Ponto prévio: mas afinal a cerimónia não costuma ser sempre no final de fevereiro? Sim, costuma. Só que foi adiada uma semana, para este domingo, 4 de março, para não coincidir com os Jogos Olímpicos de Inverno, na Coreia do Sul.

Feitas as explicações, vamos às estatuetas douradas, portanto. Este foi um ano truculento para os lados de Hollywood. E todos os olhos vão estar postos na 90.ª edição dos Óscares, não só por motivos cinematográficos. Já se muito se debateu e escreveu sobre as previsões, análises, denúncias e outros ónus, mas a verdade é que existem alguns trâmites pouco solúveis sobre tudo aquilo que rodeia a celebração dos filmes e celebridades do mundo do entretenimento

Será que devido ao clima de denúncias que assombra a indústria, vai estar um ambiente mais sombrio? Será que o preto vai dominar novamente a cerimónia como aconteceu nos Globos de Ouro e nos BAFTA (prémios da Academia Britânica de Artes do Cinema e Televisão)?

Vistas bem as coisas, a história desta noite, embora seja narrada madrugada adentro, começou a ser escrita o ano passado, em outubro, quando rebentou o "escândalo Weinstein" com a publicação de artigos no jornal The New York Times e na revista The New Yorker. Algo que veio agitar muitos universos em diversas áreas.

É que os resultados dessas publicações foram quase imediatos. Poucos dias depois da publicação dos mesmos, Harvey Weinstein, um dos mais influentes produtores de Hollywood, foi despedido da The Weinstein Company, empresa que fundou. E, cerca de cinco meses depois do escândalo, a onda de choque mundial dos casos de agressão e assédio sexual alargou-se e já atingiu os setores do espetáculo, da política, da comunicação social, empresarial, desportivo e até humanitário.

Recorde-se que mais de uma centena de mulheres acusaram o produtor Harvey Weinstein, que está sob investigação das polícias de Nova Iorque, Los Angeles e Londres. E a Weinstein Company, outrora intocável, vai muito provavelmente apresentar falência.

Considerado um momento anual de festa para o cinema de Hollywood, os Óscares deste ano deverão ficar também marcados pelo movimento '#Metoo' e pelo projeto ‘Time's Up’, surgidos depois das denúncias públicas de assédio e abuso sexual por parte de Weinstein.

Ao New York Times, um dos jornais que noticiou denúncias de várias mulheres, a produtora Jennifer Todd disse que os Óscares devem ser entendidos como "um espectáculo" "respeitoso, mas também divertido e emocional".

"Queremos honrar e respeitar [o projeto] Time's Up e permitir que a mensagem seja escutada", afirmou ao mesmo jornal Channing Dungey, presidente da cadeia de televisão ABC — que assegura a transmissão televisiva —, sublinhando que esses momentos não podem ofuscar os artistas e os filmes premiados.

Portanto, não se pode esperar que seja uma noite para celebrar somente os filmes — haverá mensagens pouco subliminares, há anos esquecidas por defeito, que vão ser mais do que meras didascálias no guião da 90.ª edição dos Óscares, no Kodak Theater, em Los Angeles. E isso começou a notar-se pelas nomeações apresentadas no dia 23 de janeiro pela Academia de Artes e Ciências Cinematográficas dos Estados Unidos.

As escolhas, as principais categorias e os nomeados

Conduzida por Jimmy Kimmel, a cerimónia acontece também um ano depois do incidente da troca de envelopes com o nome do vencedor do Óscar de melhor filme. Os atores Warren Beatty e Faye Dunaway anunciaram "La La Land" em vez de "Moonlight", e a troca obrigou a Academia a apertar as regras para quem fica responsável pelos envelopes que contém os nomes dos vencedores.

Nos nomeados na categoria de melhor filme termos os favoritos "A Forma da Água" e"Três Cartazes à Beira da Estrada", bem como "Chama-me Pelo Teu nome", "A Hora Mais Negra", "Foge", "Lady Bird", "Linha Fantasma", "The Post" e "Dunkirk".

A categoria de Melhor Realização, com um menor número de nomeados, é disputada por Guillermo del Toro ("A Forma de Água"), Christopher Nolan ("Dunkirk"), Greta Gerwig ("Lady Bird"), Jordan Peele ("Foge") e Paul Thomas Anderson ("Linha Fantasma").

Sally Hawkins ("A Forma de Água") está nomeada para melhor atriz principal ao lado de Frances McDormand ("Três Cartazes à Beira da Estrada"), Margot Robbie ("Eu, Tonya"), Saoirse Ronan ("Lady Bird") e Meryl Streep ("The Post"), indicada a um Óscar pela 21.ª vez (17 na categoria de Melhor Atriz e as restantes 4 na de Melhor Atriz Secundária).

