1. Sobre o consentimento
Algures no início da década de 2010, o ator pornográfico James Deen realizou um filme com uma admiradora a quem chamou «Rapariga X». Tornara-se um costume seu; ora as fãs lhe escreviam a dizer que queriam fazer sexo com ele, ora ele lançava uma convocatória sob o mote «Grave uma Cena com o James Deen», e os resultados eram divulgados no seu website. Numa entrevista realizada em abril de 2017, apenas alguns meses antes de os meios de comunicação social serem inundados com debates sobre as agressões sexuais e o assédio perpetrados por Harvey Weinstein e outros — e apenas dois anos depois de o próprio Deen ter sido denunciado (mas não incriminado) por múltiplos abusos sexuais —, ele disse:
Tenho o concurso «Grave uma Cena com o James Deen», ao qual as mulheres se podem candidatar, e, depois de uma conversa bastante longa e de eu passar meses a dizer-lhes «As pessoas vão descobrir, vai afetar o teu futuro», tentando no fundo convencê-las a não o fazerem, no final gravamos uma cena.
Na verdade, há pouco sexo envolvido no vídeo da Rapariga X. Trata-se na maioria das vezes de uma conversa demorada, galanteadora e tensa, que volta repetidamente à questão de saber se eles vão ou não fazê-lo: ter relações sexuais, filmá-las e pô-las online. A Rapariga X hesita. Ela alterna entre a desenvoltura e o retraimento; num instante, está disposta a arriscar, no outro, angustia-se; ganha balanço e para. Está dividida e apreensiva; imersa nos seus próprios pensamentos. Reflete sobre os seus dilemas em voz alta, e Deen tenta acompanhá-la.
Presumivelmente, ela quer «gravar uma cena com o James Deen»; mas, quando ele lhe abre a porta, ela aparenta perder a coragem. Entra no apartamento, envergando umas leggings de PVC, uma camisa de seda bege com detalhes em preto — o nosso olhar está atrás da câmara, com Deen, que a filma —, e anda de um lado para o outro numa agitação, soltando um riso estridente e nervoso enquanto diz: Oh, meu Deus, oh, meu Deus. Captamos vislumbres do espaço genericamente anónimo: superfícies brilhantes, uma abundância de madeiras descoradas. E depois vislumbres dele ao pousar a câmara: calças de ganga com rasgões, enormes ténis brancos. Às vezes, ele iça a câmara até ao rosto da rapariga; ela vira a cara. Ele provoca-a — és uma universitária, julgas que és muito esperta — enquanto andam para trás e para a frente na cozinha, com a sua reverberante ilha central, no corredor com frisos em branco-vivo e paredes de um vermelho-escuro. Ele pergunta como é que ela quer ser chamada; ela não responde. Nesse caso, diz ele, vou chamar-te Rapariga X, até decidires qual é o teu nome.
Os nervos não a deixam sossegar — nem consigo olhar para ti —, ela move-se em avanços e recuos. Senta-se a uma mesa cromada e reluzente, ocupando um banco alvo. Os dois examinam um contrato, e a imagem desaparece gradualmente. Os pormenores não são da nossa conta. Quando a imagem volta a aparecer, ela tira uma selfie. Está prestes a assinar, mas nesse momento para e diz: O que é que eu estou a fazer com a minha vida? Que raio estou a fazer com a minha vida? Ela pode voltar atrás a qualquer momento, assegura Deen; o contrato pode ser rasgado. A imagem volta a desaparecer e a aparecer gradualmente; vemo-la a assinar o contrato. Podemos escolher um nome mais tarde, diz ele. A menos que queiras ser apenas a Rapariga X? Não sei, responde ela, num murmúrio relutante. Não faço a mínima ideia, nunca fiz isto antes.
O nervosismo da Rapariga X é lisonjeador para Deen: um sinal do seu deslumbramento por estar perante uma estrela colossal e improvável. Mas também previne quaisquer repercussões que ela possa temer, neutralizando aquilo que poderia ser considerado por Deen, ou por outras pessoas, como exibicionismo — porventura, como uma vontade de se meter em sarilhos. Ela está a preparar-se para ficar exposta.
