KIMURA

Bullet Train 1
Bullet Train 1 créditos: Editora ASA

A estação de Tóquio está à pinha. Já há bastante tempo que Yuichi Kimura não passa por aqui, de maneira que não sabe se isso é habitual. Se alguém lhe dissesse que havia ali um evento especial qualquer, acreditaria. As vagas de pessoas que avançam em todas as direções parecem querer arrastá-lo, o que lhe recorda o programa de televisão que viu com Wataru, um acerca de pinguins, todos muito apertados uns contra os outros. Pelo menos os pinguins têm uma desculpa, pensa Kimura. Lá onde eles vivem faz realmente frio.

Fica à espera até ver uma aberta na multidão e por fim atalha pelo meio das lojas de recordações e dos quiosques, onde consegue avançar mais depressa.

Mais um lanço de escadas e está em frente do torniquete do shinkansen, o comboio de alta velocidade. Quando passa no portal de acesso às plataformas sente-se subitamente tenso com a ideia de que alguém pode detetar a arma que leva no bolso do casaco, bloquear a passagem e chamar um enxame de seguranças. Seja como for nada disso acontece. Abranda para observar o monitor e ver qual é a plataforma de onde sairá o seu comboio, o Hayate. Há um polícia de uniforme de guarda, mas não parece ter reparado nele.

Um miúdo com uma mochila passa por ele a correr, deve andar na escola primária. Kimura lembra-se de Wataru e sente um aperto no peito. Pensa no filho, inconsciente numa cama de hospital. A mãe de Kimura chorara alto quando o vira. «Olha para ele, parece que está só a dormir, como se não lhe tivesse acontecido nada. Temos a impressão de que pode estar a ouvir tudo o que dizemos. Pobre menino!» A ideia fá-lo sentir como se o esvaziassem por dentro.

O filho da mãe vai pagá-las. Se for possível alguém atirar um rapazinho de seis anos do telhado de um centro comercial e continuar a sua vida como se nada fosse, a respirar como todas as outras pessoas, há alguma coisa no mundo que não está bem. Kimura sente um novo aperto no peito, não de tristeza mas de raiva. Segue para as escadas rolantes com um saco de papel na mão. Parei de beber. Sou capaz de andar sem me desequilibrar. As minhas mãos deixaram de tremer.

"É Desta Que Leio Isto"

"É Desta Que Leio Isto" é um grupo de leitura promovido pela MadreMedia. Lançado em maio de 2020, foi criado com o propósito de incentivar a leitura e a discussão à volta dos livros.

Já folheámos as páginas de livros de autores como Luís Sepúlveda, George Orwell, José Saramago, Dulce Maria Cardoso, Harper Lee, Valter Hugo Mãe, Gabriel García Marquez, Vladimir Nabokov, Afonso Reis Cabral, Philip Roth, Chimamanda Ngozi Adichie, Jonathan Franzen, Isabel Lucas, Milan Kundera, Joan Didion, Eça de Queiroz e Patricia Highsmith, sempre com a presença de convidados especiais que nos ajudam à discussão, interpretação, troca de ideias e, sobretudo, proporcionam boas conversas.

Ao longo da história do nosso clube, já tivemos o privilégio de contar nomes como Teolinda Gersão, Afonso Cruz, Tânia Ganho, Filipe Melo e Juan Cavia, Kalaf Epalanga, Maria do Rosário Pedreira, Inês Maria Meneses, José Luís Peixoto, João Tordo e Álvaro Laborinho Lúcio, que falaram sobre as suas ou outras obras.

Para além dos encontros mensais para discussão de obras literárias, o clube conta com um grupo no Facebook, com mais de 2500 membros, que visa fomentar a troca de ideias à volta dos livros, dos seus autores e da escrita e histórias que nos apaixonam.

Subscreva a Newsletter do É Desta que Leio Isto aqui e receba diretamente no seu e-mail, todas as semanas, sugestões de leitura, notícias e acesso a pré-publicações.

O Hayate já está na plataforma, preparado para partir. Apressa-se e entra na primeira porta da terceira carruagem. De acordo com a informação que recebeu dos antigos colegas, o seu alvo está sentado num de três lugares na fila cinco da carruagem sete. Vai chegar lá a partir da carruagem seguinte e entrar pela parte de trás sem ser visto. Devagar e com calma, alerta, um passo de cada vez.

