Estou sentado a olhar para o mar.

É muito cedo em minha casa e todos dormem, por isso levantei-me, abri a porta e fui para a varanda. Trouxe uma cadeira da sala para estar mais confortável. Tenho dez anos e é domingo, por isso não tenho de ir à escola, posso passar a manhã a olhar para o mar e a manhã parece-me um tempo infinito, mas depois ouço a voz da minha mãe atrás de mim:

— Rauli, onde é que te meteste?

Sinto que não quero ser esse Raúl, quero ser a Cassandra, não o Raúl. Não quero que na escola me chamem Sem Ossos1, não quero que a minha mãe me chame Rauli, quero passar muito tempo a olhar para o mar até o mar se gastar nos meus olhos e não ser mais que uma linha branca que faz chorar. Estou em Cienfuegos, ainda não sou um guerreiro de faz de conta aqui em Angola onde nunca chove, o capitão ainda não me chamou para ir à sua tenda de campanha e dizer-me:

É Desta Que Leio Isto: Em fevereiro recebemos João Luís Barreto Guimarães

Acabado de receber o Prémio Pessoa de 2022, o poeta, médico-cirurgião e tradutor João Luís Barreto Guimarães vem ao É Desta Que Leio Isto, o clube de leitura da MadreMedia. "Aberto Todos os Dias", recentemente lançado, e outras obras suas vão ser tema da nossa sessão de 23 de fevereiro.

Nascido no Porto, em 3 de junho de 1967, João Luís Barreto Guimarães é dono de uma carreira assinalável, tendo-se estreado com "Há Violinos na Tribo", em 1989, numa edição de autor.

Desde então, Barreto Guimarães conta com 12 livros de poesia já publicados, sendo que os primeiros sete foram reunidos em 2011, numa "Poesia Reunida", pela Quetzal. A sua obra mais recente, "Aberto Todos os Dias", foi lançada em janeiro deste ano pela mesma editora.

Escrito pela Quetzal como o seu "grande e auspicioso regresso", os poemas do livro "Aberto Todos os Dias" foram "escritos entre 2020 e 2022 no Porto, Leça da Palmeira, Venade, Torre da Medronheira e em algumas cidades dispersas pelo mapa da Europa". "Neste livro evocam-se os dias «do fechamento», mas também, finalmente, aquilo que está «aberto todos os dias» – aberto o livro, aberto o mundo –, aquilo que permanece vivo apesar das pandemias, do esquecimento ou da banalidade, das «coisas à espera de vez»", refere a nota editorial.

João Luís Barreto Guimarães é também médico-cirurgião e professor de Introdução à Poesia para estudantes de Medicina, no Instituto de Ciências Biomédicas Abel Salazar, da Universidade do Porto, razão pela qual foi entrevistado pelo SAPO24 em 2021.

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— Despe a roupa, que temos de brincar a uma coisa de que vais gostar.

O capitão é oriental, as suas palavras chegam-me sem os esses e sorrio porque tenho medo. Sorrio sempre para o que me assusta, não consigo evitar. Sorrio quando passamos pelas aldeias e as pessoas veem passar a caravana de tanques e camiões de guerra com olhos que se tornam imensos nas suas caras terrosas, olham-nos com os pés nus conspurcados de terra vermelha, e a mim parece-me que com esses pés querem dizer-nos alguma cosa, querem contar-me alguma coisa a mim em particular. Sonho que esses pés me dizem:

— O que estás aqui a fazer?

Mas, felizmente, ainda estou em minha casa, e olho para o mar e penso, porque reflito muito com dez anos, penso que gostava de abrir os braços e saltar e cair na calçada, e que então o meu pai e a minha mãe chorariam muito e o José deixaria de olhar para mim com aquela cara de quem sabe tudo. «O Raúl matou-se», diriam na escola, e dessa vez seria verdade e eu estaria feliz, não teria de voltar a roubar dinheiro à minha mãe para ir à livraria comprar livros e dizer:

— Dê-me um do Edgar Allan Poe, roubaram o meu na escola.

— O Poe acabou, temos o Robert Louis Stevenson diz o livreiro. — É um livro bonito porque tem uma caveira na parte de fora, mas não sei se será apropriado para a tua idade.

