgamento de Oscar Wilde e da ruína dos valores vitorianos, afinal não tão intemporais quanto isso —, décadas que sejam facilmente reconhecíveis tornam-se difíceis de encontrar. Ninguém, fora do circuito das conferências académicas, fala sobre a década de 70 do século XIX, e muito menos sobre a de 70 do século XV.

E, no entanto, não há como negar o facto de que temos dez dedos nas mãos e outra dezena de dedos nos pés. Enquanto unidade histórica, a década tem um peso agradável. Assenta bem na palma da nossa mão. Uma única década normalmente contém pelo menos uma ou duas mudanças de governo, uma ou duas inovações tecnológicas capazes de transformar o mundo, algumas novas tendências sociais significativas, uns quantos movimentos culturais importantes e meia dúzia de mortes de grandes figuras históricas. Por mais que seja uma idealização arbitrária, a década revela-se, como dizem os antropólogos, um bom instrumento para se pensar um determinado período.

Isto é particularmente verdade no caso da década de 90 do século XX, o tema deste livro. Os anos 90 já vêm devidamente embalados como década — não exatamente uma fatia perfeita de dez anos, mas quase. Começaram no outono de 1989, com a queda do Muro de Berlim e o colapso rápido, e quase sem derramamento de sangue, da União Soviética. Terminaram a 11 de setembro de 2001, com os ataques ao World Trade Center, em Nova Iorque, o espetacular assalto levado a cabo por uma seita islâmica milenarista, com o objetivo de acabar com a hegemonia da América e do Ocidente Cristão, substituindo-o por um califado global. Por um lado, um muro deitado abaixo e o fim da Guerra Fria; por outro, torres a ruir e o início da «guerra global contra o terrorismo».

A minha intenção é explorar o que aconteceu entre estes dois acontecimentos definidores de uma época. Para muitos, no Ocidente próspero, os anos 90 foram um tempo de relativa estabilidade política e otimismo cultural, talvez a última época com essas características na memória recente. Foi a década em que Francis Fukuyama, um cientista político norte-americano, declarou que a História tinha chegado ao fim com a queda do comunismo e a afirmação definitiva da democracia liberal, que se espalharia inevitavelmente pelo mundo inteiro. As vitórias eleitorais de Bill Clinton, nos Estados Unidos, e de Tony Blair, no Reino Unido, assinalavam o triunfo da «terceira via» política, que pretendia substituir as divisões ideológicas do passado por uma visão inclusiva de modernização e progresso. Partidos políticos moderados, tanto da esquerda como da direita, ocupariam supostamente o centro do palco político. Esta era a muito anunciada idade «pós-ideológica», na qual a política se fundiria cada vez mais intimamente com o universo das relações públicas e das indústrias da comunicação. A consciência de classe era algo de antiquado; e a participação dos eleitores decrescia significativamente em grande parte do mundo ocidental.

E, no entanto, a famosa frase de Harold Macmillan sobre o papel dos factos inesperados na História continuava ser verdadeira. Em 1963, quando um jornalista perguntou ao primeiro-ministro britânico o que poderia eventualmente pôr em causa os planos do seu governo reformista, ele respondeu: «Acontecimentos, meu rapaz, acontecimentos.» Durante os anos 90, os acontecimentos acumularam-se, como é hábito. Os presidentes Bush e Clinton enviaram forças militares dos Estados Unidos para o estrangeiro em nada menos que sete ocasiões diferentes, da Primeira Guerra do Golfo, em 1991, à Somália, ao Haiti, à Bósnia, novamente ao Iraque, em 1998, ao Sudão, ao Kosovo e, por fim, para invadir o Afeganistão depois do 11 de Setembro. Os anos 90 assistiram à queda de vários ditadores, de Pinochet, no Chile, a Suharto, na Indonésia; à libertação de Nelson Mandela da prisão; ao fim do apartheid, na África do Sul; e ao Acordo de Sexta-feira Santa, em 1998, que pôs fim ao período de conflitos na Irlanda do Norte. Genocídios no Ruanda e no Kosovo assinalaram o triste regresso aos sistemáticos massacres em grande escala que marcaram o período mais negro da História europeia durante o século XX. Enquanto a Europa e a América do Norte gozavam os prazeres dúbios da anomia consumista e da leveza pós-moderna, a História ainda mostrava o seu rosto tenebroso noutras paragens.

"É Desta Que Leio Isto"

"É Desta Que Leio Isto" é um grupo de leitura promovido pela MadreMedia e por Elisa Baltazar, co-fundadora do projeto de escrita "O Primeiro Capítulo”.

