Prólogo do conto da Mulher de Bath

«Dispenso a autoridade da ciência,
Que a mim me basta a minha experiência
Pra opinar dos males no casamento.
Dos meus doze anos até ao momento,
Não tive menos, Deus louvado seja,
Do que cinco maridos na igreja –
Até me custa a crer que seja lícito –
E cada ao seu género bem solícito.

E sei plas catequeses, tive-as todas,
Que Cristo não andou por muitas bodas
E só a uma foi, a Canaã,
E que esse exemplo ensina a fé cristã
A não casar mais vezes do que uma.
Aliás, o Filho do Homem di-lo, em suma,
Mais tarde, ao pé do poço, com má cara,
Quando à Samaritana lhe repara:
«Tiveste cinco esposos, dizes bem,
E esse que hoje tens», diz-lhe, porém,
«Esposo teu não é». Disse-o decerto,
Mas o que quis dizer quem sabe ao certo?
Pergunto-me eu, por que motivo o quinto
Seria à luz da lei assim distinto?
Com quantos poderia ela casar?
Ninguém jamais me soube ensinar
Expressamente um número permitido.
Os homens conjecturam o sentido
Mas uma coisa faz parte dos laivos,
Não disse Deus «crescei, multiplicai-vos»?
Que belo texto esse, e sem enganos.
E li que o meu marido com os anos
Deve deixar os pais e desposar-me.
Mas tinha algum limite e foi escapar-me?
Nem bigamia, nem octogamia;
Porque é que se diz tanta vilania?

Em fevereiro recebemos Rita da Nova e Joana Silva

Rita da Nova e Joana da Silva são as convidadas do próximo encontro do clube de leitura É Desta Que Leio Isto, no dia 24 de fevereiro, pelas 21h.

Iremos conversar a obra de Elena Ferrante e mais concretamente sobre "A Filha Obscura", novela integrada em "Crónicas de Mal de Amor", livro editado em 2014 pela Relógio d'Água. A conversa surge também no âmbito da adaptação desta história ao cinema, com o nome de "A Filha Perdida".

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E que dizer do sábio Salomão?
Mulheres tinha às muitas, pois então!
Assim Deus me deixasse e fosse a lei
Metade do consolo desse rei!
À conta das mulheres que dom o dele!
Ninguém que é vivo vive como ele.
Deus sabe, cá pra mim este monarca
Não teve uma primeira noite parca,

Que o homem teve sorte, e não brinco.
Louvado seja Deus que eu tive cinco!
[E só escolhi dos bons e sem defeito,
Com bolsa em condições e rijo peito.
De escolas várias saem bons pupilos
E as práticas diversas e os estilos
Na obra aperfeiçoam o liceu;
Aluna sou de cinco escolas eu.]
Bem-vindo o sexto, quando possa vir.
Quem pode em castidade prosseguir?
Assim que o meu passar a falecido
Que seja em pouco tempo sucedido.
O apóstolo não diz que nesse caso
Sou livre pra casar? Pôs algum prazo?
Casar não é pecado, até ver;
É bem melhor casar do que arder.
Que importa se as pessoas falam mal
Do bígamo Lameque, o infernal?
Sei bem que Abraão foi homem santo,
Jacó também, mas sei que esposas tanto
Um como outro tiveram três ou mais,
E o mesmo aconteceu com outros pais.
Dizei-me onde na história Deus cuidou
O casamento um mal e o condenou
Nas escrituras? Onde, na verdade?
Ou onde decretou a virgindade?
Sabeis tão bem quanto eu que, neste tema,
O apóstolo não vê qualquer problema
E que não tem preceitos nem ensino.
Se os homens às mulheres pedem tino
E a isso advertem, são só advertências,
Não normas, que as deixou às consciências;
Se Deus fizesse lei da castidade,
Reprovaria as núpcias e a vontade.
E é claro, se semente não houvesse,
Nascia a castidade de que messe?
E Paulo não ousava impor doutrina
Em coisas que o seu Mestre não ensina.
A virgindade tem um prémio grande;
Que o ganhe quem quiser, e quem lá ande!

De resto, este ensino apenas basta
A quem Deus deu o dom da vida casta.
E ainda que São Paulo se abstivesse,
E ainda que ensinasse e dissesse
Recomendar as suas atitudes,
Não passa de um exemplo de virtudes.
E assim me deu licença pra casar,
De modos que é possível não pecar
No caso de tomar outro marido
Se eu for viúva do meu falecido.
Seria bom que o homem não tocasse
Em mulher – onde quer que a deitasse,
Pois lume e estopa devem separar-se;
A imagem pode bem interpretar-se.
Ou seja, a virgindade é preferível
Ao casamento se este é susceptível.
Eu digo susceptível, a não ser
Que a ideia seja estar, mas não haver.

Percebo que prefira a castidade
A novas núpcias, digo com verdade.
Há quem queira ser puro dentro e fora;
Não faço gala disso, muito embora,
Pois para quem seu lar sustenta é claro
Que a casa não tem só serviço caro;
Há coisas muito úteis e de pau.
A todos chama Deus segundo um grau,
E Deus a cada qual dá um talento –
E cada um recebe a Seu contento.

A castidade é grande perfeição,
E a continência, mais a devoção,
Mas Cristo, que é a fonte da pureza,
Não quis de todos voto de pobreza,
Que dessem os seus bens aos indigentes
E fossem atrás d’Ele obedientes.
Falou a quem quisesse ser perfeito;
E, meus senhores, isso é o meu defeito.
Desejo dar os anos naturais
Aos actos e aos frutos conjugais.