— É para a minha mãe — digo eu, e ele deposita-me o livro nas mãos, olhando-me com suspicácia.

— Bom, mas não o leves para a escola porque depois tiram-to, e, se te perguntarem, não fui eu que to vendi… percebeste?

— Sim — digo eu, que vejo fantasmas.

Espreito pela porta da minha escola e lá estão eles, vestidos de marinheiros. A minha escola é muito velha e dantes era um quartel, chama-se Dionisio San Román por causa de um marinheiro que morreu na sublevação de 5 de setembro de 1956. Volto a pé para casa. Gastei o dinheiro do transporte nos livros e arrasto os pés para levantar o pó e depois respirá-lo. Gosto do cheiro a pó. «Olha como tens esses sapatos», diz-me a minha mãe quando subo as escadas, toco à porta do nosso apartamento e a Nancy abre.

— Vejo mortos — digo-lhes, e não gostam. É mau ver mortos, é uma loucura, agora somos todos marxistas-leninistas, ateus, e se vês mortos é porque estás louco.

— Queres estar louco?

— Claro que não — digo, e a seguir abraço a Nancy e abraço a minha mãe. Como o lanche que a Nancy põe na mesa com um sorriso, agradeço-lhe e vou para o quarto ler Stevenson.

Também adivinho coisas. Meu Zeus, sei que vou morrer aos dezanove anos, muito longe de Cienfuegos, aqui em Angola, o capitão vai matar-me para que não se saiba de nós, vejo-o nos olhos dele, no bigode dele, na maneira como olha para mim.

— Que ninguém saiba de nós, ouviste, Olivia Newton-John? diz-me quando me agacho para lhe fazer um broche. — Olha que eu mato-te, não desgraces a minha trajetória combativa, que te mato como a um cão, estamos entendidos?

— Sim — digo eu, e deixo que o membro do capitão entre na minha boca, depois cuspo o que ele deixa nela e ergo-me e olho pela janela, desde a qual não se vê o mar, mas a terra vermelha e quente de Angola.

— O que fazes de pé tão cedo? — pergunta-me a minha mãe atrás de mim. — Perdeste o sono?

— Sim, perdi o sono.

É que estou a ver como as balas me atravessam, como caio muito longe dela e do meu pai, que saiu e ainda não voltou. Sei onde está o meu pai, está com a russa, a professora de inglês que conhecemos na praia Rancho Luna no dia em que uma constipação impediu a minha mãe de ir connosco e o meu pai nos levou no velho Chevrolet e, assim que o meu irmão e eu vestimos os calções de banho, mergulhámos na água cálida com um só grito de prazer, e quando saímos o meu pai estava sentado na areia a conversar com uma mulher alta e loura que contrastava fortemente com ele porque era fina e de mãos bem tratadas e as mãos do meu pai estavam sempre conspurcadas. Apresentou-a e, afinal, a mulher era russa e chamava-se Liudmila.

— Como a Gurchenko — especificou o meu pai. Muito estranha, a russa, tinha os olhos amendoados, imensos e de um azul tão escuro, que parecia preto. Beijou as nossas caras molhadas, a minha e a do meu irmão, e perguntou-nos em que ano estávamos e se gostávamos de ler.

— Quero lanchar — foi a resposta do meu irmão.

— No quinto — disse eu. — E sim, gosto de ler.

— No quinto? — admirou-se a russa. — Pareces mais pequeno.

— Sim, é um bocado anão — disse o meu pai, dando uma gargalhada. Saiu a mim, que o homem não se mede da cabeça ao céu, mas do céu à cabeça.

— E a mulher? — perguntou a russa, que tinha um biquíni cor-de-rosa tão pequeno que todos os homens que caminhavam à beira-mar viravam a cabeça para a ver melhor, e o meu pai tinha os olhos tão abertos que pareciam capazes de conter o mundo.

— Quero lanchar insistiu o meu irmão, e o meu pai, que estava nu da cintura para cima com os músculos de ex-ginasta à mostra, tirou a carteira do bolso das calças de ganga e deu-nos cinco pesos.