Para o Óscar de melhor ator estão indicados Timothée Chalamet ("Chama-me Pelo Teu Nome"), Daniel Day-Lewis ("Linha Fantasma"), Daniel Kaluuya ("Foge"), o favorito Gary Oldman ("A Hora Mais Negra") e Denzel Washington ("Roman J. Israel, Esq.").

Para o Óscar de Melhor Filme Estrangeiro foram escolhidos "Uma Mulher Fantástica", de Sebastián Lelio (Chile), "Nelyubov", de Andrey Zvyagintsev (Rússia), "L’insulte", de Ziad Doueiri (Líbano), “O Quadrado”, de Ruben Ostlund (Suécia), e "Corpo e alma", de Ildikó Enyedi (Hungria).

"The Boss Baby", "Coco", "A Paixão de Van Gogh", "The Breadwinner" e "Ferdinando" competem para melhor filme de animação.

Ao fim de 90 edições, ainda se registam alguns momentos inéditos e outros que marcam pela rutura — mas também pela falta dela.

O realizador Jordan Peele é o primeiro afroamericano a ser nomeado em simultâneo para melhor filme, realização (nesta categoria apenas é o quarto após John Singleton, Lee Danis e Barry Jenkins terem sido nomeados no passado) e argumento original, com "Foge".

Também é a primeira vez que uma mulher está nomeada para o Óscar de Melhor Fotografia, com Rachel Morrison pelo filme "Mudbound - As Lamas do Mississipi". Grega Gerwig é apenas a quinta mulher a ser nomeada para a categoria de Melhor Realização e Tatiana Riegel (“Eu, Tonya”) é única mulher nomeada para a categoria de Edição.

“A Mulher Fantástica”, é o primeiro filme nomeado com uma atriz transgénero (Daniela Vega) e na categoria de Melhor Documentário, “Strong Island” (disponível em Portugal na Netflix) é escrito, produzido e realizado por uma mulher negra homossexual (Yance Ford).

Outra das curiosidades podem levar à expectativa lusa: Nelson Ferreira e Luís Sequeira, ambos canadianos com raízes em Portugal, estão indicados respetivamente nas categorias de "Montagem de som" e "Guarda-Roupa" pelo filme do mexicano Guillermo del Toro, "A Forma de Água".

Melhor filme: a categoria-enigma que pode dar surpresa

Existem categorias — na teoria — em que a maioria dos prémios estão "entregues". Porém, tal não acontece na maior distinção de todas as elas. Nas 9 escolhas possíveis, 5 parecem estar na linha da frente, segundo a Vanity Fair. São eles: “Dunkirk”, “Foge”, “Lady Bird”, “A Forma da Água” e “Três Cartazes à Beira da Estrada”. Mas, antes, a revista recorda o sistema de votação destas andanças, em resumo recorde de palavras, para explicar algumas destas possibilidades. E como é que chegamos lá, então?

De forma um pouco simplista, aos 7,258 membros que compõem a academia, é-lhes pedido que pontuem, dos nomeados na categoria, do seu filme favorito (#1) ao menos favorito (#9). De 1 a 9, porque, bem, há 9 filmes em disputa.

De seguida, todos os votos daquele que ficar em #1 serão contabilizados. Contudo, se nenhum dos filmes em questão não reunir 50% das preferências à primeira volta — e será o mais provável, tendo em conta a incerteza que está instalada em três ou quatro casos —, o passo seguinte vai ser retirar do processo de votação o filme que menos votos recebeu, daqueles que obtiveram a preferência máxima, isto é, ainda que tenha recaído na escolha #1 de muitos membros, foi o que menos criou consenso na referida posição. Assim, segundo as regras da academia, vai ter que sair do jogo e é carta fora do baralho.

Subtraído aquele filme da equação, os olhares vão agora os filmes que ficaram na posição #2 dos membros da Academia. Uma vez analisados, estes votos passam a contar como estando na posição #1, enquanto os restantes filmes ainda permanecem na corrida. Isto levará a que, no decorrer deste processo, se o filme #2 também for removido, segue-se o mesmo mesmo processo acima referido e segue-se para o filmes filmes escolhidos na posição #3 dos membros da Academia. E se ainda assim não estiverem reunidos os 50%... Pois é, adivinhou: segue-se para o filme #4 e assim sucessivamente até estar encontrado o vencedor.

Descobrir o vencedor da almejada estatueta dourada através deste metódo preferencial só acontece na categoria de Melhor Filme — e é sabido que tem algumas falhas. Resta dizer que, quando foi criado, a ideia original passava por distinguir o filme que obteve maior consenso dentro dos membros votantes da academia. Todavia, na realidade, faz com que o filme vencedor não seja aquele que a maioria destes considerava o ser “melhor” do ano.