A Rapariga X está a fazer algo direcionado para o olhar ávido de outros, algo que ela imagina que irá excitar e satisfazer um espectador — inclusive, porventura, aquele que está dentro dela, aquele que se quer ver a fazer sexo com Deen. Mas, quando ela pergunta O que é que eu estou a fazer com a minha vida? Que raio estou a fazer com a minha vida?, tenho a sensação de que ela imagina igualmente o olhar de outro tipo de espectador, um mais severo, um censor. Ambos os espectadores — aquele que a encoraja e aquele que a repreende — foram muito provavelmente interiorizados pela Rapariga X, tal como estão dentro de muitas mulheres: o espectador que satisfazemos na perfeição e o espectador cuja censura e represália tememos provocar. A Rapariga X tem em conta os espectadores dentro da sua cabeça e o poder do próprio espetáculo.
Ela é a impulsiva aspirante ao prazer; e é também a que está alheada, constrangida e inibida. Oscila entre o descaramento e a violenta consciência do desequilíbrio de poder entre ela e Deen. Há demasiadas coisas em jogo para si, tornando extremamente difícil perseverar na decisão de explorar os seus próprios desejos. Este vaivém dissociativo, estas mudanças de direção e registo advêm precisamente do poder das ideias punitivas sobre a sexualidade e a individualidade das mulheres. A Rapariga X debate-se com questões que muitas mulheres farão a si próprias — que eu certamente fiz a mim própria — na primeira vez que dormem com um homem ou no momento em que revelam o seu desejo. Estarei em perigo? Ao revelar-me, terei renunciado à privacidade e à dignidade? Serei perseguida e assombrada pelas minhas próprias ações? Serei capaz de resistir aos desejos importunos das outras pessoas? Dizer que sim terá obviado a minha capacidade de dizer que não?
Quando a Rapariga X expressa a sua ambivalência — quero fazer sexo contigo, mas não sei se quero que o mundo inteiro veja —, Deen mostra-se compreensivo. Não queres que te chamem de prostituta, diz ele. Algo do género, continua ela, adotando uma voz masculina, «vi-te a fazer sexo com ele, porque é que não fazes sexo comigo?». Este pensamento não é inteiramente paranoico. Um dos arguidos no julgamento do «caso dos abusos sexuais no râguebi», que veio a lume em 2018 na Irlanda do Norte, terá alegadamente perguntado, ao entrar na divisão onde dois outros homens obrigavam uma mulher a praticar atos sexuais: «Fizeste sexo com os outros, porque é que não podes fazer sexo comigo?» O desejo (presumido) de uma mulher — mesmo se for expresso apenas uma vez, por um único homem — torna-a vulnerável. Quando se assume que uma mulher disse que sim a alguma coisa, ela já não pode dizer que não a nada.
No filme, há vários momentos de riso, alegria e prazer; pode ser encantador assistir a isso. Há humor, desenvoltura e sedução. A Rapariga X e Deen parecem genuinamente gostar um do outro. Há química entre os dois. Ela espicaça-o; já não está deslumbrada, é sarcástica e contundente. Mas há também embaraço e movimentos mal calculados; há a ambivalência dela e a incerteza dele quanto a insistir ou a conter-se.
Por fim, ultrapassam as barreiras. Atravessam o limiar. Fazem sexo. Às vezes, são barulhentos, mas há também intervalos silenciosos e pausas na ação; uma vez por outra, ela solta um suspiro; eles riem e conversam. Tanto quanto é possível saber vendo a partir de fora — e não é possível —, parece bom, divertido, prazeroso. Permanecem em silêncio durante algum tempo e depois concordam em fumar um cigarro na varanda. Queres que desligue a câmara?, pergunta ele. Sim, responde ela. OK, diz ele. Ela começa a vestir-se. A câmara desliga-se, anuncia ele. A câmara desliga-se, repete ela. Ele caminha em direção à câmara, em direção a nós, os espectadores. A câmara, diz ele, irá desligar-se.
É provável que nunca venhamos a saber o que aconteceu depois disto; o que aconteceu nos intervalos entre as partes que foram filmadas: o que foi cortado, as conversas que não escutámos, o sexo que não vimos. É provável que nunca venhamos a saber qual a opinião da Rapariga X sobre as acusações levantadas contra Deen, ou se houve coisas naquele dia que a fizeram sentir-se desconfortável, que lhe causaram mágoa ou raiva. Não conheço a história da Rapariga X. Mas no filme vejo a experiência dolorosa — e familiar — de ser impelida em diferentes direções; de ter de contrabalançar o desejo com o risco; de ter de prestar atenção a tantos elementos na busca do prazer. As mulheres sabem que o seu desejo sexual pode deixá-las desprotegidas e ser invocado como uma prova de que a violência não foi, de facto, violência (ela queria). A Rapariga X mostra-nos, pois, que é a própria existência do desejo, e não somente a sua expressão, que é permitida ou inibida pelas condições em que este é atendido. Como podemos saber o que queremos quando saber o que queremos é tanto algo que nos é exigido quanto uma fonte de maus-tratos? Não é de espantar que a Rapariga X tenha sentimentos contraditórios, que fique paralisada pela indecisão. James Deen não entende a gravidade melancólica que o sexo tem para a Rapariga X — ele não precisa de entender. A Rapariga X, por outro lado, cresceu com exigências impossíveis. Ela experiencia o duplo espartilho que marca a existência das mulheres: dizer que não pode ser difícil, mas também não é fácil dizer que sim.