— Vão ao café e peçam o que quiserem… Toma conta do Rauli — disse depois ao meu irmão, que já vai fazer catorze anos e por isso acha que é um homem, e quando estamos sentados no café diz-me que a russa é uma puta e o pai, um filho da puta. Diz isto sem rancor, apenas como quem constata um dado adquirido. Comemos croquetes e bebemos iogurte, e quando regressamos à beira-mar a mulher alta e o pai ainda estão a conversar, e por isso o meu irmão dá-lhe o troco dos cinco pesos e voltamos para a água. Eu mergulho, meu Zeus, e quando estou no fundo abro os olhos, então vejo um peixe a aproximar-se e a olhar para mim e sonho que sou esse peixe e que um miúdo chamado Raúl está a olhar para mim, e sinto-me um pouco afetado pela transmutação das coisas e dos seres, embora não conheça a palavra, sou apenas um rapaz de dez anos que foi à praia e que, quando por fim emerge das profundezas, vê o pai a falar com uma mulher desconhecida.

— Não se descaiam com a mãe, portem-se como homenzinhos — diz o meu pai depois de entrarmos no Chevrolet. — Se lhe contarem, nunca mais vos trago à praia.

— Não nos ameaces — diz o meu irmão. — Se me deres vinte pesos, não lhe conto.

— Achas que podes fazer chantagem comigo, ó borra-botas? — diz o meu pai, mas depois sorri e passa-lhe vinte pesos. — Já sabes mais do que deves.

Se fechar os olhos, vejo-o a deitar-se com a russa e a fazer alguma coisa no corpo dela que com os meus dez anos não sei muito bem o que é, mas que não conto à minha mãe porque sei que não vai gostar e tem problemas que cheguem para ainda ter de ouvir as histórias do meu pai e da Liudmila, que depois aparece num dia de muito calor com um prato de batatas em manteiga a dizer que é uma receita da avó dela da Ucrânia, e sorrisos para cima e sorrisos para baixo, e põe-me a mão na cabeça e olha para o José de longe, como se tivesse medo dele. O meu irmão tem má fama, a russa respeita o meu irmão, o meu pai sussurrou-lhe que é um rapaz difícil que só não está no reformatório por um triz. De mim gosta mais, eu sei como é que a russa vai morrer, de um enfarte do miocárdio após uma diabetes fulminante, em 2011, à beira dos setenta anos, num bairro suburbano de Volgogrado, a antiga Estalinegrado. Com os meus dez anos consigo ver a morte da russa, consigo vê-la a abrir a boca para pedir a água que o Serguei, o neto adolescente, não lhe traz. A russa, além das batatas cozidas com manteiga, traz uma coisa para mim e para o José, um livro do Pushkin que deposita nas mãos da minha mãe como se fosse um grande tesouro, conseguindo arrancar-lhe um sorriso ao folheá-lo porque o livro está em russo.

— Não vão perceber nada, Svetlana — diz-lhe, mesmo sabendo perfeitamente que a russa se chama Liudmila.

A minha mãe é assim, ninguém sabe ser mais sacana do que ela.

A minha mãe é secretária de um chefe que a faz sentir-se importante, mais importante, pelo menos, do que o meu pai, um simples bate-chapas que regressa ao apartamento quase sempre tarde e ligeiramente bêbedo e com o fato-macaco tão sujo de óleo e combustível, que ela tem de suar as estopinhas para o deixar impecável. O meu pai diz-lhe para não o lavar, que o deixe assim, mas a minha mãe passa as manhãs de domingo a ensaboar e a escovar esta rústica roupa de trabalho.

Em cima do aparador da sala, o meu pai tem umas medalhas do seu tempo de ginasta e uma fotografia onde está no pódio de uma competição de jovens atletas do campo socialista.

À hora do almoço, sentamo-nos os quatro na grande mesa da sala e a minha mãe faz questão de que usemos todos os talheres, mas o meu pai fica-se pela colher.

Chamem-me Cassandra
créditos: Quetzal Editores

Livro: "Chamem-me Cassandra"

Autor: Marcial Gala

Editora: Quetzal Editores

Publicação: 2 de fevereiro

Preço: €15,93

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— Não és um exemplo para os teus filhos — diz-lhe a minha mãe.

— Pois não, não sou — reconhece ele —, sou um animal, não como o teu chefe, esse mulato.

