“Olha a marola!”, berra o mestre do ‘Marco Silva’. A azáfama é grande. Entre tirar água do moliceiro, agarrar as velas e pensar na vitória, a tripulação de três homens do barco que lidera a regata não tem descanso. Vão com um avanço significativo face ao segundo classificado — mas mesmo assim não vacilam.
Ao ar atiram insultos. Vão reclamando com os barcos que passam e levantam ondas, essa tal marola de que se queixa o mestre (o condutor) da embarcação. É que essa perturbação na água da ria aumenta a fricção que o colorido barco à vela tem de vencer para ganhar velocidade.
Isto explica o piloto do pequeno barco de pesca onde vamos, perseguindo os líderes da corrida. Haviam de ser quinze os moliceiros, de cores garridas e dizeres indecorosos nas bordas. Contamos treze, mas consentimos a eventual falha metodológica que há no contar pequenos barcos que ao longe vão rodando a catar o vento que não sopra neste sábado.
Os barcos saíram da Torreira, na Murtosa, ainda antes das 14:30. Apressaram-se para não perderem o vento — mas o vento também pouco durou, condenando os moliceiros a uma mortiça velocidade. Os que aqui vão não são esses que arrastam turistas ria afora dentro dos canais urbanos da cidade de Aveiro. Não, estes são tradicionais. Apesar de estarem equipados com um pequeno motor, ai de quem lhe dê uso nesta competição.
Hoje, só vale o vento, que bate nas vastas velas, insuflando vagarosamente as vertiginosas manobras que os marinheiros da ria vão arriscando para ver se o madeiro se adianta na corrida — e só por solidária linguística se lhe pode chamar corrida: um homem caminhando sem esforço havia de se adiantar talvez mais que os barcos.
O ‘Marco Silva’, porém, vai enguiçado na sua força. O engenho dos homens que o navegam dá a volta ao vento que se fez difícil nesta tarde. A Grande Regata dos Moliceiros é o “artista principal” do Ria de Aveiro Weekend, mas nem por isso São Pedro, ou lá qual seja a entidade que gere as intensidades dos ventos, esteve solidária com a causa aveirense.
Apesar do tamanho reduzido, a imponente escala do França Morte, o maior arrastão nacional, não assusta os intrépidos tripulantes do ‘Marco Silva’, que avançam indiferentes diante do porto de Aveiro. Passam pelo Argus, que apodrece na água, e por uns outros quantos navios, que se desfazem em ferrugem à espera do abate.
Este pequeno barco, na madeira de que é feito, carrega a fome de ganhar a corrida. A meta está à vista, na longa avenida de ria que vai da cidade ao mar. Calhou, na verdade, ser o pequeno pesqueiro onde seguia o homem que escreve a crónica desta viagem, autêntico diário de bordo da saga do moliceiro homónimo de treinador da bola, o primeiro a cruzar a meta. Logo atrás, os vencedores.
Finda a corrida, desarma-se o mastro. Com a vela arrumada, já dá para entrar na cidade. Nem todas as pontes levantam, sendo preciso desmanchar o barco para que caiba dentro de Aveiro. Vencida a regata, há que ir para o cais da Fonte Nova ganhar o outro troféu: o dos painéis jocosos, marotos e religiosos.
Ultrapassada a eclusa, estamos nos canais urbanos da ria. Como qualquer urbe que se preze, mesmo nos estradões aquáticos o movimento é intenso. Há moliceiros e saleiros a correr dum lado ao outro. Nuns contam-se piadas; noutros vão homens entoando guitarradas, armados em carrancas de carne e osso.
Os operadores vão reclamando das duas pequenas traineiras que se enfiam ali no meio do trânsito de autocarros fluviais. “Isto é só para barcos tradicionais”, reclama o homem que acelera o motor de um saleiro de pontas serradas, atulhado de turistas.
Este evento, contudo, vai além do moliceiro. Se o barco tradicional é protagonista, como contou ao SAPO24 José Ribau Esteves, presidente do Conselho Intermunicipal da Comunidade Intermunicipal da Ria de Aveiro (CIRA), a ria é a realizadora por trás da arte.