Passa entre as carruagens. Do lado esquerdo vê um lavatório e para em frente do espelho. Depois de puxar a cortina que protege a pequena área de toilette observa o seu reflexo no espelho. Tem o cabelo pouco cuidado e ramelas nos cantos dos olhos. As patilhas e a barba por fazer dão-lhe um aspeto igualmente grosseiro. Parece realmente não ter feito a barba. Não é fácil ver-se a si mesmo com aquele aspeto. Lava as mãos no fio de água até ela ser automaticamente cortada. Percebe que os dedos lhe tremem.

Não é a bebida, são os nervos, diz a si mesmo.

Não dispara a arma desde que Wataru nasceu. Na verdade, apenas lhe tocara uma vez, quando preparava as suas coisas para a mudança. Agora sente-se satisfeito por não a ter deitado fora.

Uma arma dá sempre jeito quando queremos assustar um filho da mãe qualquer, quando queremos mostrar a um filho da puta que foi longe de mais de uma maneira que não deixe lugar a dúvidas.

O rosto refletido é distorcido por um esgar súbito. Tem a impressão de que o espelho abre rachas e a sua superfície deixa de lhe parecer lisa. A sua cara está deformada.

O que está feito está feito, parece dizer. E serás capaz de apertar o gatilho, mesmo que queiras? Não passas de um bêbado que nem o filho foi capaz de proteger.

Eu deixei de beber.

O teu filho está no hospital.

Mas vou apanhar o filho da puta. Serás capaz de lhe perdoar?

O turbilhão de emoções dentro da sua cabeça deixou de fazer sentido, e explode.

Leva a mão ao bolso do fato de treino preto e pega na arma. Depois retira de lá um cilindro estreito. Ajusta-o ao cano e roda-o até ficar pronto a usar. Não vai eliminar completamente o ruído do tiro, mas numa arma de calibre 22 como a sua vai transformá-lo num som mais discreto que o de uma arma de brinquedo.

Vê-se uma vez mais ao espelho, inclina a cabeça, volta a meter a arma no pacote de papel e afasta-se do lavatório.

Um pouco mais adiante uma funcionária dos caminhos de ferro prepara a carruagem-restaurante. Por pouco não esbarra nela. Está quase para lhe gritar desabridamente que se afaste do caminho quando os seus olhos se detêm nas latas de cerveja no carrinho da empregada, o que o leva a fugir rapidamente dali.

«Lembra-te que basta um gole e está tudo acabado», ecoam as palavras do pai no seu cérebro. «O alcoolismo nunca desaparece. Um gole e estás outra vez no ponto anterior.»

Entra na carruagem quatro e avança pelo corredor. Um homem à entrada à sua esquerda está a tentar sentar-se mais confortavelmente e toca em Kimura quando este passa. A arma está bem escondida dentro do saco, mas é mais longa que de costume devido ao silenciador e bate na perna do homem. Kimura aperta apressadamente o saco contra o corpo.

Os seus nervos cedem e sente-se dominado por uma vaga de fúria. Volta-se para o homem, um tipo com um rosto simpático e óculos de aros negros, que lhe faz uma pequena vénia e pede desculpa. Kimura faz um estalido com a língua e volta-lhe costas com a intenção de seguir em frente quando o tipo de aspeto simpático lhe chama a atenção:

— Cuidado, o seu saco está rasgado.

Kimura para e verifica o que ele lhe disse. É verdade, há um buraco no saco, mas não há nada a sair que possa ser obviamente identificado como uma arma.

— Meta-se na sua vida — resmunga e segue em frente. Sai da carruagem quatro e avança pela cinco e pela seis.

«Porque é que no shinkansen a carruagem um vai na parte de trás?», perguntara-lhe Wataru, quando ainda estava consciente.

«A carruagem que está mais perto de Tóquio é sempre a número um», explicara-lhe a mãe de Kimura.

«Porquê, pai?»

