PRELÚDIO

A jovem acordou antes de o sol entrar pelas janelinhas altas. Uma tonalidade rosada já tornava visíveis as paredes caiadas de branco. Levantou-se da esteira e trajou o vestido de linho solto. Usou a água de uma bacia para lavar o rosto e prendeu o longo cabelo negro com um gancho de madeira. Os pais dormiam, a filhota também. o cachorro latia baixinho, a cauda agitando-se enquanto aguardava um afago. Seguiu-a para as traseiras da casa, onde, na cozinha, espécie de pátio a céu aberto, a jovem encontrou os restos de pão com mel do dia anterior. Dividiu-os com o cão, pegou numa bilha e voltou a atravessar a casa para o exterior. Os olhos fixaram-se logo no rio largo e lento que se espreguiçava na base do morro em tons que devolvia do céu. Viam-se as silhuetas preguiçosas de hipopótamos nas margens e aves cruzavam os céus, eram íbis. As capoeiras do tio Zaid, imediatamente depois de um muro baixo, pareceram despertar com a sua passagem: patos, pombos e gansos grasnaram ruidosamente. Os rafeiros da vila responderam das ruelas estreitas da aldeia. No caminho até ao poço encontrou-se com outras mulheres jovens, todas carregando bilhas que sustentavam com os braços caídos junto aos corpos esguios. Cumprimentaram-se com sorrisos. Adiante cruzou-se com os primeiros agricultores com saiotes brancos e peles curtidas; conduziam rebanhos de bois de enormes pontas para arar os terrenos que o rio, ao retroceder, deixara cobertos de lama. Hapi fora generosa, não haveria fome. O seu sorriso de pequenos dentes brancos e aprumados acentuou-se quando recordou que o irmão mais velho deveria chegar dentro de um dia. A alma da jovem era sonhadora, inocente, feliz e nunca imaginou que com ele chegasse a desgraça…

Lisboa 1874

CAPÍTULO I

Onde uma amiga querida chama por Tormenta

Benjamim Tormenta parou diante da igreja de Nossa Senhora da Encarnação, a que a claridade do final do dia emprestava projeções majestosas de sombras lilases. Puxou de um cigarro, acendeu-o sem pressa, e os seus olhos miraram, da sombra pesada do chapéu de coco, o colorido do Chiado, essa calçadinha real, verdadeira encruzilhada do destino, que os peregrinos experimentados colocavam a par da Regent Street, da Puerta del Sol, do Unter den Linden, do Boulevard des Italiens e do Corso de Roma. Os emblemáticos quiosques com vendas de refrescos – e onde se bebia o melhor capilé da cidade – começavam a fechar com preguiça; os esfuziantes vendedores de castanhas assadas apregoavam-nas com vozes arranhadas: «Quentes e boas, dez réis vinte!»; o pictural homem do realejo, de cabeleira mais branca do que a neve, acompanhava-se de um urso amestrado que dançava ao som do toque de pandeireta; meia dúzia de pantomineiros de praça pública, fazendo uso do mais cómico palavreado, arengavam às massas ingénuas produtos milagrosos, dos elixires para fazer crescer o cabelo aos que extraíam calos sem dor e tiravam as nódoas dos fatos.

"É Desta Que Leio Isto"

"É Desta Que Leio Isto" é um grupo de leitura promovido pela MadreMedia e por Elisa Baltazar, co-fundadora do projeto de escrita "O Primeiro Capítulo”.

Lançado em maio de 2020, foi criado com o propósito de incentivar à leitura e à discussão à volta dos livros. Já folheámos as páginas de livros de autores como Luís Sepúlveda, George Orwell, José Saramago, Dulce Maria Cardoso, Harper Lee, Valter Hugo Mãe, Gabriel García Marquez, Vladimir Nabokov, Afonso Reis Cabral, Philip Roth, Chimamanda Ngozi Adichie, Jonathan Franzen, Isabel Lucas, Milan Kundera, Joan Didion, Eça de Queiroz e Patricia Highsmith, sempre com a presença de convidados especiais que nos ajudam à discussão, interpretação, troca de ideias e, sobretudo, proporcionam boas conversas.