Pois foi ela que teve o condão de fazer arrancar as dezenas de iniciativas nos onze municípios da CIRA, que animaram o fim de semana — seja com guarda-chuvas e arte urbana em Águeda; seja com jantares gourmet em Vagos.
Murtosa. De analfabetas a empresárias — nos anos 1940
O silêncio denuncia que a fábrica já anda parada há muito. Não há chiadeiras, roncos maquinais ou cadências certinhas. Só uns passos perdidos pelo antigo pavilhão da COMUR. A fábrica, que ainda hoje existe, cresceu e saiu deste armazém em 1997. Em 2015, a câmara da Murtosa abriu-o como Museu Municipal, contando a história da indústria conserveira.
Tudo começa com as enguias, animal em excesso ria afora. E com as fritadeiras, mulheres que as fritavam e vendiam nas feiras. E, por fim, com uma encomenda italiana para levar barricas de enguias fritas para a Segunda Guerra Mundial. Estava montado o negócio, da matéria prima ao cliente, sem esquecer o processo.
A COMUR, que ainda hoje existe, surge em 1942, um ano após a encomenda de Itália. E nasce como forma de formalizar um negócio caseiro, feito pelas mulheres da Murtosa nas próprias casas.
Ao meter as coisas a funcionar a sério, algumas delas fizeram parte da empresa: e, por não saberem assinar, deixaram a dedada marcada a tinta na escritura da constituição da empresa, assinando o lugar de sócias com a impressão digital.
Ílhavo. Montar enxovais uma rifa de cada vez
São cinquenta cêntimos a rifa. O prémio pode ou não sair. Quando sai, é de peso — literalmente. No lugar da Vista Alegre, o bairro que cresceu à beira da fábrica de porcelana, este sábado é dia de festa. O orago é Nossa Senhora da Penha de França, mas é à profana loiça que acorrem os romeiros.
Há as “oportunidades da festa”, com descontos para peças das marcas da Vista Alegre (que incluem a Bordalo Pinheiro e a antiga Atlantis); há as rifas, que entregam pratos e demais utensílios a quem as quiser desenrolar. Há jogos tradicionais e há ateliês. À noite, há música. A festa, de entrada livre, termina esta segunda-feira, 8/07, com os viseenses CAIRO a tocar às 22h.
A festa, que procura manter-se castiça paredes meias com um projeto hoteleiro, vai morna na manhã que ainda nasce. O comboio vai passando com umas mão-cheias de crianças. Mas as atrações que interessam estão num armazém à beira daquela que ainda hoje é a cantina dos funcionários da fábrica.
Estão lá guardadas as loiças — restos de stock ou peças com defeito, por exemplo — que trazem descontos nas etiquetas, regalando as vistas e deixando alegres os que procuram montar o enxoval a uma cadência mais dinâmica que a do suspense das rifas.
Ao lado, para quem quiser pegar numa outra originalidade, mais própria, há uma oficina onde é só escolher a peça e dar largas à imaginação: pintando-a a gosto (ou colorindo os guias). De pratos a açucareiros, os participantes são convidados a decorar uma peça da Vista Alegre, que depois poderão levar para casa, numa edição única e limitada.
Vagos. Desmanchar o jantar, numa luta entre uma estrela Michelin e a avó Nita
Coelho com ervilhas. A avó Nita não complica. Pega num bom coelho, leva-o ao forno e deita-o sobre um pedaço de puré de batata doce. Ervilhas com fartura e está cheio o prato. Nisto do comer nunca há grandes dúvidas: é gostar ou não gostar — e a avó Nita convenceu.
A competição era feroz: Luca Bordino, do Maxime Hotel, em Lisboa; o Michelin Tiago Sabarigo, do Costes Downtown, em Budapeste; Daniel Cardoso, do Un Poco Loco, aqui em Aveiro; e Ann-Kristin Wenzel, da AK, conhecida pela participação no programa Masterchef Portugal.
Num pavilhão em cima da areia da praia da Vagueira, este jantar gastronómico tinha o sugestivo nome “Des(uso)”. E pôs-se a desmontar a comida local, com produtos frescos da região.