Lançado em maio de 2020, foi criado com o propósito de incentivar à leitura e à discussão à volta dos livros. Já folheámos as páginas de livros de autores como Luís Sepúlveda, George Orwell, José Saramago, Dulce Maria Cardoso, Harper Lee, Valter Hugo Mãe, Gabriel García Marquez, Vladimir Nabokov, Afonso Reis Cabral, Philip Roth, Chimamanda Ngozi Adichie, Jonathan Franzen, Isabel Lucas, Milan Kundera, Joan Didion, Eça de Queiroz e Patricia Highsmith, sempre com a presença de convidados especiais que nos ajudam à discussão, interpretação, troca de ideias e, sobretudo, proporcionam boas conversas.

Ao longo da história do nosso clube, já tivemos o privilégio de contar nomes como Teolinda Gersão, Afonso Cruz, Tânia Ganho, Filipe Melo e Juan Cavia, Kalaf Epalanga, Maria do Rosário Pedreira, Inês Maria Meneses, José Luís Peixoto, João Tordo e Álvaro Laborinho Lúcio, que falaram sobre as suas ou outras obras.

Para além dos encontros mensais para discussão de obras literárias, o clube conta com um grupo no Facebook, com mais de 2500 membros, que visa fomentar a troca de ideias à volta dos livros, dos seus autores e da escrita e histórias que nos apaixonam.

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Após um período inicial de recessão, os anos 90 testemunharam um dos mais longos ciclos de crescimento económico dos tempos modernos, aproximadamente de 1992 até ao colapso da bolha dot-com (empresas que nasciam e cresciam na Internet), em 2000, e o choque provocado pelos ataques ao World Trade Center, em 2001. Este longo boom foi alimentado pelas mudanças tecnológicas e respetivos acréscimos de produtividade, mas em muitos países, especialmente nos Estados Unidos e no Reino Unido, os centros anglo-saxónicos dos grandes mercados livres internacionais, foi também impulsionada pela desregulação de vastas parcelas da economia, em particular a banca, as telecomunicações e o setor da energia. Em muitos sentidos, os anos 90 foram uma versão mais espertalhona e de bom gosto dos anos 80, um período de afirmação ruidosa da economia capitalista, mas desta vez dirigida por políticos centristas que pretendiam canalizar parte dos resultados de tal crescimento para programas sociais no campo da saúde e da educação.

Os anos 90 foram ainda a grande década da globalização, enquanto processo geopolítico mas também cultural. A União Europeia (UE) nasceu em 1993, o Acordo de Comércio Livre da América do Norte (North American Free Trade Agreement — NAFTA), em 1994, e a Organização Mundial do Comércio (World Trade Organization — WTO), em 1995. O Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Banco Mundial aconselharam os governos dos países em desenvolvimento a implementar reformas económicas neoliberais, muitas vezes ameaçando punir os dirigentes que as recusassem, fechando-lhes a torneira do crédito. As reuniões da WTO em Seattle, Praga e Génova enfrentaram enormes manifestações contra o modelo de globalização capitalista. Coligações improváveis de sindicatos, grupos religiosos, movimentos anarquistas e associações de defesa do ambiente criticaram a falta de controlo democrático, a erosão dos direitos dos trabalhadores e os pesadíssimos custos ambientais do capitalismo global. Políticos nacionalistas na Europa e na América começaram a conquistar espaço, na esfera pública, para um discurso virulentamente anti-imigração, como não se via há décadas. Os extremistas islâmicos usaram tecnologias de comunicação hipermodernas para criar redes descentralizadas e espalhar uma ideologia antimoderna, assente na pureza religiosa e na ideia de uma jihad violenta.

Nos anos 90, o futuro parecia estar sempre a chegar, todos os dias, com o crescimento da Internet, a vulgarização dos telemóveis, o primeiro mamífero clonado (a Ovelha Dolly) e o mapeamento do genoma humano, um feito pioneiro da capacidade científica humana, que foi alcançado antes do previsto devido ao aumento exponencial das velocidades de processamento informático. Comentadores e teóricos entusiasmaram-se com as possibilidades cada vez maiores que se abriam na nova era digital: Manuel Castells analisou as formas emergentes da «sociedade em rede», Nicholas Negroponte exaltou o potencial humano associado ao «ser digital», e os ciberteóricos apropriaram-se da visão tecnofeminista de Donna Harraway, no seu Um Manifesto Ciborgue. Antes das Cinco Grandes empresas tecnológicas [Apple, Amazon, Google, Microsoft e Meta (Facebook)] monopolizarem a Internet, o ciberespaço representava uma nova fronteira das possibilidades humanas. As revistas Wired e Mondo 2000 e comunidades online como a The WELL (The Whole Earth ’Letronic Link) defendiam uma ética do hacker libertário que encarava a identidade pessoal como um conceito maleável e as sociedades humanas como problemas que poderiam ser resolvidos
recorrendo a tecnologias inteligentes.