Já agora, quem me diz com que intenção
Fizeram membros pra procriação
Num homem tão perfeito, tão sensato?
Pra nada os fizeram, pois, exacto!
Podeis lá dar as voltas que ansiardes,
Foi com um fito apenas, pra purgardes
Urina, e que as diferenças são pequenas,
Pra distinguirmos macho e fêmea apenas,
E nada mais – o quê, dizeis que não?
A experiência chega pra lição.
Doutores, perdoai-me, por quem sois,
Só digo isto: servem para os dois;
Ou seja, tanto servem pra urinardes
Como, Deus assim quer, pra engendrardes.
Por que razão se escreve que é devido
Cumprir com a mulher o seu marido?
E como faz o pobre o pagamento
Senão co’o seu bendito instrumento?
Assim serve não só pra urinar
Como também pra ele engendrar.

Contos de Cantuária
créditos: E-Primatur

Mas não digo que todos os arreios
Precisam de servir os galanteios
Do dom reprodutor, e mais nenhum.
Não tinha a castidade emprego algum.
À imagem de homem era Cristo e virgem,
E muitos foram santos desde a origem,
Vivendo a vida toda em castidade,
Por isso não invejo a virgindade.
Que sejam pães branquinhos de alvorada,
E nós mulheres côdeas de cevada;
Mas de cevada o pão, Marcos não mente,
Matou Jesus a fome a muita gente.
Co’aquilo com que Deus me capacita
Assim hei-de seguir, não sou esquisita.
Se tenho um instrumento hei-de usá-lo
Tão livre quanto possa Deus deixá-lo.
Não seja eu forreta, essa agora!,
Que o meu marido o tenha a toda a hora,
Assim lhe agrade vir pagar o seu.
Terei no casamento o que for meu,
Alguém que é meu escravo e devedor;
Que sinta as provações e toda a dor
Da carne, enquanto for sua mulher (14).
Que eu tenho a autoridade que quiser
Sobre o seu próprio corpo, e ele nada.
Foi esta a instrução que me foi dada,
E aos homens disse o mesmo, entretanto.
Concordo plenamente com o santo» –

Sentiu-se o Vendedor de Indulgências:
«Meu São João, as minhas penitências!
Você saiu-me cá uma advogada!
Que eu quase me casava, bela alhada!
Porquê pagar na carne um preço tal?
Melhor ficar solteiro, afinal!»
«Calminha», interferiu, «fique pra ver.
De mais amarga pipa há-de beber,
E quando lhe contar a minha história,
E nela comprovar a oratória
Do casamento e suas aflições –
E creia, sou perita em provações,
E eu própria tenho sido um bom castigo –
Então aí decida o meu amigo
Se quer um trago da que eu vou espichar.
Cautela, antes de se aproximar!
Que eu só de exemplos tenho dez ou mais.
«Quem não aprende com os seus iguais
Arrisca-se a servir de aviso ao mundo.
Assim diz Ptolomeu no seu profundo
E sábio Almagesto, ali se lê.

Senhora, estamos prontos, como vê»,
Sugere o Vendedor de Indulgências,
«Prossiga, não nos poupe as consciências
Da prática que ensine a mocidade.»

Com gosto», respondeu-lhe, «caso agrade
Aos meus amigos; peço é o favor
De não fazerdes caso se o pudor
For parco, pois não quero ser grosseira,
Apenas entreter-vos à maneira.

Ouvi então, senhores, este conto,
E se lhe acrescentar que seja um ponto,
Que eu fique sem beber! Dos meus maridos,
Três foram bons e dois mais retorcidos.
Os três eram honestos, ricos, velhos;
Cumpriam parcamente co’os conselhos
Que há pouco referi, e conheceis.
Preciso de explicar? Vós bem sabeis.
E só de me lembrar, plos meus pecados!,
Nas noites que penaram, os coitados!
E se houve lucros, foram bem pequenos.
Mas deram-me tesouros e terrenos;
E pouco ou nada tinha de fazer
Pra tê-los plo beicinho, só eu querer.
E o que gostavam eles, se o esperava!
Já eu, era-me igual, não lhes ligava!
Nós, as mulheres, quando nada temos,
Andamos numa fona plos que queremos.
Mas quando não nos faltam e na mão
Os temos e até terras eles dão,
Pra quê dar-me ao trabalho de os mimar
Senão pra meu proveito, pra gozar?
Pois é, espremi-os bem, co’a fé que tinha,
E muita noite ouvi «Que vida a minha!»
Com estes, os de Dunmowe, à partida
Não viam bacon nunca mais na vida (15).
Tratava-os consoante os meus preceitos,
De modo que os mantinha sempre afeitos
A virem lá da feira com presentes.
E se os tratasse bem, ai que contentes!
Pois sabe Deus o inferno que lhes dava.

Ouvi agora como me portava,
Qualquer mulher sensata compreende.
Não há como a mulher quando ela ofende
E acusa o seu marido, pois em petas
Os homens são uns lorpas e uns caretas.
Não falo de mulheres ponderadas,
A menos que andem mal aconselhadas.
Uma mulher que é esperta e não é burra,
Vende o que for preciso, é casmurra
E prova a sua trama nem que ponha
Na história alguém que ateste a sua ronha.

Dizia assim: «Seu velho derrengado,
O que sorri a tipa aqui do lado!
Pode ir aonde quer, tem de vestir;
Já eu é trapos; nem posso sair.
E o que é que fazes tanto na vizinha?
É gira, é, arrastas-lhe a asinha?
E a criada, é só segredos, chiça!
Seu pinga-amor, conheço a tua missa!
Tivesse eu um amigo ou relações
Sem mal o que eu não tinha de sermões!
E fosse a casa dele, ulalá!
E chegas-me a feder como um gambá,
E ainda falas de alto, e tens que sobre,
Que é pena e tal casar com uma pobre,
Que é só despesas, poça, que estopada!
E se for rica e bem aparentada
Então é impossível, só vaidades,
Melancolias, birras e vontades.
Se calha de ser gira, seu calhorda,
É porque dá nas vistas e dá corda;
Não tarda está perdida, algum patife
Convence-a, é muita gente atrás do bife.