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Em 2017, vieram a lume várias acusações contra Harvey Weinstein. Na sequência disto, o hashtag #MeToo — um slogan criado por Tarana Burke em 2006 com o objetivo de chamar a atenção para a violência sexual perpetrada contra as jovens mulheres negras — disseminou-se nas redes sociais, incentivando as mulheres a contarem as suas histórias de agressão sexual. Uma ampla cobertura mediática sobreveio nos meses seguintes, maioritariamente sobre os abusos de poder no local de trabalho. E, neste contexto, o ato de falar abertamente sobre as experiências individuais foi considerado um bem indiscutível e necessário.
Eu apreciei a cobertura mediática, mas ela também me apavorava, e por vezes tinha de ir a correr para desligar o noticiário e o seu desfile imparável de histórias sinistras. No auge do #MeToo, parecia às vezes que nós, as mulheres, éramos obrigadas a contar as nossas histórias. A acumulação de histórias online — no Facebook ou no Twitter — e em pessoa criou uma atmosfera de pressão e expectativa. Quando é que vais contar a tua história? Era difícil não reparar no apetite coletivo por estas histórias, um apetite expresso na linguagem da preocupação e da indignação que se ajustava perfeitamente à ideia de que dizer a verdade é um valor fundacional e axiomático para o feminismo. O #MeToo não só valorizava o discurso das mulheres, como arriscava convertê-lo num dever, uma exibição obrigatória da potência feminista individual da autorrealização, da determinação em recusar a vergonha e da força para erguer a voz contra a indignidade. Também satisfazia uma fome lasciva de histórias sobre o abuso e a humilhação de mulheres, embora o fizesse de forma seletiva.
Quando é que convidamos as mulheres a falar, e porquê? A quem serve este discurso? Quem é convidado para falar em primeiro lugar — e que vozes são escutadas? Embora qualquer acusação de violência sexual levantada por uma mulher tenda a ser recebida com forte resistência, os relatos de mulheres brancas e ricas foram privilegiados durante o #MeToo, em detrimento, por exemplo, dos de jovens mulheres negras cujas famílias travavam havia décadas uma batalha judicial com o músico e abusador sexual R. Kelly. Estudos demonstram que há uma tendência para acreditar menos nas mulheres negras que denunciam crimes de abuso sexual do que nas suas congéneres brancas (com as raparigas negras a serem vistas como mais adultas e sexualmente experientes do que as raparigas brancas da mesma faixa etária) e que as condenações por violação que dizem respeito a mulheres brancas têm consequências mais sérias do que aquelas que dizem respeito a mulheres negras. Os discursos não são todos iguais.
E, contudo, não é só em retrospetiva que as mulheres são incentivadas a falar, mas também prospetivamente, tendo em conta o futuro, como uma proteção: um discurso claro é um ingrediente necessário para prevenir futuros males e não só para falar sobre os males passados. Nos últimos anos, surgiram dois requisitos para o bom sexo: o consentimento e o autoconhecimento. Na esfera do sexo, em que o consentimento é soberano, pelo menos enquanto ideal, as mulheres devem falar abertamente — e devem falar abertamente sobre aquilo que querem. Portanto, elas devem saber aquilo que querem.