Muitas das manifestações culturais mais excitantes da década emergiram do uso criativo de novas tecnologias digitais, da cultura hip-hop do sampling aos sons futurísticos da música techno e das raves, passando pelos filmes de Hollywood como Parque Jurássico, Toy Story e Matrix. Os videojogos tornaram-se ao mesmo tempo uma indústria para as massas, que rivalizava com o cinema e a música no mercado do entretenimento, e uma forma de arte criticamente reconhecida, com os seus padrões de valor e de gosto, pelo menos em alguns segmentos. Esta foi também a época em que o underground se tornou mainstream. O grunge, o hip-hop, a Britpop, o cinema independente de David Lynch, Danny Boyle e Jane Campion, o conceptualismo arriscado dos Young British Artists, os desportos radicais: aquilo que em décadas anteriores estava reservado para os meios alternativos, e para as elites hipster, invadiu os espaços culturais mais expostos da MTV, dos jornais de maior circulação, dos cinemas multiplex e das galerias de arte com fundos públicos. Por um lado, isto criou uma sensação de revolta cultural, à medida que formas artísticas de vanguarda se infiltraram na consciência coletiva e causaram disrupções no statu quo; por outro, levou a debates sobre o «vender-se ao sistema» e os perigos da cooptação pelos grandes conglomerados da comunicação social.

***

A questão que se coloca ao historiador do passado recente é esta: seremos capazes de detetar um padrão nisto tudo? Haverá um desenho no tapete, uma ordem discernível para esta sucessão caótica de acontecimentos e tendências? Ou, para usar uma metáfora mais adequada, tendo em conta o momento histórico em causa, será que conseguimos discernir uma figura na imagem estereoscópica a que chamamos anos 90? Durante um breve período, essas ilusões óticas podiam ser encontradas em todo o lado, dos centros comerciais às revistas populares para adolescentes. Se olhássemos fixamente durante muito tempo para aquela densa confusão de pontos coloridos semelhante a um ecrã cheio de estática, outra imagem, tridimensional, acabaria por revelar-se. O que mais parecia uma mensagem de erro de uma impressora industrial convertia-se então num holograma resplandecente, representando uma nave espacial ou uma paisagem de fantasia. A loucura por estas imagens durou pouco, mas os pósteres estereoscópicos acabam por ser uma bela metáfora daquela época, não apenas porque misturavam um estilo visual vagamente hippy, e Op Art, com a tecnofilia dos primórdios da Internet — uma combinação típica dos anos 90 —, mas também porque representavam a dificuldade de ver as coisas com clareza. Era preciso ficar horas a cruzar os olhos antes de os elfos holográficos ou o carro desportivo começarem a surgir daquele emaranhado de cores. E acontecia o esforço redundar em nada. Por vezes, apesar da promessa de que uma visão escondida pairava ali por baixo, a superfície permanecia teimosamente opaca e sem qualquer significado.

No início do século XIX, os historiadores românticos procuraram encapsular as vastas e agitadas forças da História sob a forma de imagens únicas e intensas ou de indivíduos heroicos. William Hazlitt escreveu uma série de apontamentos biográficos de luminárias como Jeremy Bentham e William Wilberforce, que para ele encarnavam o «espírito da sua época». Hoje desconfiamos, e com boas razões, das teorias da História que se apoiam em tais «grandes homens»; acreditamos mais nas forças impessoais que moldam a experiência histórica — as estruturas sociais e condições ambientais que afetam o nosso comportamento e configuram as nossas identidades. Nem os maiores de entre os estadistas nem as personagens históricas mais célebres são escolhidos como símbolos dos momentos-chave da sua época. Poderemos chamar a isto o paradoxo Zelig, a partir da personagem de Woody Allen que está miraculosamente presente em todos os principais acontecimentos do início do século XX, mas à custa de não ter personalidade própria, ao fundir-se sempre com o tempo e o lugar em que se encontra.

Mas períodos distintos, até décadas distintas, continuam a ter as suas idiossincrasias e atmosferas, os seus próprios padrões históricos locais, como na meteorologia. Mesmo não se sabendo até que ponto eles redundam num «espírito da época» unitário, exis- tem sempre pontos de referência partilhados, experiências comuns que nos situam e ancoram no fluxo do tempo. A queda do Muro de Berlim, os últimos dias da presença britânica em Hong Kong, o fim do apartheid na África do Sul, a experiência de nos ligarmos à Internet pela primeira vez, o primeiro telemóvel que nos coube no bolso, a excitação de nos vermos arrastados pelo carácter revoltoso das culturas jovens, como o hip-hop, o grunge e as raves, estas são apenas algumas das coisas que deram forma ao que representou, para nós, estarmos vivos nos anos 90.