Ao longo da história do nosso clube, já tivemos o privilégio de contar nomes como Teolinda Gersão, Afonso Cruz, Tânia Ganho, Filipe Melo e Juan Cavia, Kalaf Epalanga, Maria do Rosário Pedreira, Inês Maria Meneses, José Luís Peixoto, João Tordo e Álvaro Laborinho Lúcio, que falaram sobre as suas ou outras obras.

Para além dos encontros mensais para discussão de obras literárias, o clube conta com um grupo no Facebook, com mais de 2500 membros, que visa fomentar a troca de ideias à volta dos livros, dos seus autores e da escrita e histórias que nos apaixonam.

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Ao longo da Rua do Chiado, as lojas mais fashionable resplandeciam de brilhantismo com as pujantes luzes do gás que começavam a acender. Constituía um belo passatempo ver perpassar nessas calçadas as meninas solteiras, num pisotear afetado, soberbas no trajar de ricos vestuários conforme a última moda do Journal de Modes; e as voluptuosas e elegantes cortesãs, num esvoaçar pré-ensaiado, sobressaindo as travessas espanholas e as bem ginasticadas bailarinas do São Carlos, tipo de mulheres que Lamashtu denominava de «pegas de apetite». Esse desfilar de fêmeas estimulava os mirones profissionais, marialvas ociosos e janotas afiambrados, solteirões ou pais de família, mas todos em atitudes de conquista, em despique com conhecidos aristocratas, ricaços sovinas e funcionários públicos pelintras, sempre de olhar agudo e monóculo assestado, postados às portas ou no interior dos cafés, fumando, bebendo, trocando pilhérias.

Quando a luva de casimira escura de Tormenta deslizava pela corrente do relógio, os sinos da Encarnação anteciparam-se no seu badalar pesado, logo seguidos pelos da igreja do Loreto que soaram mais graves e lamentosos. Faltavam duas horas para o pano do São Carlos subir, tinha tempo para uma volta pelo Chiado, «fazer o pote», como diziam os dandies. Então, desceu até ao Hotel Gibraltar e continuou pela Rua Nova do Almada, dobrou a esquina ao Pote das Almas até à Rua do Ouro e seguiu para os lados do Rossio; chegando às Escadinhas de Santa Justa, subiu-as de passo leve e seguiu pela Rua Nova do Carmo. Só parou na Casa Havaneza, que em menos de dez anos se tornara lugar de culto para os fumadores. Indiferente aos vultos que se apinhavam – políticos de volta das câmaras, brasileiros de volta do Pará, elegantes de volta da Avenida –, deixou o seu olhar deslizar pelas prateleiras de cores vivas a que o gás emprestava reflexos dourados de altar em talha dourada. Eram as pilhas de cigarros e charutos, em especial os de Havana; as caixinhas metálicas com papel de fumar Zig-Zag, disponíveis em branco e alcatrão; eram ainda as embalagens do tabaco de onça da Companhia do conde de Burnay, a setenta réis o francês e sessenta réis o superior. O bruxeiro comprou uma caixa de charutos de vintém que o fiel Raj se esquecera de levar e puxou de um. Era loiro, pálido, airoso, redondinho. Estalou de seco quando lhe cortou a ponta. De folha ligeira e porosa, prometia cinza branca e firme. Acendeu-o com gosto e saiu ligeiro do estabelecimento, sentindo que ardia bem e que deixava em redor um fumo agradabilíssimo.

Imaginamos os demónios bíblicos nas profundezas do Inferno a deleitarem-se com fumos densos de enxofre, mas Lamashtu, morador no ventre do detetive, agasalhado nas suas tripas, escondido na medula dos ossos que lhe sustentavam o corpo, espécie de clandestino dentro da sua cabeça, abominava fumo. Como as abelhas quando fumigadas, apetecia-lhe fugir para o alto; não o podendo fazer, arrastava-se em silêncio para a parte mais funda de Tormenta. Foi o que fez, mas sem o tumulto que lhe era habitual; a serpente estava satisfeita pois brevemente ia estar próxima de Felícia, mulher cuja companhia apreciava tanto ou mais do que o próprio bruxeiro.