«A mais próxima de Tóquio é a carruagem um, a seguinte é a carruagem dois. É por isso que quando apanhamos o comboio para a terra onde o pai cresceu a carruagem número um fica na parte de trás, mas quando voltamos para Tóquio é a que vai à frente.»

«Quando o shinkansen vai para Tóquio dizem que vai para cima e quando sai de Tóquio que vai para baixo», acrescentara o pai de Kimura. «Tóquio está sempre no centro de tudo.»

«Avô e avó, vocês vêm sempre ver-nos cá acima!»

«Isso é porque queremos visitar-te. Temos de subir tudo até aqui!»

«Mas não são vocês que sobem, é o shinkansen!»

«O Wataru é adorável. Até custa acreditar que é teu filho», dissera o pai de Kimura.

«Estão sempre a dizer-me o mesmo: quem será o pai...?»

Os pais tinham ignorado o comentário em que havia uma ponta de ressentimento e continuado a tagarelar alegremente.

«A parte boa deve ter saltado uma geração...»

Entra na carruagem sete. Do lado esquerdo várias filas de dois lugares e do lado direito todas têm três, sempre voltadas para a frente, de costas para ele. Mete a mão no saco, ajeita a coronha na mão e começa a avançar ao mesmo tempo que conta as filas.

Há mais lugares vazios do que estava a contar. Só há meia dúzia de passageiros, sentados aqui e ali. Na fila cinco, ao lado da janela, vê a nuca de um adolescente. O miúdo volta-se para trás e por baixo do blazer deixa ver uma camisa branca de colarinho. Todo pregadinho, como o melhor aluno de uma turma qualquer. Volta-se para olhar pela janela, a ver sonhadoramente o shinkansen entrar na estação.

Kimura aproxima-se. Quando já só falta uma fila é dominado por uma hesitação momentânea. Estarei mesmo prestes a fazer mal a um miúdo com ar tão inocente? Ombros estreitos, constituição frágil. Parece simplesmente um miúdo de escola excitado com uma viagem no shinkansen em que não vai acompanhado de nenhum adulto. A determinação e o impulso de agressividade de Kimura parecem perder força.

Depois vêm as faíscas.

Ao princípio pensa que é o sistema elétrico do comboio que está a funcionar mal, mas na realidade é o seu próprio sistema nervoso que falha durante uma fração de segundo. Primeiro as faíscas e depois a escuridão. O adolescente que estava sentado à janela tinha-se voltado e pressionara qualquer coisa contra a coxa de Kimura, como um comando de televisão maior que o normal. Na altura em que Kimura percebe que é o mesmo tipo de taser caseiro que tempos antes vira os miúdos usarem já está paralisado e tem todos os pelos do corpo em pé.

Quando volta a abrir os olhos está sentado à janela com as mãos presas à sua frente. Também os tornozelos estão unidos com um tecido resistente e fita adesiva. Consegue dobrar os braços e as pernas, mas o seu corpo não vai a lado nenhum.

— O senhor é realmente estúpido. Ainda me custa acreditar que seja tão previsível. Parece um robô a obedecer ao seu programa. Eu sabia que ia tentar apanhar-me e sei precisamente o que veio aqui fazer.

O miúdo está sentado ao seu lado a falar cheio de animação. Há qualquer coisa na forma das pálpebras e no nariz bem proporcionado que lhe dá um aspeto quase feminino.

Foi ele que atirou o filho do terraço de um centro comercial, ao mesmo tempo que se ria. Pode ser apenas um adolescente mas fala com a segurança de alguém que já viveu várias vidas.

— Ainda estou espantado por ter corrido tudo tão bem. A vida é realmente fácil de mais. Embora não para si, isso tenho de confessar. Afinal largou a sua preciosa bebida, e para quê? Para isto!

FRUTOS

Bullet Train 2
Bullet Train 2 créditos: Editora ASA

— Como está esse corte? — pergunta Tangerina, do lado da coxia, a Limão, sentado à janela.

Estão na carruagem três, fila dez, do lado do corredor em que há três lugares. Limão está a olhar pela janela e a resmungar:

— Para que haviam eles de retirar a série 500? Os azuis. Adorava-os — e como se só então tivesse ouvido a pergunta, responde: — Qual corte?