Uns querem-nas, tu dizes, pla riqueza,
Pla pinta outros, e outros pla beleza,
E outros porque dançam bem e cantam,
E outros plas famílias, porque encantam;
Alguns gostam da mão, do braço fino;
Enfim, é o diabo o seu destino.
Pra ti, um forte, mesmo estando alto,
Não pode resistir a tanto assalto.

E se for feia, dizes que deseja
Os homens todos, quantos ela veja,
Que como um Cocker Spaniel vai a todas
Até embeiçar um homem para as bodas.
E não há pato feio e depenado
Que não encontre pata em algum lado.
E dizes que é difícil aguentarmos
Aquilo que mantemos sem gostarmos.
E ao deitares-te, biltre, não descansas:
Que o sábio não se mete em maridanças,
Só quem não quer o céu e é profanete.
Que um raio te arrebente o gasganete
E te desfaça em duas más metades.

Que um homem foge a três calamidades:
A casas mal vedadas, a incêndios
E a megeras! Tantos vilipêndios!
É só reclamações e malefícios!

E que a mulher oculta os seus vícios
Até casar e que antes ela engana –
Daria um bom provérbio de um sacana!

Que a bois, cavalos, burros, cães de caça,
Se atesta antes da compra a casta, a raça;
Que o mesmo acontece com bacias,
Colheres, bancos, cântaros e pias,
Adornos, vestuário e outros mais;
Mas que não fazem isso os casais,
Nem provas há de esposas – seu canalha! –
E só depois das núpcias se acha a falha.

E dizes que te falo co’aspereza
A menos que me gabes a beleza,
E a menos que me admires sempre a cara
E venhas com «Senhora, sois tão clara».
E a menos que me faças uma festa
Plos anos, nem humilde, nem modesta;
E a menos que me mimes a criada
E a aia que me trata da almofada,
E ainda o meu pai mais os parentes –
É isto, com quantos dentes tens mentes!

E o Janekin, o aprendiz, pobre coitado,
Por ter cabelo aos cachos, arruivado,
Por ser do mais simpático e atento,
Merece-te suspeitas, seu ciumento.
Não o queria, mesmo que morresses!

Mas diz-me cá – no inferno tu sofresses –
Porquê esconderes as chaves do teu cofre
Se o cofre aos dois pertence – mulher sofre!
Quê! A dona da casa é letra morta?
Por São Tiago, nem que a boca torta
Te deixe a raiva, dono não serás
Do meu corpo e da casa, de um terás
De abdicar, quer queiras, quer não queiras.
E que suspeitas tão mexeriqueiras!
No cofre tu me querias, de certeza,
Em vez de me dizeres «Vai, beleza,
Desfruta a vida, deixa que se fale.
Eu sei quem tenho, sei o quanto vale».
Nós somos livres, quem quiser falar
Da nossa vida, é livre de invejar.

De entre os homens que há, bendiga eu
O sábio do Almagesto, Ptolomeu,
Que bem acerta quando nele diz
«De entre os homens, sábio e feliz
É quem não olha aos donos deste mundo».
Por este ensinamento bem profundo
Quem tem bastante vê que tem de mais
E não se preocupa co’os demais.
Pois é, velho caquéctico, podendo
Terás que chegue, as noites que fores tendo.
Só um mesquinho enjeita quem lhe ateia
A chama que lhe pode a candeia;
Jamais será a sua luz tão fina.
Quem tem bastante de que se amofina?

E caso, dizes tu, nos enfeitemos
Com roupa e adornos que estimemos,
Em causa colocamos a pureza;
Pois é – má sorte a tua! – põe certeza
Na tese co’apostólica verdade:
«Em vestes de humildade e castidade»,
O texto diz, «Deveis, mulheres, vestir-vos
E não buscar toucados pra exibir-vos,
Nem pérolas, nem ouro, nem brocado.»
Seguindo o teu compêndio e o glosado
Não sirvo para muito, só pra empata.

Disseste que eu parecia uma gata;
Se o pêlo chamuscado lhe cair,
Então mais vale à gata nem sair;
Se a gata for macia e lustrosa,
Não pára lá em casa, a vaidosa,
Mas antes lá vai ela, ao rocio,
Mostrar, miando, o pêlo em pleno cio.
Ou seja, meu marau, se eu for vistosa,
Irei mostrar-lhes trapos de andrajosa.

Seu velho tolo, espia se achas bem!
Invoca Argos, olhos tem aos cem,
Pra ser o teu olheiro de eleição,
Vai dar ao mesmo, há-de ver então
Aquilo que eu deixar, vê lá bem isso!
Disseste haver três coisas, além disso,
Que põem esta terra em más procelas
E que ninguém suporta a quarta delas.

Ó seu patife, vivas curta vida!
Pra ti, a esposa amarga é reduzida
Ao lote do azar sem paralelo.
Não arranjaste tu outro libelo
Pra seres parabólico, em vez
Da tua pobre esposa entre as três?

Comparas ao inferno e ao deserto
O amor de uma mulher, a chão aberto.
E dizes mais, que é fogo com mais fome
(Afim do grego) quanto mais consome (16)
E a si se atiça e lambe o que lhe venha.
E dizes que a carcoma rói a lenha
Assim como a mulher corrói o esposo;
Que o diga o inocente afadigoso.»

Senhores, dito isto, é forçoso
Provar a quem um dia foi meu esposo
O que por eles disse a bebedeira;
E tudo era falso, mas, quem queira,
Pergunte ao Janekin e à minha sobrinha.
Senhores! O que lhes fiz, a culpa é minha,
A deles é nenhuma, os inocentes!
Rinchava e mostrava-lhes os dentes.
Queixava-me, apesar de estar errada,
Não fosse ser por eles descartada.
Quem vai primeiro à mó é quem faz grão;
Queixava-me eu primeiro e perdão
Pediam por se darem por culpados
De faltas que nem tinham, os coitados.
E, se doentes, nem se defendiam
Se lhes dissesse que às meninas iam.