Atravessando o Chiado já mergulhado na escuridão, o detetive apontou o passo em direção ao São Carlos. Àquela hora todas as atenções se aglomeravam em redor do teatro, onde as luzes brilhavam mais fortes nos candeeiros, os trens que paravam eram mais luxuosos, as mulheres impecavelmente vestidas tornavam-se superiormente belas e os homens mais interessantes; sentia-se no ar uma energia etérea cujo vórtice emanava da fachada neoclássica do edifício. Mas era sabido que nem toda aquela multidão ia para assistir a uma ópera. Uns iam para ver uma mulher que lhes interessava, outros para combinar um juro com o agiota, outros ainda apenas para verem e serem vistos. Durante todo o tempo do espetáculo, mesmo quando a corte estava presente, era normal o salão e todos os corredores estarem repletos de fumo como em um dos cafés mais frequentados, conversando-se em voz alta e correndo-se para um e outro lado. Se isso não seria possível nos corredores estreitos e cavernosos do teatro de Viena, era-o certamente nos do São Carlos, largos, altos e abobadados.

Tormenta sentou-se na cadeira almofadada do seu camarote e pouco depois ergueu-se a cortina para o primeiro ato de Dinorah. Estranhou Felícia não ter chegado, não era seu costume atrasar-se, e o cão-tinhoso resmungou. Acendeu outro charuto e, embalado pelas vozes poderosas e mornas que se projetavam do palco, sentiu que podia dormitar ali, no seu camarote, caverna escura adornada exteriormente com belos arabescos e candelabros de cristal.

Despertou de um torpor morno com uma mão que se lhe pousou no ombro. Era Adama Ramanujan; estava sobressaltado, os olhos de felino do criado refletiam os fulgores do imenso lustre de cristal que se suspendia nos entreatos sobre a plateia.

— Sahib — disse, inclinando-se sobre o bruxeiro.

— Raj…

— Chegou um moço de recados do paço da duquesa. Deu-se uma tragédia…

O bruxeiro despertou em menos de um fósforo, os olhos abriram-se, as costas aprumaram-se, as pernas deixaram-no em pé sem que tivesse conscientemente ordenado ao seu corpo um movimento.

— Uma tragédia!? Felícia está bem?

— Está bem, sahib, mas a menina Salomé foi atacada.

— Atacada? Um cliente do paço?

— O moço atrapalhou-se no recado, mas penso que não. O que sei é que a menina Felícia chamou por si, sahib.

O detetive vestiu o casaco, pegou no chapéu e na bengala de Malaca; acompanhado pela sombra sinistra do criado pardo, saiu do São Carlos para o frio da noite e fez sinal a um carro de praça. Sem demora, o cocheiro estalou o chicote e o coupé arrancou para o número 19 da Travessa de São João da Praça.

* * *

O quarto de Salomé no palácio dos condes de Vila Flor ficava virado para o rio. Durante o dia respirava a frescura e o aroma da magnífica paisagem por duas vastas janelas com pequenas vidraças de cristal que cortinas azuis Luís XV abraçavam com moleza. Agora, na noite da quase tragédia, a escuridão retinta que escorregava do exterior era afastada por uma infinidade de castiçais e candeeiros distribuídos sobre os móveis do cómodo; se a luz afastasse a desgraça, esta nunca se abeiraria do leito de Salomé. A jovem estava deitada sobre os lençóis de uma cama larga e fofa; inclinado sobre o corpo pálido, com o estetoscópio atento nos ouvidos, encontrava-se um doutor que um serviçal fora buscar à pressa.

Felícia ouviu os passos de Tormenta e girou, avançando para ele com os olhos vermelhos. Trajava de forma simples – o que na duquesa significava permanecer uma das mulheres mais soberbas e elegantes de Lisboa: um vestido de seda cor de pérola com um decote quadrado cujos seios rijos quase faziam estalar, enfeitiçando homens e mulheres, por motivos diferentes, quando não pelo mesmo.