O seu cabelo longo parece a juba de um leão, embora seja difícil perceber se fez de propósito ou se simplesmente não se penteou depois de se levantar. A total falta de interesse de Limão pelo trabalho, ou seja no que for, na realidade, transparece nos seus olhos mas também no lábio superior desdenhoso. Tangerina pensa vagamente que não sabe se foi o aspeto do seu parceiro que determinou a sua personalidade ou o contrário.

— De ontem — responde Tangerina, que aponta para o seu rosto. — O corte na bochecha.

— Quando é que me cortei?

— A salvar o miúdo rico.

Depois de dizer isto Tangerina aponta para o tipo sentado no banco do meio. É mais novo que eles, com vinte e poucos anos, e está entalado entre os dois. Tem muito melhor aspeto que quando o salvaram na noite anterior. Tinham-no encontrado atado, esgotado, a tremer de forma descontrolada, mas ainda não passaram sequer vinte e quatro horas e já parece normal. Provavelmente não tem nada na cabeça, pensa Tangerina. É muitas vezes o que acontece com as pessoas que não leem ficção. Completamente oco, monocromático, de maneira que podem mudar de registo sem qualquer dificuldade. Engolem qualquer coisa e esquecem-na mal a engolem. Por natureza incapazes de empatia. São estas as pessoas que mais precisam de ler, mas na maior parte dos casos já é demasiado tarde.

Tangerina olha para o relógio. São nove da manhã, ou seja, já passaram nove horas desde que salvaram o miúdo. Estava preso num edifício na zona de Fujisawa Kongocho, numa sala três andares abaixo do piso térreo. Aquele miúdo rico era o filho único de Yoshio Minegishi e Tangerina e Limão tinham-no salvo.

— Eu nunca faria uma coisa tão estúpida como permitir que me cortassem. Deixa-te disso.

Limão e Tangerina são mais ou menos da mesma altura, perto de um metro e oitenta, e têm ambos a mesma constituição frágil. Muitas vezes as pessoas imaginam que são irmãos, por vezes até gémeos. Gémeos assassinos a soldo. Sempre que alguém se refere a eles como irmãos, Tangerina sente uma frustração profunda. Parece-lhe inacreditável que alguém o possa meter no mesmo saco com uma pessoa tão descuidada e simplista. Mas o mais certo é isso nem sequer incomodar Limão. Tangerina não suporta o desmazelo do parceiro. Um dos companheiros de ambos dissera uma vez que Tangerina era uma pessoa com quem era fácil lidar, mas que pelo contrário Limão era insuportável. Era mais ou menos como a fruta: quem é que tem vontade de comer um limão? Tangerina não podia ter concordado mais entusiasticamente.

— Nesse caso de onde vem esse corte na tua bochecha? Tens uma linha vermelha daqui até aqui. E eu ouvi quando isso aconteceu. O filho da mãe atirou-se a ti com uma faca e tu gritaste.

— Eu nunca gritaria por causa de uma coisa dessas. Se gritei foi porque ele se deixou vencer tão depressa que fiquei desapontado. Tipo, caraças, o fulano é mesmo um piça mole... Seja como for, isto na minha cara não foi feito por uma faca, é uma alergia. Tenho muitas alergias.

— Nunca vi uma alergia tão parecida com o corte de uma faca.

— Foste tu que criaste as alergias?

— Fui eu que quê...? — diz Tangerina com ar confuso.

— Foste tu que fizeste aparecer as alergias no mundo? Não? Então talvez sejas um crítico de questões de saúde e estejas a negar a minha história de vinte e oito anos com alergias. O que diabo sabes tu de alergias?

Era sempre o mesmo. Limão ficava todo ouriçado e começava a disparar em todas as direções ao acaso. Se Tangerina não aceitasse a derrota, ou simplesmente parasse de ouvir, Limão continuaria até ao fim dos tempos. Mas nessa altura ouvem um ruído discreto entre os dois, vindo do miúdo, o pequeno Minegishi. O rapaz está a produzir uns ruídos estranhos.

— Hum, hum.

— O quê? — pergunta Tangerina.

— O quê? — pergunta Limão.

— Hum, quer dizer, uh, como é que vocês se chamam?