Babavam-se, porém, na convicção
Que lhes tivesse grande afeição
E que só me esfalfava em noitadas
Pra ver com quem andavam nas cornadas;
À conta disto, as noites que eu gozei!
Pra que me serve a tola e o que sei?
Engano, choro, histórias, são pertença
De nós, mulheres, logo à nascença.
E assim de uma coisa eu me gabo:
Levei eu a melhor, ao fim e ao cabo,
Por manha, força, amuo ou mau humor,
Ou outro expediente de rancor.
Ralhava-lhes na cama, especialmente,
E aí passaram mal, infelizmente;
Na cama não me tinham se sentisse
Um braço no meu lado, até que eu visse
Saldada a sua pena, e só então
Ousava levantar-lhes a sanção.
Daí que o conto conte a quem aprenda,
Que todos lucram, tudo está à venda;
Ninguém atrai falcões com mão vazia.
Sofria a luxúria e comia
Sem apetite, em nome de guedelhas,
Se bem que não sou dada a carnes velhas.
Por isso lhes ralhava e com dureza,
Estivesse o papa até presente à mesa,
Não os poupava, ouviam um sem fim,
Cobrava-lhes à letra, crede em mim!
Plo Todo-Poderoso, se o momento
Pedisse aqui e agora testamento,
Iria em paz, sem nada por dizer.
De alguma forma dava a entender
Que tinham de ceder, pelo melhor,
Se queriam ter bem-estar, pois por pior
Que se mostrassem, bravos quais leões,
Não longe iriam quanto a ambições.

Então diria «Vê, meu queridinho,
Que manso o Wilkin é, que cordeirinho!
Vem cá, deixa beijar essas bochechas!
Que doce e meigo que ele é, sem queixas,
Consciencioso, fala sempre e só
Do mais paciente entre os homens, Jó.
Pratica a paciência, já que a pregas;
Senão há que ensinar-te o que tu negas:
Que é bom ter a mulher em santa paz.
O homem certamente é perspicaz,
E sabe que um dos dois deve ceder,
E que ele é quem precisa de sofrer.
Mas porque cismas tu, que és só rancores?
Querias só pra ti os meus favores?
São todos teus! Senhores, os que quiseres!
Que tenhas de São Pedro o que me deres!
Pois se eu quisesse dá-los e vendê-los,
Andava aqui qual rosa em refestelos,
Mas não; é só pra ti, fica a promessa.
Que Deus não te castigue, essa é que é essa!

Contos de Cantuária
créditos: E-Primatur

Livro: Contos de Cantuária

Autor: Geoffrey Chaucer

Editora: E-Primatur

Data de lançamento: 11 de fevereiro

Preço: € 26,91

E assim seguia o nosso argumento.
Passemos já ao quarto casamento.

O quarto era um destes libertinos –
Ou seja, tinha amante, o valdevinos –
Eu era nova, viva e teimosa,
Folgaz como uma pega, calorosa.
Dançava ao som da harpa que era um espanto,
Cantava à rouxinol, um senhor canto,
Mal me atirasse ao vinho bom de borco!
Metellius, sacana, grande porco (17),
O que bateu na esposa até matar
Por ter bebido vinho, tinha azar
Comigo, nem assim me punha a seco!
E o vinho chama Vénus – torna peco
O gelo que se segue ao frio brabo,
Mas já a boca quente atiça o rabo.
A bêbeda defesa não a tem –
A lúbrica sabe isto muito bem.

Mas – Cristo meu Senhor! – que mocidade
Feliz a que eu vivi, que boa idade,
Só de lembrar trespassa até ao centro
Do coração, faz cócegas cá dentro,
Que eu tenha aproveitado quanto pude.
Infelizmente a idade desilude
E estraga a formosura de que é farta.
Pois vai-te, adeus! Ao raio que te parta!
Foi-se a farinha – anima-te, mulher!
Quem tem farelo vende o que puder
E como possa, estamos entendidos.
De volta então ao quarto dos maridos.

Há que dizer, chegou-me a enfurecer
Que noutra procurasse o seu prazer.
Mas cá pagou, meu Santo Judocus! (18)
Do mesmo pau lhe fiz a sua cruz;
Não do meu corpo, nem com vis maneiras,
Mas não neguei a uns quantos brincadeiras,
E assim na própria banha e no seu lume
Fritou, enraivecido de ciúme.
Meu Deus, na terra fui-lhe o purgatório;
Que esteja em paz e não em sítio inglório.
Deus sabe quantas vezes se agarrava
Ao pé quando o sapato lhe apertava.
E quanto o torturava, ai, quantas vezes,
Só Deus o sabe, as dores e os revezes!
Morreu quando deixei Jerusalém,
E sob a trave jaz, a que a cruz tem,
Embora o seu sepulcro, por mais pio,
Não se compare em espanto ao de Dario,
O qual Apeles fez tão habilmente (19);
Seria um gasto dar-lhe equivalente.
Que passe bem; Deus tenha a sua alma!
Que a campa e o caixão lhe tragam calma.

Ao quinto passarei, que está no eterno.
Que Deus lhe poupe a alma e o inferno!
Embora me saísse cá um pulha;
Deixou-me uma pontada, uma agulha
Nas costas, só co’a morte passará!
Na cama era tão toma-lá-dá-cá,
E mais a mais sabia enganar-me,
Lá vinha com docinho, todo charme;

A ponto de me encher só de porrada
E me deixar assim pró embeiçada.
Gostava dele, creio, mais por ser
Do tipo indiferente, por não querer.
Nós, as mulheres, temos, em conjunto,
Inclinações estranhas neste assunto:
Por coisas que pareçam de árduo ganho
Choramos todo o dia baba e ranho.
Proíbam essa coisa, e desejamo-la;
E se nos pressionarem, desertamo-la.
Mostramos no comércio sobriedade;
Não paga pouco o povo a raridade,
E o preço cai consoante a muita oferta:
Qualquer mulher o sabe, é só ser esperta.