O bruxeiro recordava-se de ver a duquesa em sobressalto apenas uma vez: quando lhe salvara a vida havia muitos anos. De resto, sempre serena, elevada, espirituosa, como se caminhasse num plano acima da restante espécie humana. Naquele momento o coração batia-lhe no peito como o de um pardal espavorido, trazia as mãos geladas quando agarrou as do detetive.

— Obrigada por teres vindo, Benjamim — sussurrou, torturada.

— O que se passa?

— Atacaram Salomé!

— Quem faria isso? E por que razão?

— Um louco, em plena rua…

— Como está ela?

O médico aproximava-se com delicadeza. Era um senhor de cabelos e barbas brancas, vestido com esmero extremo e alguma excentricidade inglesa. Enrolava o cabo do estetoscópio com os dedos finos e manchados de tabaco. Disse, esboçando um sorriso tranquilizador:

— A jovem dorme, ministrei uma terapêutica forte que deverá durar até de manhã. De resto, foi apenas um grande susto. — Depois, fixando o olhar admoestador na duquesa, acrescentou: — E aconselho-a a repousar também, e a colocar um pacho gelado nesse edema.

Só então o bruxeiro reparou que na testa de Felícia, oculto sob os cabelos cor de oiro, havia um alto lilás. Sentiu um sobressalto no estômago, não sabendo se era seu ou da serpente. A mulher sacudiu a mão para despreocupar o doutor e acompanhou-o à porta, desfazendo-se em agradecimentos que o venerável ancião recusava embevecido. Quando finalmente um serviçal cerrou a porta atrás do médico, Felícia regressou com passos urgentes para junto de Salomé. Tormenta acompanhou-a. A jovem ninfeta, numa robe de chambre rosa, parecia dormir em paz. Os longos cabelos negros, escuros como azeviche, espalhavam-se pela almofada e adquiriam reflexos dourados à luz das velas e do gás. Os peitos pequenos espreitavam sob a caxemira delicada, e as mãos, tombadas sobre o edredão de cetim, pareciam requisitar beijos e adoração.

O detetive agarrou nos ombros de Felícia e virou-a gentilmente para si. Os olhos violetas dela, sob a mancha das pestanas longas e escuras, emanavam sofrimento; e, lá mais no fundo, uma espécie de fúria assassina que ele aprendera a reconhecer no olhar humano. Tormenta passou-lhe a mão pela testa para sentir o inchaço.

— O que aconteceu, querida amiga?

Ela abraçou-o e deixou-se estar, a cabeça ligeiramente pendente para lhe descansar no peito largo e quente. Acabou por dizer:

— Precisei de ir para os lados de Buenos Ayres; estava um final de dia bonito e, para não perder tempo, dispensei o landau com cocheiro e levei eu mesma a pequena sege. A pombinha foi comigo. No regresso, em plena Rua das Trinas, perto do antigo convento, aproximou-se do carro o que me pareceu um mendigo enrolado em farrapos. Levei a mão à bolsa para lhe dar uns réis e eis que ele pula para a sege…

Felícia estremeceu e recuou um passo mas não largou a mão de Tormenta; girou, sentou-se no sofá de damasco ao lado e ele posicionou-se por trás, começando a acariciar-lhe os ombros que pareciam tensos como os de uma figura de mármore. Pressionou os pontos vitais e ela suspirou baixinho, todo o corpo adquirindo de imediato uma languidez quente e vaporosa.

— Duas mulheres sublimes passam num carro, Felícia, qual é o varão que não se arrojaria para cima de vós?

Ela soltou um risinho abafado e censurou-o:

— Brincas, Benjamim, mas foi o maior susto da minha vida. O homem ignorou-me inteiramente e atirou-se à Salomé com uma sofreguidão esfomeada. Agarrou-lhe os cabelos e revirou-lhe a cabeça como se a estudasse, juraria que até a cheirou como um cão.

