Estou sentado a olhar para o mar.
É muito cedo em minha casa e todos dormem, por isso levantei-me, abri a porta e fui para a varanda. Trouxe uma cadeira da sala para estar mais confortável. Tenho dez anos e é domingo, por isso não tenho de ir à escola, posso passar a manhã a olhar para o mar e a manhã parece-me um tempo infinito, mas depois ouço a voz da minha mãe atrás de mim:
— Rauli, onde é que te meteste?
Sinto que não quero ser esse Raúl, quero ser a Cassandra, não o Raúl. Não quero que na escola me chamem Sem Ossos1, não quero que a minha mãe me chame Rauli, quero passar muito tempo a olhar para o mar até o mar se gastar nos meus olhos e não ser mais que uma linha branca que faz chorar. Estou em Cienfuegos, ainda não sou um guerreiro de faz de conta aqui em Angola onde nunca chove, o capitão ainda não me chamou para ir à sua tenda de campanha e dizer-me:
— Despe a roupa, que temos de brincar a uma coisa de que vais gostar.
O capitão é oriental, as suas palavras chegam-me sem os esses e sorrio porque tenho medo. Sorrio sempre para o que me assusta, não consigo evitar. Sorrio quando passamos pelas aldeias e as pessoas veem passar a caravana de tanques e camiões de guerra com olhos que se tornam imensos nas suas caras terrosas, olham-nos com os pés nus conspurcados de terra vermelha, e a mim parece-me que com esses pés querem dizer-nos alguma cosa, querem contar-me alguma coisa a mim em particular. Sonho que esses pés me dizem:
— O que estás aqui a fazer?
Mas, felizmente, ainda estou em minha casa, e olho para o mar e penso, porque reflito muito com dez anos, penso que gostava de abrir os braços e saltar e cair na calçada, e que então o meu pai e a minha mãe chorariam muito e o José deixaria de olhar para mim com aquela cara de quem sabe tudo. «O Raúl matou-se», diriam na escola, e dessa vez seria verdade e eu estaria feliz, não teria de voltar a roubar dinheiro à minha mãe para ir à livraria comprar livros e dizer:
— Dê-me um do Edgar Allan Poe, roubaram o meu na escola.
— O Poe acabou, temos o Robert Louis Stevenson — diz o livreiro. — É um livro bonito porque tem uma caveira na parte de fora, mas não sei se será apropriado para a tua idade.
— É para a minha mãe — digo eu, e ele deposita-me o livro nas mãos, olhando-me com suspicácia.
— Bom, mas não o leves para a escola porque depois tiram-to, e, se te perguntarem, não fui eu que to vendi… percebeste?
— Sim — digo eu, que vejo fantasmas.
Espreito pela porta da minha escola e lá estão eles, vestidos de marinheiros. A minha escola é muito velha e dantes era um quartel, chama-se Dionisio San Román por causa de um marinheiro que morreu na sublevação de 5 de setembro de 1956. Volto a pé para casa. Gastei o dinheiro do transporte nos livros e arrasto os pés para levantar o pó e depois respirá-lo. Gosto do cheiro a pó. «Olha como tens esses sapatos», diz-me a minha mãe quando subo as escadas, toco à porta do nosso apartamento e a Nancy abre.
— Vejo mortos — digo-lhes, e não gostam. É mau ver mortos, é uma loucura, agora somos todos marxistas-leninistas, ateus, e se vês mortos é porque estás louco.
— Queres estar louco?
— Claro que não — digo, e a seguir abraço a Nancy e abraço a minha mãe. Como o lanche que a Nancy põe na mesa com um sorriso, agradeço-lhe e vou para o quarto ler Stevenson.
Também adivinho coisas. Meu Zeus, sei que vou morrer aos dezanove anos, muito longe de Cienfuegos, aqui em Angola, o capitão vai matar-me para que não se saiba de nós, vejo-o nos olhos dele, no bigode dele, na maneira como olha para mim.
— Que ninguém saiba de nós, ouviste, Olivia Newton-John? — diz-me quando me agacho para lhe fazer um broche. — Olha que eu mato-te, não desgraces a minha trajetória combativa, que te mato como a um cão, estamos entendidos?
— Sim — digo eu, e deixo que o membro do capitão entre na minha boca, depois cuspo o que ele deixa nela e ergo-me e olho pela janela, desde a qual não se vê o mar, mas a terra vermelha e quente de Angola.
— O que fazes de pé tão cedo? — pergunta-me a minha mãe atrás de mim. — Perdeste o sono?
— Sim, perdi o sono.