O quinto – Deus o tenha imorredouro! –
Que por amor tomei e não por ouro,
Chegara a andar em Oxford, mas deixara
A escola e, entretanto, regressara
Pra ir morar com uma amiga minha;
Que Deus a tenha, à minha Alicinha!
Sabia mais de mim do que o vigário
Em anos de ir ao seu confessionário!
Ficava o que contasse bem seguro.
Mijasse o meu marido contra um muro,
Pusesse mesmo a vida dele em risco,
Contava tudo a ela e, arrisco
Dizer, a outra amiga a quem me choro,
E à minha sobrinhita, que eu adoro.
E assim o fiz, às vezes, Deus louvado,
E isso pô-lo fulo, revoltado,
Vermelho de vergonha, por ter dito
Aquilo que supunha ser restrito.

E assim se deu, entrados na Quaresma
(Pois ia muito à minha amiga eu mesma –
Que adoro divertir-me, não me ensaio
A passear em Março, Abril e Maio –
De casa em casa ia, à intriguice),
O Jankin, o estudante, e a minha Alice,
Ao campo fomos – claro, e eu mesma.
O meu marido estava na Quaresma
Em Londres; ia lá perder a aberta,
Poder folgar, ver, ser vista, deserta
De gente em festa? Quem me garantia
Que ali não estava o bem que me cabia?
Lá fiz então as minhas passeatas,
Fiz vésperas, sermões, as mais beatas
E santas romarias, procissões,
Fui a Milagres, peregrinações;
Fui de escarlate vivo a casamentos.
Vestidos que escaparam aos intentos
Das traças e dos vermes, e porquê?
Usei-os muito bem e sem mercê.

Contos de Cantuária
créditos: E-Primatur

Agora contarei o que ocorreu.
Andávamos no campo e aconteceu
Namoriscarmos, eu e o estudante,
A ponto de eu pensar mais adiante
E lhe falar viúva já e só,
Não lhe enjeitando então um novo nó.
Enfim, modéstia à parte, acho seguro
Acautelar bem cedo o meu futuro,
E núpcias nunca foram excepção.
Um rato está tramado se a opção
De fuga se reduz a um orifício;
Se esse falha, mau é o auspício.

Deixei-o crer que a coisa estava ganha –
A minha mãe mostrou-me essa artimanha –
E que sonhei que, estando eu deitada
De costas, numa cama ensanguentada,
Sofria às suas mãos a minha morte;
Mas que seria até sinal de sorte,
Pois sangue, dizem, é sinal de ouro.
Menti-lhe, enfim; no sonho e no agouro,
Mas pra dizer que ouvia a minha mãe,
E não apenas nisto, mas também.

Mas onde ia? Deixa-me cá ver...
Ah, ah! Pois como estava a dizer,
Velando o meu marido no caixão,
O quarto, fiz-me toda comoção
E pena costumeira de viúva,
De lenço ocultando a pouca chuva
De lágrimas, pois estava já provida,
Admito, de parceiro, à partida.

Bem cedo para a igreja foi levado
Aos ombros de vizinhos e chorado,
E um destes era o Jankin, o estudante.
Não é que, Deus me valha, nesse instante,
Atrás do ataúde, vejo um par
De pernas e de pés com tão bom ar
Que o coração lhe dei aos seus cuidados?
Teria uns vinte invernos já contados,
E eu quarenta, e não que os rejeite,
Que eu sempre tive dentes de deleite,
E, embora afastados, tinham graça;
De Vénus tinha a marca, e devassa,
Ai, Deus me valha, era, e formosa,
Bem-posta, rica, jovem e famosa,
Que o digam os meus homens, por ser dona
Da quoniam mais perfeita cá da zona (20).
É certo, sou venérea na emoção,
E Marte é quem me rege o coração.
A ânsia vem de Vénus e o amor,
E Marte deu-me a audácia e o fervor;
Sou Touro de ascendente, e Marte a par.
Ai não! Ai que não peque por amar!
Segui o que o instinto me ensinou,
Assim o meu horóscopo o ditou;
Por isso tinha a alcova sempre aberta
A Vénus e a quem fosse sua oferta.
Visível, tenho Marte no meu rosto,
Também em outro sítio menos exposto.
Juro por Deus, a minha salvação,
Que nunca pus no amor moderação;
Mas sempre me nutri de rapazotes:
Morenos, louros, altos ou baixotes,
Topava a tudo, fosse sangue nobre
Ou não, não me importava, nem se pobre.

O que dizer então, no fim do mês,
Co’ Jankin, o estudante, tão cortês,
Casei, com grande pompa e circunstância,
E dei-lhe as terras, bens em abundância
Que a mim outros me deram previamente.
Arrependi-me logo amargamente;
Obstava ao que me desse cá na telha.
Deus meu, bateu-me um dia na orelha
Por ter rasgado um livro seu querido,
E o estalo pôs-me surda do ouvido.
Teimava tanto como uma leoa,
E dava à língua a modos que à toa,
E andava, como antes, plos vizinhos,
Por mais que ele instruísse aos bons caminhos;
E vinha o mais das vezes com sermões,
Tirando dos romanos as lições;
Como o Sulpício Galo se livrou
Da esposa e nunca mais a aceitou,
Apenas porque a vira a espreitar
Da casa co’a a cabeça por tapar (21).

Contou de outro romano, pois então,
Que, em festas de solstício de Verão,
Vendo a mulher em folgas, a deixou.
Além do mais, na Bíblia procurou
Provérbios do autor do Eclesiastes
Que impeçam estritamente os desastres
Que os homens sofrem com mulheres sem freio.
Assim diria sem qualquer rodeio:

«Quem faz com paus de vime o seu coberto,
E espora o gaio cego a campo aberto,
E vê ir a mulher atrás dos santos,
É digno de ir à forca como tantos!»
Mas era em vão, não dava os meus enfados
Plos seus provérbios nem plos seus ditados,
Nem estava pra escutar os seus preceitos.
Detesto quem me aponte os meus defeitos,
E mais de nós faz – Deus sabe – do que eu.
E isto pô-lo fulo, ensandeceu
Só porque não me tinha no lugar.