Os dedos fortes do bruxeiro continuaram a deslizar-lhe pelos ombros e pelo pescoço, parando aqui e ali, ora suaves como esponjas, ora parecendo pinças de ferro, e os batimentos do coração da duquesa foram-se regularizando. Prosseguiu numa voz que principiava a adquirir sonoridades mansas:

— Mas o mais medonho era o que o homem murmurava, palavras atropeladas numa língua infame; e a minha pombinha ali, aterrada, sem mexer um músculo, como uma ovelha que um bruto inspeciona antes de comprar. Tentei afastá-lo e o lenço que lhe envolvia o rosto ficou-me nas mãos… — A descrição interrompeu-se, Felícia levantou a cabeça e procurou o olhar do bruxeiro. Só então continuou: — O rosto, Benjamim, o rosto dele não era o de um homem. Se era um homem, era o mais desafortunado dos homens, mas até o odor que emanava me disse estar na presença de alguém… de algo… que apenas se assemelhava a nós.

Os dedos do detetive pararam; ajoelhou-se ao lado de Felícia e os olhos cinzentos estreitaram-se. Disse num murmúrio:

— O que viste exatamente?

— Ele tinha um par de olhos e uma boca como o comum dos mortais, mas as semelhanças ficavam-se por aí. A pele era… molhada e gélida ao toque, esverdinhada como a dos moribundos; os olhos seriam os mais tristes deste mundo se não emanassem tanta crueldade: enormes como ovos, parecendo poder soltar-se e rebolar pelas faces, com íris largas e escuras como buracos; a boca, imensa, rasgava-lhe as bochechas e abria-se como a de um sapo, rosa, molhada, mostrando fileiras de dentes miúdos e aguçados… Benjamim… Alguma vez viste um horror assim?

Assim Falou a Serpente
créditos: Saída de Emergência

Livro: Assim Falou a Serpente

Autor: Luís Corte Real

Editora: Saída de Emergência

Preço: 17,90 €

Ele negou num movimento subtil da cabeça. Ela continuou:

— Senti que o coração me parava e temi desfalecer, mas então a criatura levou a mão aos trapos que vestia e puxou de uma faca que encostou ao pescoço de Salomé; começou a entoar uma cantilena medonha cujos urros subiam e desciam como num ritual de seita… o que eu daria para ter um revólver naquele momento. Ter-lhe-ia estourado os miolos sem hesitação! — Tormenta teve a certeza que a duquesa o faria. — Lembrei-me de que tinha o Anna Karenina na bolsa cujo marcador era a navalha com que separo as páginas. Puxei da lâmina e cravei-a no pescoço do atacante… mas não perfurou, a lâmina embotou, como se tivesse esbarrado na pele grossa de um rinoceronte, e o único reflexo da criatura foi girar o braço para trás, acertando-me com o pomo do punhal na cabeça. Senti uma dor lancinante, luzes brancas ofuscaram-me, Salomé gritava, a criatura levantava o punhal para o golpe final… e então pareceu-me que intervieste!

— Eu?!

— Sei agora que não, mas na altura acreditei que sim; uma figura de negro arrancou o louco da sege e deixou-o estendido no macadame. Antes que ele se conseguisse levantar, aquele salvador, veloz como sei que és, implacável como te conheço, arremeteu para cima do agressor e cravou-lhe uma lâmina no ventre. Teve de o fazer várias vezes pois o maldito não queria morrer nem cessava de bradar a mesma palavra vezes sem fim…

— Que palavra, Felícia?

Ela hesitou, como se verbalizar fosse ainda pior do que recordar:

— DagãoDagão… pareceu-me.

A atenção de Tormenta desviou-se do assassino para o salvador e questionou, intrigado:

— E esse homem de negro, quem era afinal?

…fedes a ciúmes, tolo

Mas não era ciúme o que o bruxeiro sentia. Ou não completamente. Era desconfiança: que homem aparecia da noite, como que por prodígio, para salvar duas mulheres, golpeando, como se já o tivesse feito muitas vezes, um louco armado?