A melhor maneira de captar este sentido da História como sendo, ao mesmo tempo, uma força impessoal e uma experiência subjetiva é através da cultura. Podemos ficar a saber tanto, se não mais, sobre os anos 90 a partir da história dos videojogos de tiros na primeira pessoa ou do que foram os primórdios da pornografia online quanto pela leitura de mais um estudo sobre a presidência de Bill Clinton ou sobre a assinatura do Tratado de Maastricht. Ou, melhor ainda, é pela justaposição destes dois tipos de coisas — aconteci- mentos mundiais e cultura popular, CNN e MTV — que podemos alcançar uma verdadeira noção do que foi aquela época. Porque é assim que a maior parte de nós vive no mundo moderno: a saltar constantemente entre notícias e entretenimento, o que é sério e o que é disparatado, o alto e o baixo.

Livro: "Os Delirantes Anos 90"

Autor: James Brooke-Smith

Editora: Objectiva

Data de Lançamento: 10 de julho de 2023

Preço: € 21,95

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Se os anos 90 podem ser definidos de alguma maneira, então eles são certamente a «década do pré-pós-tudo», a transição entre o século XX analógico e o século XXI completamente digital. Esta foi uma era em que ainda líamos jornais em papel, telefonávamos aos nossos amigos a partir de uma linha fixa e nos dirigíamos a lojas físicas para comprar os últimos CD, livros e cassetes de vídeo. Mas foi também um tempo em que havia uma consciência cada vez maior do novo e vastíssimo sistema tecnológico que iria em breve invadir as nossas vidas, cujos radicais efeitos transformativos mal conseguíamos prever na altura. Esta foi a última época antes de tudo o que era sólido se esvair na atmosfera digital. Antes da chegada dos trolls, que poluem as caixas de comentários, e das acesas polémicas e guerras online. Antes da grande desintegração da política e da cultura em bolhas filtradas pelos algoritmos. Antes da partilha de ficheiros e dos serviços de streaming terem transformado a música, o cinema e a televisão numa torrente interminável de conteúdo barato. E antes de a fragmentação da comunicação social ter desgastado a própria ideia de uma cultura popular partilhada, com uma tensão produtiva entre o mainstream e as vanguardas, o centro e as margens.

Cada era moderna está destinada, não o duvidamos, a pensar que lhe coube um período único de aceleração. À medida que novas tecnologias emergem e as forças de produção económica avançam, sentimo-nos como se a própria vida quotidiana intensificasse o seu ritmo. Ainda assim, no caso dos anos 90, a confluência da mudança tecnológica com um boom económico prolongado, mais a rápida expansão e interconexão da economia global e a «terceira via» política pós-ideológica, criaram a sensação de que um novo mundo estava a surgir. Olhando para trás, a partir do momento presente, é impossível não ficar espantado com o sentido de efervescência social e cultural que definiu tantas coisas nesta época. Foi como se o código-fonte da História tivesse sido alterado, as grandes narrativas do século XX postas de lado, mas sem que nada com um peso correspondente fosse deixado no seu lugar. Este vácuo foi rapidamente preenchido por todo o tipo de sonhos utópicos, fantasias milenaristas, triunfalismos liberais e nostalgias revivalistas.

Hoje somos mais velhos, embora não necessariamente mais sábios. Vivemos num mundo pós-11 de Setembro. Constatámos que as despreocupadas afirmações de políticos norte-americanos sobre intervenções militares limpas e rápidas redundaram em conflitos de décadas no Afeganistão e no Iraque. Atravessámos a maior crise financeira desde os anos 20 do século passado e os anos subsequen- tes de austeridade económica. Testemunhámos o regresso do autoritarismo populista e a emergência da China como uma superpotência rival dos Estados Unidos. Vimos o utopismo digital dos primeiros dias da Internet ser substituído pelos receios quanto ao capitalismo de vigilância, pela ansiedade associada às redes sociais e por uma obliteração da capacidade de atenção. Ouvimos os avisos sobre a catástrofe iminente das alterações climáticas serem ignorados uma e outra vez.

Um dos debates históricos centrais sobre os anos 90 procura perceber se devemos encarar esta década como uma idade da prata perdida (não foi de certeza uma idade do ouro, mas, ainda assim, consideramo-la melhor do que a idade de latão que temos agora), uma era de tolerância liberal e consenso político, ou como o canteiro para os descontentamentos civilizacionais que enfrentamos hoje. Depois de muita reflexão e vários anos de diligente pesquisa, posso finalmente revelar a resposta: sim e não; ou seja, é as duas coisas e nenhuma delas. Sim, tendo em conta o presente estado do mundo, muitos de nós veriam com bons olhos um regresso à paisagem política bastante insípida dos anos 90. E, sim, é possível detetar nessa década as formas emergentes de alguns dos nossos atuais descontentamentos. Mas ambas as posições ficam limitadas pela sua insistência em julgar os anos 90 apenas em relação ao lugar em que estamos agora. Talvez fosse melhor tentar devolver aos anos 90 alguma da sua essência histórica, tentar ver essa década nos seus próprios termos. Mesmo o passado muito recente é como um país estrangeiro... e, no entanto, parece que tudo aconteceu ainda ontem.