Pois bem, por São Tomás, irei contar
Porque rasguei o livro dele, a folha
Que me valeu um tímpano e uma solha.

Ora ele um livro lia e relia
Com grande entusiasmo, noite e dia;
Chamava-lhe Valério e Teofrasto (22),
Que o riso lhe trazia por arrasto.
E em Roma havia um clérigo, um tal
De São Jerónimo, um cardeal
Que fez um livro contra Joviniano;
Pois nesse livro entrava Tertuliano
E Crísipo, mais Trótula e Heloísa,
A que era em Argenteuil sacerdotisa,
Mais as parábolas de Salomão,
A Arte de Ovídio, uma colecção,
Encadernados todos num volume (23).
E noite e dia era seu costume,
Na hora destinada ao lazer,
Na pausa de trabalhos, dar-se a ler
O livro das esposas retorcidas.
Sabia muito mais de tantas vidas
Do que há de esposas sãs nas escrituras.
Pois crede, é impossível criaturas
Do clero bem falarem das mulheres,
A menos que de santas esmoleres,
Das outras, não, está fora de questão.
Quem foi quem foi que pintou o leão? (24)
Deus meu, tivessem elas escrito histórias,
Assim como os do clero as oratórias,
Fariam dos de Adão um tal retrato
Que não haveria um único beato.
Os filhos de Mercúrio vulgarmente
Opõem-se aos de Vénus frontalmente;
Mercúrio preza o sábio e a ciência,
E Vénus o salaz e a decadência.
Por ser diverso e vário, cada qual
Sucumbe ao ascendente do rival.
E assim, em Peixes, quando Vénus cresce,
Mercúrio nada pode, e aquele desce
No tempo em que Mercúrio se sublima.
Não acham as mulheres no clero estima.
Assim, senil, o clérigo, sem passo,
Que em Vénus acha tudo um embaraço,
Limita-se a escrever, já carcomido,
Que a mulher não cumpre co’o marido!

Voltemos a ter sido eu espancada,
Assim como vos disse, à livralhada.
O Jankin estava a ler, ao pé do lume,
Em certa noite, o livro do costume,
Em como Eva, cheia de malícia,
Custou à humanidade a má notícia
E a Jesus, o próprio, o sacrifício,
Que nos comprou a sangue e a suplício.
Vede a mulher, é ela, em verdade,
A causa do desar da humanidade.

E leu-me de Sansão, da carecada
Que, ao dormir, lhe fez a namorada;
E mais perdeu os olhos à traição.
E leu-me ainda mais, da relação
De Hércules e a sua Dejanira
Que o imolou e o levou à pira (25).

Não se esqueceu de Sócrates, das suas
Mulheres, o que arcou com essas duas.
O mijo que Xantipa lhe atirou;
O homem como um morto ali ficou,
Limpando o rosto, e apenas disse então
«A chuva acompanha o trovão!»

E pla maldade, graça achou completa
À história de Pasífae, a de Creta,
Rainha tão medonha – que horror! –
Que sede, que apetite assustador!

E dessa Clitemnestra, vergonhosa,
Que ao esposo trouxe a morte aleivosa,
Leu com prazer, com grande devoção.

E disse-me também por que razão
Anfiarau em Tebas deu em lenda.
O meu esposo tinha uma legenda
De Erifila, a mulher, que deu, em troca
De um broche de ouro, aos gregos, a tal toca
Onde em segredo o esposo se escondia,
O que o levou à morte que previa.
E de outras, Lívia e Lúcia, me contou;
Uma porque amou, outra porque odiou,
Custaram aos maridos negra sorte.
Num fim de dia, Lívia, trouxe a morte
Por via de veneno ao seu rival;
Já Lúcia amava muito, e, sensual,
Querendo estar na mente do amado,
Deu-lhe a beber um filtro apaixonado
Mas de manhã, enfim, tinha morrido;
A pena é o fardo do marido.

Depois contou-me como um Latumius (26)
Se foi queixar ao seu amigo Arrius
Da árvore da forca no seu horto,
Na qual três vezes deu co’o corpo morto
Das três com quem casou, por depressão.
A isto Arrius disse: «Ó querido irmão,
Arranja-me um pezinho desse lenho,
No meu jardim lugar para ele tenho.»

Mais tarde, leu de esposas que, no leito,
Mataram os maridos a direito,
E enquanto o corpo lá no chão jazia
Gozavam com devassos ’té ser dia.
E quem dormia hoje faz tijolo
Porque unhas lhes cravaram no miolo
Ou lhes deram veneno do bebível.
Falava assim de um mal inconcebível,
E disto conhecia mais ditados
Do que ervas há e plantas pelos prados.
«Melhor», diria, «Teres habitação
Com um dragão nefando ou um leão,
Do que viveres pra sempre azucrinado.
Melhor viveres no alto do telhado
Do que dentro de casa com megeras;
Torcidas, são do contra, umas feras;
O que os maridos gostam é moléstia».
Dizia «A mulher despe a modéstia
Assim que despe a roupa»; e de enfiada,
«Mulher formosa e pouco recatada
É aro de ouro em fuça de suína».
Alguém supõe, alguém lá imagina
A dor no coração, o sofrimento?

E quando o vi teimar no seu intento,
Entregue toda a noite ao livro horrendo,
De súbito, enquanto o ia lendo,
Arranco-lhe três folhas ao volume
E acerto-lhe um sopapo tal que ao lume
Foi ter de costas sem qualquer travão.
Levanta-se, parecia um leão,
E acerta-me ele um murro de seguida
E fico pelo chão como sem vida.
E quando assim me vê estatelada
Ficou sem cor; far-se-ia mesmo à estrada
Não fosse eu acordar do meu desmaio.
«Mataste-me, ó ladrão!», assim me saio,
«Pla sua terra, acabas com um ser?
Pois dá-me um beijo, antes de morrer».