— Não sei quem era, Benjamim. Mas quando a criatura finalmente expirou, ele ergueu-se e aproximou-se da sege. Levantou as mãos nuas para me tranquilizar, arrumara a lâmina nas costas, mas os dedos estavam ensopados de sangue. Vi que era alto e magro, tinha a pele parda, brônzea do sol, uns olhos negros rasgados, nariz direito, dentes brancos, cerrados. O olhar dele logo se fixou em Salomé que desfalecera, e a mão vermelha subiu ao rosto para se benzer várias vezes. Por momentos temi que um doido tivesse substituído outro; e talvez tenha sido esse o caso, pois quando falou, num francês carregado de uma pronúncia obscura, foi para dizer «Oh, adorada Bastet, muitas vezes filha de Bastet». Seguidamente desviou os olhos para mim, que ainda vagavam incertos depois da pancada, e gemeu: «Rápido, vão, as ruas são perigosas para ela… os demónios vão voltar.» Colocou-me as rédeas na mão e deu um açoite no dorso da égua que arrancou de imediato. Olhei para trás, pelo óculo, e ainda o vi a colocar o cadáver ao ombro, tranquilo como um carregador de carvão no Aterro. Fiz uma corrida para casa, mandei trancar portas, e pedi para te chamarem a ti e ao médico… desculpa, sei que faltei à Dinorah.

O detetive esboçou um sorriso para a tranquilizar mas a sua mente estava longe de encontrar quietação: uma criatura atacara sem razão, um estranho misterioso interviera e deixara a sugestão de mais ataques. Tormenta levantou-se, acendeu um cigarro e deu alguns passos sobre o tapete felpudo e macio do aposento. Os seus olhos deslizaram para Salomé, cuja respiração lhe fazia subir e descer os peitos pequenos; a jovem parecia estar no vórtice de todo aquele enigma. Soprando nuvens carregadas e desoladas para o teto alto, perguntou:

— Essa é a história toda, Felícia? É urgente que faças um esforço para...

— O punhal… — disse ela de repente. — O assassino deixou-o cair na cabina da sege. O cocheiro encontrou-o e trouxe-mo.

— Onde está?

Estava na biblioteca. O detetive pegou na mão da duquesa, na serpentina mais próxima e saíram de rompante do aposento. Adama Ramanujan estava do lado de fora, sentado num cadeirão, imóvel como um felino nas sombras. Tormenta pediu que ali continuasse, de olho atento, e ele assentiu com um movimento subtil da cabeça a que um turbante escuro acrescentava misteriosa majestade. Atravessaram o palacete mergulhado no sossego da madrugada mas onde os ouvidos aprimorados do bruxeiro distinguiam a animação abafada de gritinhos, gargalhadas, gemidos, tilintar de loiças, rolar de dados e girar de roletas, espécie de arautos dos pecados que se desenrolavam ali perto, no antigo palácio, do outro lado do Beco das Moscas, verdadeiro epicentro de todos os prazeres extravagantes e proibidos de Lisboa.

Ignorando as entradas escuras como cavernas que irradiavam de ambos os lados do corredor e conduziam a escadarias, salas de espera, de jantar, de estar, de música e de jogos, seguiram até à biblioteca cuja porta abria de par em par como a de um templo. Era um aposento majestoso, todo em ébano, com um pé-direito tão alto que permitia um mezanino em redor acessível por uma escada em caracol. Do chão ao teto de ambos os pisos havia prateleiras com mais de trinta mil volumes magnificamente revestidos de marroquim escarlate. Era a famosa biblioteca que o duque de Terceira e os seus vetustos antepassados haviam construído com devoção, bom gosto e não pouco investimento ao longo de gerações.

Tormenta acendeu dois enormes candeeiros de latão lustrosos e antigos que pendiam do teto; a duquesa encaminhou-se para a mesa debaixo deles, rodeada de confortáveis cadeiras de damasco, onde, sobre uma toalha verde-escura, repousava uma manta dobrada. Abriu a manta e duas lâminas refulgiram aos olhares. Era a pequena navalha para rasgar as folhas dos romances, cuja ponta se mostrava embotada, e um punhal bem maior e de aspeto sinistro – a arma com que o assaltante tentara tirar a vida a Salomé. O bruxeiro pegou no punhal e rodou-o lentamente entre os dedos. O cabo, de marfim com aplicações de ouro, terminava num pomo feito de cristal de rocha. Já a lâmina parecia de ferro, começando ligeiramente mais estreita, alargando a meio e terminando aguçada como uma folha de eucalipto. Acariciou-a, cheirou-a, encostou-lhe a língua, Lamashtu descreveu a sua composição química e concluiu:

…ferro do céu

O detetive sabia que antes de o Homem dominar o ferro, esse metal só se encontrava nos meteoritos que cruzavam os céus como flechas de fogo e eram recebidos pelos povos como oferendas dos deuses. Aquele seria um punhal feito desse ferro caído do céu; uma arma antiga, milenar, provavelmente várias vezes milenar. O seu lugar seria num museu… e não nas garras de um louco.