CAPÍTULO 2

Surfar no fim da História

Se alguém me pergunta pelo meu livro preferido quando era novo, geralmente encontro logo uma resposta apropriada. «Oh», digo eu, «essa é uma grande pergunta», e ao mesmo tempo vou fazendo uma pesquisa mental rápida, à procura de algo que tenha a combinação perfeita de credibilidade intelectual e plausibilidade juvenil. «É difícil escolher só um exemplo», prossigo com um sorriso afetado, «mas provavelmente seria A Peste, de Albert Camus, ou O Sino, de Iris Murdoch». Sei que piso terreno firme com uma resposta destas, não apenas porque estes livros fizeram parte das minhas experiências de leitura formativa durante a adolescência, mas também porque correspondem exatamente ao tipo de ficção existencialista que costuma captar a imaginação moral de um adolescente.

Mas por mais que a minha resposta tenha um tom de autenticidade, só corresponde a uma meia-verdade, a uma hábil seleção dos factos disponíveis, pensada para evidenciar a faceta precoce do meu eu adolescente. A verdade é que eu passava, em miúdo, muito mais tempo a ver televisão do que a ler livros. Cresci, e tornei-me um ser humano com uma consciência moral, numa atmosfera em que a televisão era ubíqua. Havia momentos em que me perdia dentro dos livros, mas na maior parte do tempo, quando não estava na escola ou a conversar com amigos, ficava esparramado à frente do televisor. Fui um consumidor compulsivo muito antes da superabundância digital. Com apenas quatro canais disponíveis na TV analógica, durante grande parte dos meus anos de adolescência, via simplesmente o que estivesse a dar, durante horas. Vi comédias americanas, telenovelas australianas, dramas criminais bastante crus, sumptuosas séries históricas, as notícias da hora do almoço, as Notícias das Seis da Tarde, as Notícias das Nove da Noite, reportagens de investigação, docudramas, filmes clássicos, desportos a que ninguém liga, corridas de cavalos, futebol americano, aqueles bizarros programas experimentais de cinco minutos que eram emitidos depois das Notícias do Canal 4, a TV Rural, concursos, mais comédias americanas e, porque eram os anos 90, muitos episódios do Baywatch.

Baywatch foi o programa dos anos 90, a materialização estridente da ideologia californiana — liberdade pessoal, estilo de vida hedonista, humanitarismo softcore —, que no seu auge chegou a mil milhões de espectadores semanais em todo o mundo. É difícil encontrar um símbolo melhor da era da globalização do que um «drama de ação» filmado no Will Rogers State Park, no Sul da Califórnia, que era transmitido em todos os mercados televisivos regionais do mundo e visto por 18% da população mundial. Podem ter acontecido alguns deslizes quando os diálogos em inglês norte- -americano eram traduzidos para públicos estrangeiros — Alerte à Malibu! Mishmar Ha-Mifratz! —, mas a música do genérico era uma espécie de puro esperanto, uma alegre descarga de energia e desejo instantaneamente compreensível, de Quito a Teerão. Aparecia durante a melhor parte do programa, sem dúvida, justamente a sequência do genérico inicial, uma montagem delirante de grandes ondas, praias infinitas, torsos bem cinzelados, boias rodopiantes, decotes de proporções quase geológicas e planos repetidos de nadadores-salvadores a atirarem-se para as águas agitadas, a partir de vários tipos de embarcações rapidíssimas. Pelo menos durante uns dois minutos, todas as semanas, parecia mesmo que tudo ia «ficar bem», como a canção nos prometia.

Contudo, assim que se dissipa o efeito galvanizador do genérico inicial, não é preciso muito tempo para perceber que o verdadeiro conteúdo de um episódio normal de Baywatch está longe de ser inesquecível. A série deixou de ser emitida pela NBC, uma das maiores estações televisivas norte-americanas, após a primeira temporada, em 1990, devido aos fracos resultados em termos de audiência, mas continuou a ser produzida até 2001 como um título de baixo custo para o mercado de distribuição global. Como tantos outros produtos televisivos comerciais, a série Baywatch foi concebida para ser um papel de parede animado que captava a atenção dos espectadores apenas o suficiente para os conduzir entre aqueles que eram, em termos financeiros, os objetivos principais: os frequentes intervalos publicitários.