Quando o tinham encontrado na noite anterior estava preso a uma cadeira, todo torcido, como um esfregão molhado. Tangerina e Limão tinham-no acordado e levado com eles, mas o rapaz não parava de pedir desculpa, «lamento muito, tenho muita pena...» Não sabia dizer outra coisa. De repente Tangerina percebe que o miúdo é capaz de ainda não ter percebido o que está a acontecer.

— Eu sou o Dolce e ele é o Gabbana — diz ele, num tom um bocado ofensivo.

— Não — interrompe Limão. — Eu sou o Donald e ele é o Douglas.

— O quê?! — pergunta Tangerina.

Apesar de ter perguntado, sabe que se trata de personagens de Thomas e os Seus Amigos. Seja qual for o assunto de que se fale, Limão consegue sempre desviar a conversa para o Thomas. Limão é louco pela velha série de televisão para crianças filmada com comboios-modelo. Sempre que precisa de uma alegoria, o mais certo é ir buscá-la a um episódio de Thomas e os Seus Amigos. É como se tudo o que soubesse da vida e da felicidade tivesse sido aprendido com aquele programa.

— Eu sei que já te expliquei isto, Tangerina. Donald e Douglas são duas locomotivas pretas gémeas. São sempre muito educadas a falar. «Ora bem, aqui está no nosso velho amigo Henry», esse estilo. Falar assim causa muito boa impressão. Tenho a certeza que estás de acordo.

— Nem por isso.

Limão mete a mão no bolso do casaco, procura qualquer coisa e tira um objeto brilhante mais ou menos do tamanho de uma pequena agenda.

— Olha, este é o Donald — explica, a apontar para aquilo. Tem ali um monte de comboios. São autocolantes de Thomas e os Seus Amigos. Um deles é preto.

— Por mais que te diga, acabas sempre por esquecer os nomes. É como se nem sequer quisesses saber.

— Não quero.

— Não estou a achar graça. Vou dar-te isto para aprenderes os nomes deles. A começar por aqui, este é o Thomas, este é o Oliver, estás a ver?, estão todos ordenados para facilitar. Até o Diesel — e Limão vai mencionando os nomes um a um. Tangerina pega nos autocolantes e dá-lhos todos outra vez.

— Então, hum, como é que vocês se chamam? — pergunta o pequeno Minegishi.

— Hemingway e Faulkner — responde Tangerina.

— O Bill e o Ben também são gémeos, e o Harry e o Burt — ajuda Limão.

— Nós não somos gémeos.

— Está bem, Donald e Douglas — diz o pequeno Minegishi com toda a seriedade. — O meu pai contratou-vos para me salvarem?

Limão começa a escarafunchar no ouvido, com ar aparentemente desinteressado.

— Sim, acho que se pode dizer isso. Mas a verdade, para ser honesto, é que não tivemos grande escolha. É perigoso de mais dizer que não ao teu pai.

Tangerina concorda.

— O teu pai é um indivíduo assustador.

— Também o achas assustador? Se calhar para ti não é, porque sempre és o menino dele — diz Limão, que belisca o miúdo levemente, embora o suficiente para ele se sobressaltar.

— Hum, ah, não, não o acho assustador.

Tangerina sorri maldosamente. Está a começar a sentir-se à vontade.

— Sabes das coisas que o teu pai fez quando estava em Tóquio? Correm por aí histórias incríveis, por exemplo aquela vez nos tempos em que emprestava dinheiro a juros de usurário e uma miúda chegou cinco minutos atrasada e ele lhe cortou um braço. Ouviste falar dessa? Não foi um dedo, sabes, foi o braço todo. E também não estamos a falar de cinco horas, foram só cinco minutos. E ele, zás, corta-lhe o braço e... — neste ponto Tangerina interrompe-se, como se o ambiente bem iluminado do shinkansen não fosse lugar para aqueles pormenores sórdidos.

— Sim, dessa ouvi falar — murmura o miúdo rico num tom desinteressado. — E depois meteu-o num micro-ondas, não foi? — acrescenta, como se estivesse a falar de uma receita nova que o pai experimentara.