Então ajoelhou-se com afã,
E disse «Querida Alison, irmã,
Que Deus me ajude, não te bato mais!
Se o fiz, foi culpa tua, ademais.
Desculpa-me, imploro o teu perdão!».
Então na cara dou-lhe um bofetão,
E digo «Estamos quites, seu gatuno;
Agora morro, não mais te importuno!».
Depois de muitos ais e uis, por fim,
Fizemos um acordo os dois, e a mim
Cedeu-me o seu governo, quer do lar,
Quer das propriedades, a somar
À sua mão e à língua, por igual;
Quis logo que queimasse o manual.
E quando me investiu de soberania,
E me apossei de plena senhoria,
Depois de me dizer «Esposa querida,
Faz como queiras toda a tua vida;
Conserva a honra, a minha condição» –
Não houve mais nenhuma discussão.
Nem esposa haveria assim tão boa,
Deus meu, da Dinamarca até Goa,
E honesta, como ele foi também.
Que Deus, na majestade do além,
Proteja a sua alma compassiva.
E agora, a minha história alusiva».

Eis as palavras entre o Citador e o Frade.

O Frade riu-se muito neste ponto;
«Senhora», diz, «preâmbulo de conto
Tão longo nunca ouvi, isso é verdade!».
E quando o Citador ouviu o Frade,
«Plos braços dois de Deus!», disse ele, «é isso!
Já cá faltava um frade metediço!
Meus bons senhores, frade e mosca, é certo,
Do prato e dos debates andam perto.
Perambular! Qual quê! Ambule, a passo,
A trote, ou quietinho, ou dê espaço!
Um desmancha-prazeres, é o que é!».

Tornou-lhe o Frade «É já, pla minha fé,
Se assim o quer, prezado e bom senhor;
Pois tenho um conto ou dois de um citador
Que é gargalhada certa, meus amigos».

«Merecedor o frade de castigos»,
Opôs-lhe o Citador, «e eu, do Hades,
Se dois ou três não saiba eu de frades
De antes de chegar a Sittingbourne
Que lágrimas pla cara vos entorne,
Pois sei que não vendeis resignação».

«Silêncio!», disse o nosso Anfitrião.
«Deixemos a mulher chegar ao conto.
Pareceis um par de bêbados.
Vá, pronto, Senhora, conte lá, venha lá isso».

«Senhor», disse ela, «todo o gosto nisso,
Assim o nosso frade queira ouvir».

«Sim, sim», disse ele, «pode prosseguir».

Contos de Cantuária
créditos: E-Primatur

Aqui começa a Mulher de Bath a contar

Na época do Rei Artur, monarca
Que nos bretões deixou distinta marca,
Havia nesta terra muitas fadas,
E a rainha das fadas, de mãos dadas
Dançava co’as demais, em verdes prados.
Assim se cria, lê-se em muitos lados;
Refiro-me há centenas de anos já.
Pois neste tempo gnomos mais não há,
Que agora a caridade e a petição
De frades mendicantes em missão
De andar por toda a parte, qual poeira
Que à luz do sol se adensa passageira,
Benzendo quartos, cozinhas, salões,
Cidades, burgos, fortes, torreões,
Aldeias, granjas, estábulos, vacadas –
Enfim, em conclusão, não há mais fadas.
Pois onde o gnomo era o caminhante
Agora lá caminha o mendicante,
Orando de manhã até às tantas,
Com as matinas e outras coisas santas
Plas áreas que lhes foram concedidas.
E sentem-se as mulheres protegidas.
Debaixo de um arbusto, sob a copa,
Só este mesmo íncubo as topa,
E mal nenhum lhes faz, só as desonra.

O rei Artur, entre os da sua honra,
Acomodava um vivo solteirão,
Que um dia ao vir da caça com falcão,
Achou uma donzela, de repente,
Andando solitária à sua frente,
Donzela que, mau grado o que pudesse,
Perdeu a virgindade que tivesse;
E tal ofensa a fúria despertou
E ao nosso rei justiça se implorou,
Que condenasse à morte o cavaleiro,
E o seu pescoço não estaria inteiro –
Talvez fosse o estatuto, esse, dantes –
Se os rogos da rainha e acompanhantes
O rei não molestassem por perdão
Até que lhe poupasse a vida e então
A desse ao livre-arbítrio da consorte,
Que fosse ela a escolher a sua sorte.

Agradeceu ao rei muito a rainha.
E, quando um dia o viu, falou-lhe asinha
E disse ao cavaleiro ela então:
«Ainda estais», disse ela, «em condição
Precária, pois salvai-vos, se puderdes;
Só poupo a vossa vida se disserdes
O que quer a mulher com mais ardume.
Cautela ao pescoço, olhai o gume!
E se não o souberdes, de momento,
Deixar-vos-ei à solta com intento
De achardes a resposta para o caso,
Um ano e um dia, dou de prazo;
Mas antes de irdes, vós, jurai primeiro,
Que entregareis o corpo de guerreiro».

Que triste pena a sua, lamentava-se;
Mas quê! Não tendo escolha, resignava-se.
Por fim, lá decidiu ir-se liberto
Pra regressar, ao fim de um ano certo,
Com a resposta, Deus não queira errada;
E assim se despediu, e fez-se à estrada.

Buscou por toda a parte, no intuito
De acaso descobrir o que quer muito,
E mais do que outras coisas, a mulher,
Mas não logrou achar, por onde quer
Que procurasse, duas criaturas
De acordo, em união de conjecturas.
Alguns diziam que era ter riqueza,
Alguns ter alegria, alguns nobreza,
Casar e enviuvar, ou ter luxúria
Na cama, ou vestir bem e sem penúria.
Alguns que os corações são mitigados
Se a mimos de lisonja forem dados.
E é, reconheçamo-lo, verdade.
Cedemos se nos falam à vaidade,
E somos, mais ou menos, apanhadas
Com atenções e outras pavonadas.