O meu pai odeia o Ricardo, o chefe da minha mãe, que às vezes aparece lá em casa com uma garrafa de vodka para agradecer à secretária tamanha dedicação. A minha mãe recebe o presente de lágrimas nos olhos, mas apesar disso não bebe. O meu pai engole a garrafa toda sem sequer dizer obrigado. Ela é tão ingénua que se deixa apresentar à russa sem lhe passar pela cabeça que aquela mulher tão fina e distinta que parece saída de uma revista europeia poderia reparar num selvagem como o meu pai.

O meu pai chama-se José Raúl Iriarte Gómez e nasceu em Placetas, uma aldeia cheia de guajiros2 ressentidos de origem espanhola que se odeiam a si próprios por terem ficado na aldeia e invejam quem se foi embora. O meu avô chamava-se José Ignacio e era um impertérrito jogador de lutas de galos e trabalhador agrícola. A minha avó Carmen falava em galego e cultivava couves e alfaces que depois vendia por toda Placetas. Além do meu pai, teve mais quatro filhos, pôs a todos como primeiro nome José e todos, menos o meu pai, morreram de forma violenta. Os dois mais velhos alistaram-se no exército rebelde. O José Eduardo, a caminho de Sierra Maestra, foi capturado por um pelotão de guardas rurais e fuzilado à beira da estrada. O José Roberto foi morto em Santa Clara aquando do assalto ao comboio blindado. Os outros dois foram assassinados pelo mesmo marido que encontrou o José Ricardo, o mais novo, na cama com a mulher, enquanto o que lhe seguia em idade, o José Felipe, tocava guitarra, cantava uma rancheira e vigiava, encostado à parede traseira da casa. Muito boa sentinela não devia ser porque não ouviu chegar o homem conhecido em toda Placetas como o «Juan Desmancha-Prazeres».

— A faca comprometeu o rim do José Felipe — disse o médico à minha avó. — Caso contrário, teria sobrevivido.

O ciumento cortou a jugular ao José Ricardo e deu tantas punhaladas à mulher que, segundo conta o meu pai quando se embebeda e sente saudades dos irmãos, o polícia teve uma síncope e por pouco não morreu quando viu a morta tão cheia de sangue que fazia impressão. Às vezes, os meus avós só tinham dinheiro para comer farinha de milho temperada com sal e um pouco de molho de tomate na época dele. Quando a revolução triunfou, o meu pai, que já era adolescente, dedicou-se ao desporto e à mecânica, depois comprou o Chevrolet a um dos burgueses de Punta Gorda que emigraram só por saberem que Cubita La Bella estava a mergulhar de cabeça no comunismo.

A minha mãe chama-se Mariela Fonseca Linares e nasceu em Cruces, que na altura não era a aldeia imunda em que se converteu posteriormente, mas uma pequena cidade próspera com vários jornais e estações de rádio e uma vida cultural que pretendia ser ativa. A mãe da minha mãe, Elena Elisa Linares Argüelles, casou com um mulato blanconazo3 chamado Eduardo Fonseca Escobar, membro da célula do Partido Socialista e advogado, formado numa dessas universidades do Sul dos Estados Unidos apenas frequentadas por negros. A família da minha avó, uns fazendeiros de açúcar conhecidos em toda a região de Las Villas como os Linares, nunca lhe perdoaram esse amor desafortunado e deserdaram-na, por isso a minha avó tornou-se mestre-escola e, juntamente com o marido, construíram uma casinha de madeira que ainda existe em Cruces. Tiveram gémeas falsas. A minha tia Nancy nasceu muito loura e de olhos azuis como eu, e a minha mãe era tão trigueira que na escola lhe chamavam Cigana. Eram muito apegadas uma à outra e, quando a minha mãe se mudou para Cienfuegos, a irmã também foi e viveu connosco até adoecer e morrer de cancro. Eu tinha onze anos quando a Nancy morreu e a minha mãe nunca mais voltou a ser a mesma, e eu também não.

Eu era tão parecido com a Nancy que parecia mais filho dela que da minha mãe.

Notas

  1. Sin Huesos, no original. (N. da T.)
  2. Campónios. (N. da T.)
  3. Mulato quase branco. (N. da T.)