É que estou a ver como as balas me atravessam, como caio muito longe dela e do meu pai, que saiu e ainda não voltou. Sei onde está o meu pai, está com a russa, a professora de inglês que conhecemos na praia Rancho Luna no dia em que uma constipação impediu a minha mãe de ir connosco e o meu pai nos levou no velho Chevrolet e, assim que o meu irmão e eu vestimos os calções de banho, mergulhámos na água cálida com um só grito de prazer, e quando saímos o meu pai estava sentado na areia a conversar com uma mulher alta e loura que contrastava fortemente com ele porque era fina e de mãos bem tratadas e as mãos do meu pai estavam sempre conspurcadas. Apresentou-a e, afinal, a mulher era russa e chamava-se Liudmila.
— Como a Gurchenko — especificou o meu pai. Muito estranha, a russa, tinha os olhos amendoados, imensos e de um azul tão escuro, que parecia preto. Beijou as nossas caras molhadas, a minha e a do meu irmão, e perguntou-nos em que ano estávamos e se gostávamos de ler.
— Quero lanchar — foi a resposta do meu irmão.
— No quinto — disse eu. — E sim, gosto de ler.
— No quinto? — admirou-se a russa. — Pareces mais pequeno.
— Sim, é um bocado anão — disse o meu pai, dando uma gargalhada. — Saiu a mim, só que o homem não se mede da cabeça ao céu, mas do céu à cabeça.
— E a mulher? — perguntou a russa, que tinha um biquíni cor-de-rosa tão pequeno que todos os homens que caminhavam à beira-mar viravam a cabeça para a ver melhor, e o meu pai tinha os olhos tão abertos que pareciam capazes de conter o mundo.
— Quero lanchar — insistiu o meu irmão, e o meu pai, que estava nu da cintura para cima com os músculos de ex-ginasta à mostra, tirou a carteira do bolso das calças de ganga e deu-nos cinco pesos.
— Vão ao café e peçam o que quiserem… Toma conta do Rauli — disse depois ao meu irmão, que já vai fazer catorze anos e por isso acha que é um homem, e quando estamos sentados no café diz-me que a russa é uma puta e o pai, um filho da puta. Diz isto sem rancor, apenas como quem constata um dado adquirido. Comemos croquetes e bebemos iogurte, e quando regressamos à beira-mar a mulher alta e o pai ainda estão a conversar, e por isso o meu irmão dá-lhe o troco dos cinco pesos e voltamos para a água. Eu mergulho, meu Zeus, e quando estou no fundo abro os olhos, então vejo um peixe a aproximar-se e a olhar para mim e sonho que sou esse peixe e que um miúdo chamado Raúl está a olhar para mim, e sinto-me um pouco afetado pela transmutação das coisas e dos seres, embora não conheça a palavra, sou apenas um rapaz de dez anos que foi à praia e que, quando por fim emerge das profundezas, vê o pai a falar com uma mulher desconhecida.
— Não se descaiam com a mãe, portem-se como homenzinhos — diz o meu pai depois de entrarmos no Chevrolet. — Se lhe contarem, nunca mais vos trago à praia.
— Não nos ameaces — diz o meu irmão. — Se me deres vinte pesos, não lhe conto.
— Achas que podes fazer chantagem comigo, ó borra-botas? — diz o meu pai, mas depois sorri e passa-lhe vinte pesos. — Já sabes mais do que deves.
Se fechar os olhos, vejo-o a deitar-se com a russa e a fazer alguma coisa no corpo dela que com os meus dez anos não sei muito bem o que é, mas que não conto à minha mãe porque sei que não vai gostar e já tem problemas que cheguem para ainda ter de ouvir as histórias do meu pai e da Liudmila, que depois aparece num dia de muito calor com um prato de batatas em manteiga a dizer que é uma receita da avó dela da Ucrânia, e sorrisos para cima e sorrisos para baixo, e põe-me a mão na cabeça e olha para o José de longe, como se tivesse medo dele. O meu irmão tem má fama, a russa respeita o meu irmão, o meu pai sussurrou-lhe que é um rapaz difícil que só não está no reformatório por um triz. De mim gosta mais, eu sei como é que a russa vai morrer, de um enfarte do miocárdio após uma diabetes fulminante, em 2011, à beira dos setenta anos, num bairro suburbano de Volgogrado, a antiga Estalinegrado. Com os meus dez anos consigo ver a morte da russa, consigo vê-la a abrir a boca para pedir a água que o Serguei, o neto adolescente, não lhe traz. A russa, além das batatas cozidas com manteiga, traz uma coisa para mim e para o José, um livro do Pushkin que deposita nas mãos da minha mãe como se fosse um grande tesouro, conseguindo arrancar-lhe um sorriso ao folheá-lo porque o livro está em russo.
— Não vão perceber nada, Svetlana — diz-lhe, mesmo sabendo perfeitamente que a russa se chama Liudmila.
A minha mãe é assim, ninguém sabe ser mais sacana do que ela.
A minha mãe é secretária de um chefe que a faz sentir-se importante, mais importante, pelo menos, do que o meu pai, um simples bate-chapas que regressa ao apartamento quase sempre tarde e ligeiramente bêbedo e com o fato-macaco tão sujo de óleo e combustível, que ela tem de suar as estopinhas para o deixar impecável. O meu pai diz-lhe para não o lavar, que o deixe assim, mas a minha mãe passa as manhãs de domingo a ensaboar e a escovar esta rústica roupa de trabalho.