— Sim, sim, e a outra vez que — e Limão inclina-se para a frente e volta a espicaçar o miúdo — havia um tipo que não queria pagar ao Minegishi e ele apanhou o filho dele e pôs o pai e o filho em frente um do outro e deu-lhes aos dois x-atos e...

— Essa também ouvi.

— Ouviste essa?! Tangerina parece incrédulo.

— Mas a verdade é que o teu pai é esperto. Escolhe sempre saídas simples. Se uma pessoa lhe arranja problemas, vê-se livre dela e se é uma coisa complicada o melhor é esquecê-la — Limão olha pela janela quando outro comboio sai da estação. — Há uns tempos havia um tipo em Tóquio chamado Terahara. Fez uma pipa de massa, mas aquilo deu tudo numa trapalhada.

— Sim, a organização dele chamava-se Maiden. Eu sei. Ouvi falar dele.

O miúdo está a começar a sentir-se à vontade e a querer parecer importante, o que não agrada a Tangerina. Se fosse num romance era capaz de achar graça a uma história acerca de um miúdo mimado, mas na vida real não estava interessado. A única coisa que isso faz é irritá-lo.

— Bem, a questão é que a Maiden desapareceu aqui há uns seis anos, talvez sete — continua Limão. — Tanto Terahara como o filho morreram e aquilo desfez-se tudo. Quando isso aconteceu o teu pai deve ter percebido que as coisas iam dar para o torto, de maneira que se pôs simplesmente a andar e foi para norte, para Morioka. É como te digo, o teu pai é um espertalhão.

— Hum, obrigado.

— Porque é que estás a agradecer-me? Não estou a elogiá-lo.

Limão está de olho no corpo branco do comboio que desaparece ao longe, aparentemente triste por vê-lo partir.

— Não, quero dizer obrigado por me terem salvo. Pensei que estava tudo acabado. Prenderam-me, deviam ser uns trinta. Depois levaram-me para aquele buraco. A impressão que eu tive é que ainda que o meu pai pagasse o resgate eles me matavam na mesma. Pareciam odiá-lo a sério. E o que eu pensei foi «acabou-se, não tenho hipótese».

O miúdo rico parece cada vez mais falador e Tangerina está com cara de quem não gosta disso.

— Tu és bastante esperto. Mas para começar basicamente toda a gente odeia o teu pai. Não são só os teus amigos de ontem à noite. Acho que é mais fácil encontrares alguém que, sei lá, é imortal do que alguém que não odeie o teu pai. E a seguir, como tu disseste, eles tinham-te matado assim que apanhassem o dinheiro, não tenhas dúvidas. Quando achaste que não tinhas hipótese tinhas razão.

Minegishi tinha contactado Tangerina e Limão a partir de Morioka e encarregara-os de levar o dinheiro do resgate aos raptores e de salvar o seu filho. Parecia simples, mas não há nada verdadeiramente simples.

— O teu pai foi muito específico — resmunga Limão, que vai contando pelos dedos as tarefas de que haviam sido encarregados. — «Salvem o meu filho.» «Voltem com o dinheiro do resgate.» «Matem-nos a todos.» Está sempre a contar que façam tudo o que ele quer.

Mas Minegishi estabelecera prioridades. O mais importante era trazerem o filho, depois o dinheiro e depois matar os raptores todos.

— Mas tu, Donald, fizeste tudo o que ele pediu. Foste fabuloso! — os olhos do miúdo rico até brilham.

— Espera, Limão, onde está a mala?

Tangerina mostra-se subitamente preocupado. Limão devia ter trazido a mala com o dinheiro do resgate. Não parecia suficientemente grande para mais de meia dúzia de dias fora de casa, mas era um modelo decente, com uma pega firme. Nesse momento não a vê na prateleira da bagagem nem debaixo do assento ou em qualquer outro sítio à vista.

— Tangerina, tu reparaste! — Limão reclina-se e põe os pés no assento à sua frente com um sorriso de um lado ao outro do rosto. Depois põe.se a procurar qualquer coisa no bolso. Aqui, vê só isto.

— A mala não cabe no teu bolso.

Limão ri-se, mas ninguém o acompanha.

— Tens razão, no meu bolso só está este papelinho — e juntando os gestos às palavras acena com qualquer coisa do tamanho de um cartão de visita.