O jantar estava integrado no Vagos Sensation Gourmet, um evento que põe um garfo e um copo não mão de toda a gente, para que cacem refeições ou delas amostras nas barraquinhas que se espalham junto à praia.
Durante três dias, chefs nacionais e internacionais cozinharam ao vivo e degustações das iguarias da região de Aveiro encheram os olhos (e os estômagos) de quem lá passou.
Águeda. Chapéus há muitos, seu palerma!
Os olhos vão todos apontados para cima. Os pescoços muito esticados, os bracinhos a equilibrar os telemóveis. Em Águeda, mesmo quando não chove, toda a gente se quer pôr debaixo dos guarda-chuvas. O colorido coberto feito de chuços faz as delícias das redes sociais — mesmo não tendo o concelho nada a ver com eles.
Águeda não é a terra dos guarda-chuvas. Não havia quem lá os fizesse, não havia fontes deles a brotá-los de debaixo dum rochedo. Porém, ei-los por todo o lado, despidos da sua função, porque chuva não cai, mas feitos modelos em aérea passarela, alinhados no alto das ruas.
Estátuas vivas, espalhadas por todo o lado, tanto assustam como fascinam. E, à beira da câmara, os corpos despidos dalguns modelos atraem os olhos dos transeuntes — por causa das garridas pinturas com que artistas internacionais lhes enfeitam as peles.
O AgitÁgueda prolonga-se até setembro, com arte urbana, música, desporto, animação, performances e festas fora de horas.
Aveiro. Um dia Veneza também conseguirá ser assim
Os lacinhos e os aloquetes enfeitam as pontes. O vento a dar-lhes fá-los bailar, como romântica instalação espalhando na brisa os desejos felizes do casal. Cada peça é o maior amor do mundo — não estivessem os apaixonados convencidos de que não há no mundo duas pessoas capazes de se amar como todos eles se amam.
Fora das pontes, pela marginal, a gente vai aos magotes, caminhado à beira da água, a caminho dos doces, na bela 'Confeitaria Peixinho’, na rua de Coimbra; ou a caminho da cataplana do ‘Cais do Pescado', no cais dos Mercantéis. Pelo meio, a pergunta repete-se: quer dar um passeio no moliceiro.
A enchente de turistas não atinge as proporções da italiana Veneza. Razão talvez para que muitos insistam que Aveiro não é a Veneza de Portugal. Pelo contrário: Veneza é que há de ser a Aveiro de Itália.
Mesmo assim, vale a pena sair. Passar debaixo da A25 e rumar para ao pé das salinas. No Salinário da Cale do Oiro, uma das marinhas exploradas por esta empresa, há massagens para se fazer no meio dos tabuleiros onde o sal vai aparecendo da água que evapora. É ali também que, por quatro euros, se pode aproveitar a piscina salgada, com água morna e uma flutuabilidade a tentar roubar as vezes do Mar Morto.
“Aliviou o sofrimento a muita gente”, vai dizendo a guia que mostra aquela piscina. As lamas argilosas, explica a mulher debaixo do sol quente, são boas para várias maleitas. Não curam nada, mas ao menos ajudam a lidar com o resto, vai dizendo.
Os pernilongos, aves de patitas altas e finas como esparguete, vão apitando. Há por aí ovos escondidos nas ervas. Se alguém deles se aproximar, saltam para a cabeça do intruso e regam-no com o que trouxerem na bexiga.
Há cem anos, Aveiro tinha quatrocentas marinhas. Hoje tem oito. E, nestas oito, o marnoto mais novo tem 60 anos (e o mais velho 67). Os marnotos são quem recolhe o sal e equilibra a ciência dos tabuleiros, das lamas e das águas. A ciência que passa 60 centímetros de água a 17º C para uns baixos três centímetros a 40º C (e com 25% mais salinidade).
Aveiro, a cerca de uma hora do Porto, é bem capaz de ser uma das mais dinâmicas cidades portuguesas. Na universidade efervescem ideias; nos laboratórios da Altice saem inovações para o mundo. Aqui na marinha, a mão de obra escasseia. “Qualquer dia acaba”, diz a guia.
Apesar disso, desta marinha ainda saem 300 toneladas de sal por ano — e 50 toneladas de flor de sal.
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