Em cima do aparador da sala, o meu pai tem umas medalhas do seu tempo de ginasta e uma fotografia onde está no pódio de uma competição de jovens atletas do campo socialista.
À hora do almoço, sentamo-nos os quatro na grande mesa da sala e a minha mãe faz questão de que usemos todos os talheres, mas o meu pai fica-se pela colher.
— Não és um exemplo para os teus filhos — diz-lhe a minha mãe.
— Pois não, não sou — reconhece ele —, sou um animal, não como o teu chefe, esse mulato.
O meu pai odeia o Ricardo, o chefe da minha mãe, que às vezes aparece lá em casa com uma garrafa de vodka para agradecer à secretária tamanha dedicação. A minha mãe recebe o presente de lágrimas nos olhos, mas apesar disso não bebe. O meu pai engole a garrafa toda sem sequer dizer obrigado. Ela é tão ingénua que se deixa apresentar à russa sem lhe passar pela cabeça que aquela mulher tão fina e distinta que parece saída de uma revista europeia poderia reparar num selvagem como o meu pai.
O meu pai chama-se José Raúl Iriarte Gómez e nasceu em Placetas, uma aldeia cheia de guajiros2 ressentidos de origem espanhola que se odeiam a si próprios por terem ficado na aldeia e invejam quem se foi embora. O meu avô chamava-se José Ignacio e era um impertérrito jogador de lutas de galos e trabalhador agrícola. A minha avó Carmen falava em galego e cultivava couves e alfaces que depois vendia por toda Placetas. Além do meu pai, teve mais quatro filhos, pôs a todos como primeiro nome José e todos, menos o meu pai, morreram de forma violenta. Os dois mais velhos alistaram-se no exército rebelde. O José Eduardo, a caminho de Sierra Maestra, foi capturado por um pelotão de guardas rurais e fuzilado à beira da estrada. O José Roberto foi morto em Santa Clara aquando do assalto ao comboio blindado. Os outros dois foram assassinados pelo mesmo marido que encontrou o José Ricardo, o mais novo, na cama com a mulher, enquanto o que lhe seguia em idade, o José Felipe, tocava guitarra, cantava uma rancheira e vigiava, encostado à parede traseira da casa. Muito boa sentinela não devia ser porque não ouviu chegar o homem conhecido em toda Placetas como o «Juan Desmancha-Prazeres».
— A faca comprometeu o rim do José Felipe — disse o médico à minha avó. — Caso contrário, teria sobrevivido.
O ciumento cortou a jugular ao José Ricardo e deu tantas punhaladas à mulher que, segundo conta o meu pai quando se embebeda e sente saudades dos irmãos, o polícia teve uma síncope e por pouco não morreu quando viu a morta tão cheia de sangue que fazia impressão. Às vezes, os meus avós só tinham dinheiro para comer farinha de milho temperada com sal e um pouco de molho de tomate na época dele. Quando a revolução triunfou, o meu pai, que já era adolescente, dedicou-se ao desporto e à mecânica, depois comprou o Chevrolet a um dos burgueses de Punta Gorda que emigraram só por saberem que Cubita La Bella estava a mergulhar de cabeça no comunismo.
A minha mãe chama-se Mariela Fonseca Linares e nasceu em Cruces, que na altura não era a aldeia imunda em que se converteu posteriormente, mas uma pequena cidade próspera com vários jornais e estações de rádio e uma vida cultural que pretendia ser ativa. A mãe da minha mãe, Elena Elisa Linares Argüelles, casou com um mulato blanconazo3 chamado Eduardo Fonseca Escobar, membro da célula do Partido Socialista e advogado, formado numa dessas universidades do Sul dos Estados Unidos apenas frequentadas por negros. A família da minha avó, uns fazendeiros de açúcar conhecidos em toda a região de Las Villas como os Linares, nunca lhe perdoaram esse amor desafortunado e deserdaram-na, por isso a minha avó tornou-se mestre-escola e, juntamente com o marido, construíram uma casinha de madeira que ainda existe em Cruces. Tiveram gémeas falsas. A minha tia Nancy nasceu muito loura e de olhos azuis como eu, e a minha mãe era tão trigueira que na escola lhe chamavam Cigana. Eram muito apegadas uma à outra e, quando a minha mãe se mudou para Cienfuegos, a irmã também foi e viveu connosco até adoecer e morrer de cancro. Eu tinha onze anos quando a Nancy morreu e a minha mãe nunca mais voltou a ser a mesma, e eu também não.
Eu era tão parecido com a Nancy que parecia mais filho dela que da minha mãe.
Notas
- Sin Huesos, no original. (N. da T.)
- Campónios. (N. da T.)
- Mulato quase branco. (N. da T.)
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