Naquela a que chamarei a cultura do consentimento — a retórica prevalente segundo a qual o consentimento é o locus de transformação das maleitas da nossa cultura sexual —, o discurso das mulheres sobre o seu desejo é simultaneamente exigido e idealizado, promovido como indicador de uma política progressista. «Saiba aquilo que quer e descubra o que o seu parceiro quer», incentivava um artigo do The New York Times em julho de 2018, prometendo que «o bom sexo acontece onde estas duas agendas se encontram». «Tenha a conversa», exortava um educador sexual num programa da BBC Radio 4 intitulado «A Nova Era do Consentimento», em setembro desse mesmo ano, referindo-se à conversa direta e honesta sobre sexo: se o queremos e, em caso afirmativo, como é que o queremos. Tenha a conversa antes de chegar ao quarto, dizem-nos; tenha-a no bar, no táxi a caminho de casa. Qualquer embaraço será compensado mais tarde. «O consentimento entusiástico», escreveu Gigi Engle na Teen Vogue, «é necessário para que ambas as partes desfrutem da experiência» — um posicionamento comum que o académico Joseph J. Fischel interpretou como a perspetiva de que «o consentimento entusiástico, a partir do qual podemos aferir o desejo, não é apenas uma linha de base para o prazer sexual, mas quase sempre o seu garante». Agora, o discurso das mulheres carrega um pesado fardo: o de garantir o prazer, melhorar as relações sexuais e pôr fim à violência. O consentimento, para usar a fórmula de Fischel em Screw Consent, confere uma «magia moral ao sexo».
Esta retórica não é de todo nova; a militância feminista centrou-se intensamente no consentimento, sobretudo desde os anos 1990, originando no processo discussões acesas (em breve, voltarei a este tema). Em 2008, Rachel Kramer Bussel escreveu que, «enquanto mulheres, é nosso dever para connosco mesmas e para com os nossos parceiros sermos mais eloquentes a pedir aquilo que queremos na cama, bem como a partilhar aquilo que não queremos. Nenhum parceiro pode dar-se ao luxo de ser passivo e se limitar a esperar para ver até onde é que a outra pessoa irá». Que devemos dizer o que queremos — e, na verdade, saber o que queremos — converteu-se num truísmo com o qual é difícil discordar se levamos a sério a autonomia e o prazer sexual das mulheres. E este mandato para que as mulheres saibam claramente o que desejam e o ponham em palavras é enquadrado como intrinsecamente libertador, pois enfatiza a capacidade das mulheres para o prazer sexual e o seu direito a este.
Há muito que o pensamento progressista elencou a sexualidade e o prazer como substitutos da emancipação e libertação. Era precisamente isto que o filósofo Michel Foucault criticava em 1976, na sua obra A Vontade de Saber, quando escreveu que «amanhã o sexo voltará a ser bom». De forma irónica, ele parafraseava o ponto de vista dos liberacionistas sexuais da contracultura dos anos 1960 e 1970: os marxistas, os revolucionários, os freudianos — todos aqueles que acreditavam que, para nos libertarmos das amarras moralizadoras de um passado vitoriano repressivo, tínhamos de dizer a verdade sobre a sexualidade. Foucault, pelo contrário, desconfiava do modo como «ardentemente escamoteamos o presente e convocamos o futuro», argumentando que os respeitáveis vitorianos eram, na verdade, bastante loquazes em relação ao sexo, ainda que essa loquacidade tomasse a forma da definição de patologias, anormalidades e aberrações. Não só reviu a perspetiva clássica que encarava os vitorianos como pudicos, reprimidos e calados, como também se opôs ao truísmo de que falar abertamente sobre sexo equivale a libertação e o silêncio equivale a repressão. «Não devemos julgar», escreveu Foucault, «que, ao dizermos sim ao sexo, dizemos não ao poder.»
O sexo foi — e ainda é — proibido e regulado de inúmeras maneiras, e a sexualidade das mulheres, em particular, foi intensamente restringida e policiada. Porém, vale a pena alongarmo-nos sobre o ponto de vista de Foucault. Vivemos outra vez um momento em que parece que será amanhã — um amanhã no horizonte, suficientemente próximo ao toque — que o sexo será bom de novo; um momento em que escamoteamos o presente e convocamos o futuro, armados com as ferramentas necessárias para desfazer a repressão passada: as ferramentas do consentimento e, como veremos, da investigação sexual. Mas falar e dizer a verdade não são atos inerentemente emancipatórios, e nem a linguagem nem o silêncio são inerentemente libertadores ou opressivos. Além disso, a repressão pode atuar através dos mecanismos da linguagem, através do que Foucault designou como «incitamento ao discurso». O consentimento, e a sua presunção de clareza absoluta, põe o ónus da boa interação sexual no comportamento das mulheres — no que elas querem e no que elas podem saber e dizer sobre os seus desejos, na sua capacidade de representar um sujeito sexual confiante para garantir que o sexo é mutuamente prazeroso e não violento. Pobre daquela que não se conhece nem põe em palavras esse conhecimento. Isto, como veremos, é perigoso.
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