A Mensagem

Como referido acima, não será espanto nenhum que na madrugada deste amorfo e chuvoso domingo, os Óscares sejam conduzidos por várias narrativas, como escreve o Indiewire. No fundo, a questão passa tão somente por perceber qual delas é que vai dominar a noite. Será política? Vai ser o movimento #MeToo ou serão novamente evocados os #OscarsSoWhite? Não raras vezes as votações da Academia transmite o estado de espírito dos seus membros e a mensagem (seja política ou social) que cada um dos votantes pretende passar.

O primeiro indicador de que as coisas estão diferentes foram logo as nomeações. As deste ano parecem querer mudar o rumo daquilo que foi tradicional  até aqui (para a Academia). A nomeação de Greta Gerwig (“Lady Bird”) e Jordan Peele (“Foge”) disso são exemplos. Na categoria de Melhor Realizador, em todas as edições anteriores, apenas quatro nomeações foram para nomes femininos ou para alguém negro. Kathryn Bigelow continua a ser a única mulher que ganhou prémio — e nenhum homem negro alguma vez o conseguiu.

Nas categorias de representação, há quatro nomeações de intérpretes negros, contra as sete do ano passado: Octavia Spencer (“A Forma da Água”) pela terceira vez na carreira, o veteraníssimo Denzel Washington (“Roman Israel, Esq”) pela oitava, sendo estes acompanhados pelo britânico novato nestas andanças Daniel Kaluuya (“Foge”) e por Mary J. Blige (“Mudbound”), a única nomeada na história dos Óscares a interpretar uma canção nomeada composta por ela própria (“Mighty River”).

É uma questão que se coloca porque, como demonstra este artigo do The Washington Post, os atores brancos continuam a perfilar como parte dominante dos filmes, com cerca de 70%. Isto apesar de, em termos relativos, as minorias nos EUA comprarem uma maior percentagem de bilhetes em relação à sua população, quando comparada com os caucasianos.

“Black Panther”, que tem um realizador e a quase totalidade do seu elenco afro-americano, tornou-se num verdadeiro fenómeno de bilheteira, desafiando o mito que existe na indústria, de que filmes que têm como ator principal um negro não conseguem alcançar bons resultados financeiros. (Todavia, os investigadores avisam que para que aconteça uma mudança concreta e verdadeira, é preciso uma maior representação na totalidade do universo cinematográfico e não apenas em um ou dois casos pontuais.)

Por tudo isto, será que haverá um voto de mudança?

Com tudo aquilo que tem acontecido em Hollywood nos últimos anos, parece ser este o momento certo para que tal aconteça. Em 2016, ano dos #OscarsSoWhite, o Los Angeles Times dava conta que aproximadamente 76% dos membros da Academia eram homens, sendo que 93% seriam brancos e apenas 2% afro-americanos. Desde então, a Academia de Artes e Ciências Cinematográficas (AMPAS) tem tentado nivelar os números, abrindo portas a mais mulheres e pessoas de outras etnias. Em junho último, foi permitida a entrada recorde de 774 novos membros, sendo que um terço foram pessoas de cor. Mas só o tempo dirá se a atitude é para manter ou se é meramente sabor do vento.

Uns mais consensuais que outros, mas todos levantam questões

Há muito que se pode alcançar neste mundo, mas certamente que será impossível encontrar um termo de conciliação que agrade a um todo — porque simplesmente não dá para criar uma orla que encante gregos e troianos.

Existirão sempre opiniões que não se revêem na escolhas. Há sempre o filme favorito que fica de fora; há sempre aquela interpretação que não é contemplada; existirá sempre espaço para que se crie pingo de indignação. Particularmente na era em que se vive em sintonia com o eco das redes sociais como banda sonora do quotidiano.

Este foi o mote, aliás, de um artigo de antevisão dos Óscar por parte da Reuters. Quase todos se adjudicam à ferocidade das críticas: acusações de plágio, conduta sexual imprópria ou insatisfação das comunidades homossexuais e afro-americanas.

Tome-se o exemplo de “Chama-me Pelo Teu nome”. Parece não ser suficiente adaptar um belíssimo romance. Porque apesar do realizador ser assumidamente homossexual, os atores protagonistas não são eles próprios gays. E, na opinião de alguns, isso é um problema. O realizador, Luca Guadagnino, revelou que escolheu Arnie Hammer e Timothee Chalamet devido ao que ele considerou que cada um deles podia dar às personagens e não pela sua orientação sexual.