— O que é isso? — pergunta o miúdo rico, que se inclina para ver melhor.

— É um bilhete de uma promoção no supermercado onde passámos quando vínhamos para aqui. Fazem-na uma vez por mês. Vejam só isto: o primeiro prémio são umas férias pagas! E devem ter-se enganado porque não há data-limite, por isso se ganharmos podemos ir quando entendermos!

— Posso ficar com ele?

— Nem pensar, não te vou dar o meu bilhete! De qualquer maneira para que é que queres isto? O teu pai pode pagar as tuas férias. Tens o dinheiro do papá!

— Limão, deixa lá a porcaria do sorteio e diz-me mas é onde está a mala — o tom de Tangerina é ameaçador. Há qualquer coisa sombria na sua voz.

Limão olha-o com serenidade.

— Como não percebes nada de comboios eu explico-te. Nos modelos atuais do shinkansen um espaço especial de bagagem entre as carruagens para malas grandes ou equipamento de esqui, por exemplo. Esse tipo de coisas.

Tangerina fica momentaneamente sem palavras. Para aliviar a pressão do sangue nas têmporas acotovela involuntariamente o miúdo rico no braço. O miúdo dá um pequeno grito e depois resmunga, mas Tangerina ignora-o.

— Limão, os teus pais não te ensinaram a manter as tuas coisas debaixo de olho? — diz ao companheiro, com um esforço sobre-humano para não levantar a voz.

Limão fica evidentemente ofendido.

Bullet Train
Bullet Train créditos: Editora ASA

Livro: Bullet Train

Autor: Kotaro Isaka

Editora: ASA

Publicação: 5 de julho

Preço: 17,91€

— O que é que isso quer dizer?! — atira. — Estás a ver algum sítio onde eu tivesse podido pôr a mala? Estamos aqui três pessoas. Onde é que querias que eu enfiasse a porcaria da mala? — pergunta, como se se tratasse de uma evidência, e está tão exaltado que os seus gafanhotos parecem chover sobre o miúdo rico. — Tinha de a meter nalgum sítio!

— E porque não aqui por cima?

— Como não foste tu que a trouxeste não sabes, mas aquilo é pesado que se farta!

— Eu também a trouxe um bocado e não é assim tão pesada.

— E não te parece que se alguém tivesse reparado em dois tipos suspeitos como nós com uma mala tinha logo percebido que havia ali alguma coisa de valor e lá se iam os nossos cuidados? Eu estou a ver se sou prudente!

— Ninguém ia perceber nada.

— Ia sim. Seja como for, Tangerina, sabes perfeitamente que os meus pais morreram quando eu andava na pré-primária, por isso não me ensinaram grande coisa. Mesmo assim, o pouco que me ensinaram foi a não trazer as malas comigo.

— Tu és cá um tretas...

O telemóvel vibrou no bolso de Tangerina. Pegou nele, viu quem estava a ligar e anunciou com uma careta ao miúdo rico:

— É o teu pai.

Quando se pôs de pé e se dirigiu à passagem o shinkansen pôs-se em movimento.

A porta automática abriu-se, Tangerina aceitou a chamada e ficou na passagem a ouvir Minegishi.

«E então?», pergunta a voz, num tom calmo mas firme.

Tangerina encosta-se à janela e fica a ver a cena urbana deslizar à frente dos seus olhos.

— O comboio acabou de sair.

«O meu filho está a salvo?»

— Se não estivesse eu não estava no comboio.

Depois Minegishi pergunta se têm o dinheiro e o que aconteceu aos raptores. O barulho do comboio torna-se mais intenso e é quase impossível ouvir. Tangerina apresenta o seu relatório.

«Quando me trouxerem o meu filho o vosso trabalho está terminado.»

Estás aí descansado na tua villa, faço ideia o que te ralas com o teu filho.

Em vez de falar, morde a língua.

Nessa altura a ligação cai. Tangerina volta-se para regressar ao lugar mas para: Limão está precisamente atrás dele. É um sentimento estranho, estar assim de frente para outra pessoa exatamente da nossa altura. É como olhar para um espelho. Mas a pessoa para quem está a olhar é mais desmazelada, mais mal-comportada que ele próprio, o que dá a Tangerina a sensação peculiar de que os seus próprios traços negativos assumiram forma humana e estão ali, a olhá-lo nos olhos.