Com o cigarro esquecido nos lábios, as mangas da camisa arregaçadas e o colete escuro aberto, Tormenta caminhou com passadas largas e pensativas pela biblioteca. A duquesa, arrepiada no vestido leve, ajoelhou-se diante da enorme lareira e acendeu ela própria o fogo. As labaredas ergueram-se vivas e ela ali ficou, cingindo os próprios braços, sentindo o calor penetrar-lhe no corpo. O cabelo rebrilhava-lhe como a superfície do Sol e caía em cachos de ouro luminoso. Apesar do susto, apesar de ter olhado a morte nos olhos, Felícia tinha as costas direitas e, no olhar perdido nas chamas, era mais difícil encontrar o medo da donzela do que a fúria da valquíria.

— Dagão… Bastê… — murmurou o bruxeiro; os nomes soavam-lhe inteiramente estranhos mas talvez o cão-tinhoso soubesse mais. Uma voz roncou lá do fundo, preguiçosa, danada:

…talvez dagã, dagon, o temível deus-peixe, pai de baal
…talvez bastet, a poderosa, deusa gata de bubástis
…talvez nem dagon nem bastet
…mas apenas dragão e besta
…eu e tu

O detetive assentou-se distraidamente num sofá de damasco grená, posicionado perto do lume, e a duquesa foi ter com ele, aninhando-se ao lado; pouco depois dormia em paz com a cabeça no seu ombro Raj velava Salomé e ele fazia o mesmo a Felícia. Mas Tormenta não encontrou essa paz, podia jurar que a serpente guardava algo. Fumou furiosamente toda a noite, o punhal sempre a girar-lhe nos dedos como se assim lhe pudesse arrancar os segredos.

INTERLÚDIO

Quando a jovem viu o irmão mais velho a entrar no pátio da casa, a mãe veio a correr do terraço e desfez-se em lágrimas e soluços. O seu filho parecia um estranho: crescera em altura, tinha os braços mais fortes, a testa alta curtida pelo sol. O pai teria adorado vê-lo chegar montado num carro de guerra, de arco na mão, pronto a trespassar os inimigos do reino e a impressionar toda a aldeia. Mas não, Kanope trazia apenas uma túnica branca e as sandálias de ráfia penduradas no punhal do cinto. Trazia também um olhar triste em que só a irmã reparou. Depois de abraçar os pais e a sobrinha, foi a vez dela. Agarrou-lhe as mãos, observou com ternura as unhas e as palmas tingidas de hena, os olhos contornados com khol negro e pó verde de malaquite, e assegurou-lhe que era a rapariga mais bonita do Delta. O pai separou-os e enxotou a filha, chegara o seu primogénito, e levou-o para uma mesa baixa. Estava coberta de taças de madeira e barro; havia peixe gordo que o tio trouxera do rio, lebre estufada, pão e cerveja que a mãe preparara naquela manhã, legumes da horta, fruta, bolos adoçados com mel e leite de ovelha. Depois de todos se sentarem no chão e agradecerem aos deuses tanta bonança, começaram a comer; Kanope contou-lhes tudo o que queriam saber: treinara arduamente sob as ordens do filho do faraó, guardara caravanas de comerciantes e velara para que as mercadorias destinadas ao palácio real chegassem a Tebas. Agora ia partir para norte pois falava-se de guerra. Vindos do outro lado do mar, chegavam frotas de salteadores que pretendiam conquistar o Egipto depois de terem reduzido a cinzas uma miríade de cidades aliadas. Ramsés engajara todo o exército, muitos arqueiros núbios e soldados líbios – todos marchavam em direção à costa para deter a invasão dos Povos do Mar. A jovem sentiu um estremecimento no peito e percebeu de que forma a morte ia chegar à família…