A fórmula narrativa era simples. Cada episódio cruzava duas histórias. A história A envolvia normalmente algum tipo de ação-aventura. O primo delinquente do Hobie vai surfar demasiado perto do molhe em risco de San Dimas e tem de ser salvo. Pessoas numa festa ilegal, num barco que serve de casino, caem borda fora e têm de ser resgatadas. Um fotógrafo submarino é atacado por algo que parece ser um monstro, e a equipa investiga. À semelhança de outras séries dramáticas norte-americanas que decorrem em lugares exóticos — como, por exemplo, Magnum, P. I., Hawaii Five-O e Miami Vice —, é difícil compreender por que razão a frequência de desastres naturais e conspirações criminosas não desvalorizou seriamente as propriedades de Malibu, nem trouxe má reputação àquelas zonas residenciais. A história B costumava ser mais pessoal, muitas vezes focando-se num problema emocional da vida de um ou mais dos membros da equipa de nadadores-salvadores. Namoros, parentalidade, adolescência, divórcio, imagem corporal, gravidez inesperada, toxicodependência, distúrbios alimentares, bem-estar animal — esse tipo de coisas. Parte da fórmula Baywatch resumia-se a isto: aventura e ação, combinadas com consciência social, tudo envolvido num embrulho berrante que cortava fatalmente as vazas a quaisquer intenções mais sérias que os argumentistas pudessem ter.

Na Grã-Bretanha, o programa era transmitido aos sábados, por volta das cinco, nesse horário favorável que ficava entre a atividade daquela tarde, fosse ela qual fosse, e o jantar. Sei que isto decerto não aconteceu, mas na minha memória estou sempre a ver Baywatch no outono ou no inverno. A noite chega mais cedo, está frio lá fora, e eu acabei de chegar de um momento de esforço físico no exterior — desporto na escola, talvez, ou um passeio familiar, algo que intensificava a sensação de calor e conforto quando final- mente voltávamos para dentro de casa. Em vez de me sentar em frente à lareira, aquecia-me diante do ecrã luminoso do televisor, que transmitia um simulacro diluído, mas ainda assim poderoso, dos dias soalheiros no Sul da Califórnia.

O romancista David Foster Wallace comparou uma vez o aparelho de televisão a um «espelho de casa de banho iluminado, face ao qual o adolescente avalia os seus bíceps e escolhe o seu melhor perfil». O problema da televisão, segundo Foster Wallace, é produzir representações falsas. É um espelho rachado, que não reflete o mundo como ele é, mas os nossos desejos; ou seja, como gostaríamos que o mundo fosse. Se olharmos para este espelho distorcido durante demasiado tempo, começaremos a basear o nosso próprio sentido de identidade nas projeções fantasmáticas que dele emanam. Em breve, damos por nós no parque de diversões da cultura pós-moderna do final do século XX, onde a fronteira entre simulação e realidade deixa de fazer sentido e os nossos desejos já não nos pertencem. «Quem sou eu?» e «O que quero?» tornam-se dilemas filosóficos impossíveis de resolver.

Portanto, o que aprendi ao certo por ter visto Baywatch quando era criança? Como é que a série moldou a minha imaginação moral ainda em desenvolvimento e o meu sentido de identidade a nascer? A insistência de Albert Camus e Iris Murdoch de que o destino derradeiro do homem é ser livre e de que todos nos deparamos com a dura realidade da nossa própria atuação moral ficou comigo no longo prazo. Mas o que retive dos problemas semanais com que se defrontavam Mitch, Hobie, Stephanie e C.J.? Não muito, para dizer a verdade. E, no entanto, o objetivo de Baywatch não era esse, uma vez que sempre foi muito mais uma atmosfera do que uma experiência narrativa. Os detalhes das histórias iam surgindo, uns atrás dos outros, mas nunca acontecia verdadeiramente nada. À medida que víamos os episódios, todas as semanas, depressa se tornava claro que não haveria catástrofe nenhuma, no tempo pre- sente ou no futuro, capaz de afetar o estilo de vida da comunidade de Baywatch. A chamada vida na praia parecia ser um dos poucos estádios seguros na história da civilização humana, uma forma duradoura de organização social que conseguia facilmente ultrapassar as ameaças semanais de uma hecatombe. O espectador deixava-se simplesmente ir no fluxo da experiência, como um surfista que se lança na corrente oceânica.

