A distopia, em jeito de homenagem, de um Portugal sem a Revolução de Abril é a mais recente criação da companhia Palmilha Dentada, com encenação de Ricardo Alves, que quis pensar como seria o país se tivesse “continuado a viver com medo, com uma PIDE que limitava as liberdades e os pensamentos”.
Naquela madrugada, o capitão de Abril Salgueiro Maia não parou num semáforo, embateu num camião do lixo, veio a polícia de trânsito, levou o militar preso, assim se esfumou a revolução e o 25 de Abril nunca aconteceu.
“Não há Coca-Cola, nem estamos no espaço Schengen. Libertámos as colónias todas porque só davam prejuízo, exceto Angola porque tinha petróleo e dava lucro, continuamos a ter uma PIDE [a polícia política], o mesmo sistema político, continuamos sem opções e com medo de que nos batam à porta durante a noite, a homossexualidade continua a ser fortemente reprimida, o trabalho infantil [continua] forte e feio,” foi como o encenador descreveu o Portugal da peça, no final de um ensaio aberto à imprensa.
No entanto, Ricardo Alves alertou que “esta não é uma peça sobre as grandes questões da ditadura, é sobre os indivíduos e como cada um se coloca na sociedade, os medos que têm”.
No primeiro ato, num local escuro da cidade, dois membros da resistência antifascista encontram-se. Um quer que o outro arranje forma de trocar euros em escudos e este, pelo meio, entre lamentos de nunca ter bebido Coca-Cola, explica que desconfia que o chefe é da PIDE.
Àqueles dois junta-se um colega de trabalho que um pensa ser fascista, mas não: “Oh homem, não viste que ele é larilas? Deve ser aqui que se encontram, é escondido”, explica o desejoso de Coca-Cola.
Junta-se, depois, à conversa, o chefe, o verdadeiro fascista, o Rosendo, interpretado por Mário Moutinho, que explica a um deles que no dia seguinte vai a Badajoz recolher o dinheiro duma Consuelo, que caiu na burla do amor, a que se dedica a empresa onde ambos trabalham.
Há também o anarquista, que acha que a revolução se faz à bomba, a menina exemplar, mas que depois engravida aos 15 anos, o pai da menina, seguidor dos bons costumes, e há ainda um outro, que trai a resistência por dinheiro.
Pelo meio, Espanha arranja sarilhos com Portugal por causa de Olivença e lá se vai a viagem a Badajoz, a oportunidade de beber Coca-Cola pela primeira vez e de trazer umas Croc cor-de-rosa para a menina que as desejava muito, mas que eram proibidas em Portugal.
“Uma das coisas que havia era o nosso isolamento, […] vivíamos numa realidade diferente e as Croc são um bom símbolo, é uma coisa que não vale cinco coroas e que pode ser um objeto de desejo para quem não o tem. É ridículo, mas é sintomático e pode mostrar a angústia da atração pelo proibido e querer experimentar, que é uma coisa fabulosa que nós temos na Democracia, podemos até experimentar isto de ter partidos fascistas e ver no que dá”, afirmou o encenador, que também assina o texto e a cenografia (neste caso, a par de Sandra Neves).
“O 25 de Abril Nunca aconteceu”, explicou Ricardo Alves, sofreu alterações por força da realidade, nomeadamente pelo resultado das eleições de 10 de março: “Eu tinha pensado num fim um bocadinho mais ridículo, mas depois dos resultados das eleições senti necessidade de o pôr com os tons mais carregados, mais negro, apeteceu-me dizer uma mensagem mais agreste, de alerta para os cuidados que devemos ter com as nossas liberdades”.
E o fascista da história? “O Rosendo é fascista por convicção, não por ser má pessoa, nem tudo eram só sacanas e oportunistas, havia alguns que acreditavam mesmo, tal como temos alguns que acreditam na economia liberal”.
O fascista, interpretado por Mário Moutinho, acaba despedido porque a mulher, Ofélia, o obrigou a impor-se na empresa e ele foi despedido, acabando por se candidatar à PIDE, à qual, afinal, ainda não pertencia.
“Faço bem [de fascista] porque os conheci, eu vivi com eles e esses conhecimentos permitem conversar com os meus colegas mais novos, contar histórias, havia coisas absurdas e muito mesquinhas como a proibição da Coca-Cola, serem presas as raparigas por irem de calças para o liceu”, explicou o ator, “assumidamente de esquerda” e que teve no 25 de Abril “o dia mais feliz” da vida.
“Ninguém tem bem noção do que foram os 48 anos de ditadura, do que significou, e da alegria bêbada que foi aquele 25 de Abril para toda a gente e de repente acreditarmos que tudo era possível e essa poesia do 25 de Abril é preciso passá-la”, salientou.
Moutinho admitiu, porém, que “nem tudo foi conseguido” e nos 50 anos do 25 de Abril não haverá alegria bêbada: “Este é perigoso, estamos numa situação delicada, muito complexa e perigosa”.
“O 25 de Abril Nunca Aconteceu” estará em cena no Porto até dia 27 e conta com interpretação Beatriz Baptista, Eloy Monteiro, Ivo Bastos, Filomena Gigante, Mário Moutinho, Rodrigo Santos e Valdemar Santos.
Os bilhetes custam 10 euros e podem ser adquiridos aqui.
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