“A Forma da Água”, o mais nomeado desta edição, com 13 distinções, foi "premiado" também com um processo de plágia, na semana passada. A história de amor que envolve a criatura marinha de Del Toro, segundo a acusação, é uma obra baseada numa peça de teatro do dramaturgo norte-americano Paul Zindel, de 1969. Outras vozes insurgem que o filme “bebeu demais” do argumento da história de Jack Arnold, “O Monstro da Lagoa Negra” (1954).

Só que pensar que Del Toro copia deliberadamente material de outros, é algo difícil de aceitar. Especialmente quando este não esconde que se inspira nos seus colegas de profissão. Aliás, trata-se de algo que o realizador mexicano se orgulha. Nomeadamente porque que afirma que é “difícil criar algo completamente novo”.

Semanas antes das acusações subirem à superfície, Del Toro foi um dos convidados do podcast “Filmmaker Tookit”, do site IndieWire. E o próprio explica e não esconde o que o influencia. São mencionados cerca de 20 realizadores que admira. O movimento constante da câmara disso é prova e um exemplo. Nas palavras do próprio: “Eu queria filmar como se fosse um musical, onde a câmara flui como água e está em constante movimento. Nem uma única imagem estática durante todo o filme. Tentei fazê-lo de uma maneira clássica, ao estilo [Vincent] Minnelli [realizador que muitos consideram ter renovado o estilo musical e um dos mais importantes das década de 40 e 50] — com dollies e cranes [carrinho de rodas ou dispositivo similar usado na produção cinematográfica e de televisão para criar movimentos horizontais], ao invés de steadicams [sistema em que a câmera é acoplada ao corpo do operador e que dá uma sensação de flutuação] — portanto, quando conhecemos um personagem, dá a sensação que estão a entrar durante uma música”, começou por dizer.

“Eu não cito numa maneira pós-moderna. O que eu tento fazer é reformular porque penso que a arte é uma síntese. Não vais reinventar algo novo, mas a maneira como vais sintetezar aquilo que és dá-te uma voz própria, faz-te ser único. Eu posso gostar de Jack Arnold e a de “O Monstro do Lago Negro”, mas isto [‘A Forma da Água’] não é o “O Monstro do Lago Negro”. Eu gosto de Douglas Sirk, mas ele nunca realizou um filme com um anfíbio. Eu gosto de Stanley Donen, mas blah, blah, blah. É a maneira como sintetizas aquilo que és, a tua história, a tua biografia e a tua biografia fílmica que vai fazer a diferença”, explicou.

Até mesmo “The Post”, do veterano Steven Spielberg, não está isento de críticas. Segundo a Reuters, existem vozes que não ficaram suficientemente esclarecidas quanto ao enredo deste; é que, alegadamente, há quem não perceba que o jornal que começou a levantou o escândalo dos Papéis do Pentágono não foi o Washington Post, mas sim o New York Times.

Ainda assim, mais engrenagem maldizente sofre "Três Cartazes à Beira da Estrada". O filme do britânico Martin McDonagh, que é uma comédia negra sobre a determinação de uma mãe para que seja feita justiça à sua filha assassinada, tem nos papéis de Frances McDormand e Sam Rockwell parte pujante das suas forças, mas também das críticas. Especialmente o do último. No entender daqueles que não partilham de bom grado as ações do polícia racista de uma pequena cidade do Missouri, este é um papel que deve ser abominado e não celebrado — e o facto de estar nomeado, só piora a situação.

“Não penso que a sua personagem [Sam Rockwell] se redima — de todo. Começa [o filme] como um racista ignorante e é praticamente o mesmo no final, só que aí ele vê que mudou”, justificou o McDonagh. “É suposto ser deliberadamente confuso e um filme difícil. Porque é o mundo é confuso e difícil”, concluiu.

Todavia, as críticas não fizeram com que os prémios não começassem a surgir. "Três Cartazes à Beira da Estrada" foi galardoado como Melhor Filme nos Globos de Ouro, no Sindicato dos Atores (SAG) e pelos Oscar britânicos, os BAFTAS. Paralelamente, as duas personagens principais já receberam uma série de distinções pelas interpretações. E é por isso que é um dos principais favoritos.

A primeira edição dos Óscares, criados pela Academia de Artes e Ciências Cinematográficas dos Estados Unidos, aconteceu a 16 de maio de 1929, e consistiu num jantar privado num hotel em Los Angeles, no qual participaram cerca de 270 pessoas. Neste domingo, milhões de pessoas vão acompanhar a cerimónia um pouco por todo o mundo.

A partir das 22h, ligue-se ao SAPO24 e acompanhe também a par e passo toda a cerimónia, com os comentários humorísticos de Guilherme Fonseca e Pedro Silva.