Se Baywatch representa a derradeira forma do espetáculo televisivo autocircunscrito, então o seu oposto absoluto seria, sem dúvida, o conjunto de imagens transmitidas durante a queda do Muro de Berlim, em novembro de 1989. Este foi um daqueles momentos em que a História surge aos nossos olhos em tempo real, um acontecimento definidor de uma época, alimentado pela coragem coletiva de pessoas normais, transmitido para milhares de milhões de espectadores em todo o mundo. Em Baywatch, abundavam os pseudo-acontecimentos, que se desenrolavam com a lógica irreal de uma série de televisão. Pelo contrário, as imagens de Berlim eram autenticamente, palpavelmente, reais. Multidões atravessavam os postos de controlo. Desconhecidos abraçavam-se uns aos outros e choravam na rua. Guardas fronteiriços com rostos de pedra olhavam para o que se estava a passar, resignados. E as imagens mais memoráveis de todas: pessoas e mais pessoas no cimo do muro coberto de grafítis, destruindo com martelos e escopros uma infraestrutura que não só marcou a fronteira entre as duas metades de um país dividido mas foi também uma linha de fratura psíquica dentro da História do século XX, a fronteira simbólica entre o Leste e o Oeste, entre o comunismo e o capitalismo, entre Eles e Nós. Assistimos à transmissão em direto na escola, como uma espécie de lição de História imersiva, enquanto o nosso professor nos garantia que aquele acontecimento moldaria as nossas vidas nos anos seguintes. Uma nova era nascia diante dos nossos olhos. A sua forma final ainda era desconhecida, mas as velhas oposições que tinham definido a política durante meio século estavam condenadas. Implícita, evidentemente, ficava a ideia de um triunfo do Ocidente. O nosso lado vencera. Estivéramos certos o tempo todo.

Ao contrário do que afirma Gil Scott-Heron na sua famosa frase, as revoluções de 1989 foram transmitidas pela televisão. A presença de equipas televisivas nas ruas de Berlim, Praga, Varsóvia e Bucareste representou tanto um escudo, contra as ações policiais de repressão, quanto um acelerador que atiçou as labaredas da resistência. Em junho desse ano, a supressão violenta do protesto pró-democracia na Praça Tiananmen, em Pequim, desenrolara-se diante dos meios de comunicação do mundo inteiro. Na Alemanha de Leste, uns meses mais tarde, os círculos próximos de Erich Honecker usaram o exemplo de Tiananmen para dissuadir o seu líder de usar a força contra os seus cidadãos desobedientes. O mundo estava a assistir. E, mais importante ainda, os próprios cidadãos estavam a assistir. Depois de anos de propaganda e vigilância, as imagens televisivas de multidões a encherem as ruas ofereciam vislumbres de uma realidade alternativa que até então fora mantida oculta. Essas imagens ajudaram a quebrar o feitiço da resignação e da passividade que permitira manter, preso por arames, um sistema político à beira da ruína. Neste caso, a televisão não era o espelho distorcido de que Foster Wallace nos falara, mas um instrumento poderoso para revelar a verdade sobre o mundo.

Em Berlim, a gota de água que levou a que o copo transbordasse e o Muro caísse foi uma gaffe cometida, numa conferência de imprensa, por Günter Schabowski, um membro proeminente do Politburo da RDA (República Democrática da Alemanha). Schabowski fora incumbido de anunciar uma lei, feita à pressa, que aliviava as restrições às viagens para o Ocidente, um gesto pensado para pôr fim a semanas de manifestações e permitir que os dissidentes mais problemáticos deixassem o país. Quando um jornalista italiano lhe perguntou quando é que o decreto entraria em vigor, Schabowski gaguejou e disse que, tanto quanto lhe era dado saber, os seus efeitos seriam imediatos. Em menos de uma hora, a televisão da Alemanha Ocidental noticiou que a fronteira estava aberta e massas de alemães de Leste se dirigiam para as saídas.

Um dos momentos definidores da Revolução Romena, que se desenrolou no mês seguinte, dezembro de 1989, foi a tomada da torre emissora da televisão estatal, uma gigantesca estrutura em betão, de arquitetura brutalista, a partir da qual era emitida a propaganda do regime de Ceaușescu. Os primeiros revolucionários que entraram na emissão foram Ion Caramitru e Mircea Dinescu, ator e poeta, que declararam o fim do regime e apelaram à calma. Mesmo quem não saiba falar romeno devia assistir ao discurso no YouTube. É um maravilhoso vislumbre da História a acontecer em direto. Mas o que confere a esta gravação um tão claro selo de autenticidade? Serão as roupas tristonhas que os revolucionários envergam — casacos de pastor grosseiros, camisolas de lã com padrões, calças de ganga amarrotadas? Serão as próprias imagens, com uma textura plana e cheia de grão, por serem gravadas numa cassete de vídeo de má qualidade, a provar paradoxalmente que se trata de material verdadeiro? Ou terá mais que ver com o timbre e o ritmo das vozes, ao proferirem os seus discursos escritos à pressa? É possível isolar algumas das palavras-chave no meio daquela confusão de sons — populisce, momente, dictutora fugit, victorios! —, mas o que nos chega de forma mais clara é a mistura de urgência moral e dúvida existencial com que as palavras são ditas, como se aqueles homens tivessem dificuldade em acreditar que a revolução estava mesmo a acontecer e que eles agarravam, pelo menos naquele momento, o volante da História.