O nervosismo natural de Limão está à vista.

— Tangerina, isto é mau.

— Mau? O que é que é mau? Não me culpes pelos teus problemas.

— O problema também é teu.

— O que aconteceu?

— Tu tinhas dito que eu devia pôr a mala com o dinheiro no porta-malas por cima do nosso lugar, não tinhas?

— Tinha.

— Bom, eu também comecei a ficar preocupado, de maneira que fui buscá-la, ao lugar para a bagagem grande, do lado oposto da nossa carruagem.

— Boa ideia. E então?

— Desapareceu.

Os dois quase voam até ao outro extremo da carruagem três. O espaço para malas fica ao lado da casa de banho e da área de lavatórios. Dois suportes, com uma mala grande na parte superior, mas não a mala com o dinheiro de Minegishi. Ao lado há uma pequena prateleira vazia que faz pensar que em tempos esteve ali um telefone público.

— Foi aqui que a puseste? — pergunta Tangerina a apontar para o suporte vazio por baixo da mala de grande formato.

— Sim.

— E para onde terá ido?

— À casa de banho?

— A mala?

— Sim — responde Limão, sem que se perceba se está a falar a sério ou a divertir-se quando se dirige à casa de banho dos homens e abre a porta. — Onde é que estás? Onde diabo te enfiaste? Volta! — diz ele com uma voz frenética.

Talvez alguém a tenha levado por engano, pensa Tangerina, embora saiba que isso não é verdade. Sente o pulso acelerado. O simples facto de se sentir abalado já é suficiente para o abalar.

— Tangerina, em duas palavras, como descreverias a nossa situação? — há um músculo no rosto de Limão que não para de latejar.

Precisamente nesse momento o carrinho dos snacks entra no corredor. A jovem que o empurra para para ver se eles querem alguma coisa, mas eles não querem que ela ouça a conversa e fazem-lhe um gesto de que siga.

Tangerina espera até ela e o carrinho desaparecerem para lá da porta.

— Duas palavras? «Estamos tramados.»

— Estamos fodidos.

Tangerina sugere que voltem aos lugares para se acalmarem e refletirem. Começa a andar para se dirigir ao lugar e Limão segue-o.

— Mas ainda não acabei. Mais alguma possibilidade com duas palavras?

É possível que esteja confuso, ou que seja apenas simplório, mas não há uma sombra de preocupação na sua voz.

Tangerina faz de conta que não o ouve e entra na carruagem três, onde vai avançando pelo corredor. O comboio não está cheio, talvez esteja apenas a quarenta por cento da capacidade. É um dia de semana e de manhã. Tangerina não sabe qual é o número habitual de pessoas que viajam no shinkansen, mas o comboio parece-lhe tranquilo.

Uma vez que caminha em direção à parte de trás do comboio, os passageiros estão de frente para eles. Pessoas de braços cruzados, pessoas de olhos fechados, pessoas a ler o jornal, pessoas em viagens de trabalho. Tangerina observa as prateleiras para malas e os apoios para os pés atento a uma mala preta de tamanho médio.

O pequeno Minegishi continua no lugar, mais ou menos a meio da carruagem. O seu assento está reclinado e ele tem os olhos fechados, a boca aberta e o corpo inclinado para a janela. É natural que esteja cansado. Dois dias antes fora raptado, preso e torturado, antes de ser salvo a meio da noite e atirado para aquele lugar no comboio sem sequer ter pregado olho.

No entanto, nada disto passa sequer pela cabeça de Tangerina. O que acontece é que o seu coração dispara. Só faltava aquilo. Durante um momento fica desorientado, mas acaba por se dominar. Senta-se ao lado do miúdo e apalpa-lhe o pescoço.

Limão aproxima-se.

— A dormir num momento de crise?

— Limão, a nossa crise acaba de se agravar.

— Como?

— O miúdo está morto.

— Não pode ser — diz Limão, e ao fim de alguns minutos acrescenta: — Estamos valentemente fodidos. — Depois conta pelos dedos e anuncia: — Bom, mas isto são três palavras.