O historiador Timothy Garton Ash chamou ao ano de 1989 «um dos melhores na História europeia». Por toda a Europa de Leste, movimentos populares depuseram governos autoritários e repressivos, desencadeando o efeito dominó que levaria ao colapso do Império Soviético passados poucos anos. Mas as mudanças vie- ram de cima, não apenas de baixo, foram implementadas tanto pela nomenclatura partidária como pelas ruas. Os últimos dias do comunismo foram um jogo da corda multilateral entre a velha guarda comunista, elementos esclarecidos dentro do partido que pretendiam acelerar o processo de reforma do regime, e dissidentes pró-democracia que andavam a lançar pedras do lado de fora, em direção à máquina partidária, há décadas.

Houve também poderosos atores globais, que exerceram a sua influência à distância: a Igreja Católica e o seu amado papa polaco, Karol Wojtyla (João Paulo II); Ronald Reagan e George H. W. Bush, sucessivos «líderes do mundo livre», que, após anos de tensão crescente, escolheram no final dos anos 80 estabelecer laços diplomáticos com a ex-URSS e mover-se no sentido do desarmamento nuclear; e, talvez mais importante do que todos, Mikhail Gorbachev, um novo tipo de líder soviético, afável e humano, que deu início aos processos da perestroika, ou reforma do Partido Comunista, e glasnot, uma nova abertura e transparência que seria alcançada através de uma redução dos constrangimentos impostos aos órgãos de comunicação social. Gorbachev também formulou a nova «doutrina Sinatra» da Rússia para o Bloco de Leste: «Façam as coisas à vossa maneira.» Em 1991, um grupo de generais russos envelhecidos montou um golpe, aproveitando o facto de Gorbachev estar longe, na sua datcha na península da Crimeia, mas o golpe rapidamente perdeu gás quando os tanques que cercaram a Duma se passaram para o lado das grandes multidões de manifestantes reunidas nas ruas. Este foi, nas palavras de um oficial do Departamento de Estado norte-americano, «o último grito dos apparatchiks». Pouco depois, Boris Ieltsin chegava para levantar o cerco e defender a sua própria candidatura ao posto de guardião da democracia russa. Quando o ano chegou ao fim, o Império Soviético já não existia. A 31 de dezembro, a foice e o martelo da bandeira soviética foram substituídos, no topo do Kremlin, pelas faixas branca, azul e vermelha da bandeira da Federação Russa.

A rapidez sem precedentes e a facilidade com que o comunismo soviético foi desmantelado envolvem os acontecimentos de 1989-91 numa aura quase mágica. O que parecera, durante décadas, ser uma das grandes forças imutáveis na política mundial saía de cena sem uma mobilização em massa de tropas ou um significativo derrame de sangue (houve combates nas ruas e muitas mortes na Roménia, mas a violência foi numa escala relativamente pequena e não alastrou aos países vizinhos). Ao contrário dos acontecimentos de Paris, em 1789, e de Moscovo, em 1917, as revoluções de veludo de 1989 trocaram a ideologia revolucionária por uma procura, mais pacífica e humana, da liberdade e do fim da opressão. Muitos dos líderes dissidentes faziam parte da intelligentsia, uma classe que resistira aos ditames soviéticos escrevendo literatura samizdat e remetendo-se ao «exílio interno» da leitura e da amizade. Em Praga, a revolta começou quando estudantes da Escola Nacional das Artes Dramáticas entraram em greve. Nas semanas seguintes, o Teatro Lanterna Mágica tornou-se o centro de operações para o movimento Carta 77, de Václav Havel, um grupo de pressão dis- sidente que improvisava comunicados de imprensa e declarações políticas, como se estivessem a preparar uma nova peça. Por um breve momento, tal como aconteceu com a torre da televisão estatal em Bucareste, poetas e artistas apoderaram-se do sinal, emitindo a sua mensagem de esperança e de liberdade para todo o mundo.

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Foi nesta atmosfera arrebatada que o cientista político norte-americano Francis Fukuyama avançou com o seu famoso argumento sobre o «fim da História». Fukuyama defendeu originalmente a arrojada tese — haverá quem a considere simplesmente temerária — numa publicação especializada de ciência política, no verão de 1989, um facto que só acrescentou mais ainda ao seu glamour intelectual, como se ele tivesse de alguma forma antecipado os acontecimentos de Berlim, mais tarde nesse ano. A versão desenvolvida do argumento foi publicada em forma de livro como O Fim da História e o Último Homem em 1992, numa altura em que as suas pretensões acerca da inevitabilidade histórica do triunfo da democracia liberal sobre todos os outros sistemas políticos pareciam ainda mais plausíveis. Porque era isso, no fundo, que Fukuyama propunha. Por uma questão de necessidade histórica, o comunismo tinha de falhar, e a democracia liberal tinha de vencer. O tempo necessário para que isso acontecesse era discutível, mas o resultado final não. Com o colapso da União Soviética, a História aproximava-se de uma espécie de conclusão.