E alguns que só queremos rédea solta
E andar em liberdade, e sem escolta,
Sem homem que nos ralhe imperfeições,
Mas louve os nossos sábios corações.
De facto, não há uma entre nós
Que não escoicinhe o homem cuja voz
A enervou à custa da franqueza.
Comprove quem mantenha a incerteza.
Por muito pecadoras que sejamos,
Queremos ostentar que não erramos.

E alguns que nos pelamos por passar
Por estáveis, e capazes de guardar
Segredos, sem contar as confissões
Dos homens, sem falhar nas intenções.
Mas isso são histórias, que a mulher
Não guarda nada, diga o que disser,
Que o diga Midas – quereis ouvi-lo, ao menos?

Ovídio, entre assuntos mais pequenos,
Contou que Midas, sob o seu cabelo,
Tapava um par de orelhas de asno, fê-lo
Para ocultar de todos o defeito
Do modo mais subtil e mais perfeito,
À excepção da esposa que amava
E em quem especialmente confiava;
Pediu-lhe que a ninguém contasse, então,
Da sua vergonhosa imperfeição.

Jurou que não, por tudo o que existisse,
Não contaria nada que ferisse
A honra e o bom nome do esposo.
E até pra si seria desonroso.
Se bem que de guardar um tal segredo
Ainda morreria, tarde ou cedo;
Pensou que romperia do seu peito,
Decerto pra retê-lo um pouco estreito;
E já que o não diria a ninguém,
Correu com alma ardente de alguém
E a um palude próximo chegou
E como um abetouro abaixou
Com estrondo sobre a água o seu bico:
«Ó água, cala todo o mexerico»,
Falou, «a ti confesso, o meu marido
Um par de orelhas de asno tem escondido!
Já está cá fora, pronto, não podia
Calar-me mais, senão ainda explodia».
Aqui se vê, por muito que o calemos,
O dia há-de vir que o revelemos.
O resto em Ovídio achareis,
É lê-lo, pois ali mais sabereis.

O cavaleiro desta minha história,
Ao ver que voltaria sem a glória
De vir com a resposta à questão,
Sentiu no seu espírito aflição.
Mas lá regressa; havia que voltar;
Chegara o dia, enfim, de regressar. E assim, voltando ele, vinha nesta
Matéria absorto, junto a uma floresta,
Até que viu mulheres em rituais,
Diria vinte e quatro, talvez mais;
Chegou-se às danças delas co’avidez
Na esperança de obter delas sensatez.
É claro, não chegara ainda lá
E dança alguma achara ele já.
Não via ali ninguém, senão, sentada
Na relva uma mulher, a sós, mais nada –
Nenhum ser tão horrendo se supõe!
E ao chegar-se a ela, em pé se põe,
E diz: «Senhor, aqui não há caminho.
O que buscais, o que vos traz sozinho?
Talvez vos adiante eu algum tanto;
As velhas gentes sabem o seu quanto.»

«Ó minha mãe», disse ele, «mais me rende
Morrer aqui, a menos que desvende
Qual o maior desejo da mulher.
Recompensá-la-ei, se mo disser.

A vossa mão», disse ela, «e prometei
Fazer o que vos peça, e vos direi,
Se assim cumprirdes vós e vos mereça
O que quereis, e antes que escureça».

Eu juro», o cavaleiro disse, «aceito».
«Então», disse ela, «a salvo, com efeito,
Estareis, ouso dizê-lo, e a rainha
Dirá como eu disser em toda a linha.
Quem há-de ter vaidade e tanto zelo,
Das que usam lenço ou rede prò cabelo,
Que me desminta os meus ensinamentos?
Adiante, e sem mais adiamentos».
Contou-lhe o seu segredo ao ouvido,
Que não temesse e fosse decidido.
Que quando os dois na corte, o cavaleiro
Cumprisse o juramento seu primeiro,
E respondesse pronto, como disse.
Senhoras, as mais nobres que se visse,
Donzelas e viúvas, e ilustrada
E justa, a rainha, ali sentada,
Juntaram-se pra ouvir o seu parecer;
Chamou-se o cavaleiro a comparecer.

Mandou-se assim calar a toda a gente,
Que o cavaleiro a todas desse urgente
Que coisa é que a mulher mais quer no mundo.
Não se ficou qual besta no profundo
Silêncio, mas com voz viril riposta
Pra dar à corte, audível, a resposta:

«Senhora, sem excepção, o que eu diria
É que a mulher deseja soberania
Sobre o marido e sobre o seu amor,
A fim de ser sobre ele o seu senhor.
É isto o que mais quereis, podeis matar-me.
E ao vosso querer entendo sujeitar-me.»
Na corte havia quem negasse aquela?
Nem esposa, nem viúva, nem donzela,
Apenas que era digno de viver.
Ergueu-se então a velha pra dizer,
A que ele no vergel achara só:

«Rainha soberana, tende dó!,
Suplico-vos justiça a vós primeiro,
Fui eu quem ensinou o cavaleiro;
O qual em troca quis em jura dar-me
Aquilo que eu quisesse ofertar-me,
Estivesse ao seu alcance um tal favor.
Diante desta corte, meu senhor»,
Disse ela, «desposai-me em seguida,
Pois bem sabeis que me deveis a vida.
E se vos minto, ora, dai-me um não!»

Tornou-lhe o cavaleiro, «Ai que aflição!
Sei muito bem que sim, foi a promessa.
Meu Deus, pede outra coisa, mas não essa!
O corpo não, o resto, os bens, entrego».

«Senão», disse ela, «aos dois nos arrenego!
E posso ser eu feia e velha e pobre,
Mas nem por todo o ouro e todo o cobre
Que a terra mostra ou cobre no interior,
O teu amor daria, meu amor».

«Amor?», disse ele, «não, é mais desgraça!
Ai que infeliz, que alguém da minha raça
Assim se veja a tanto degradado!».
De nada lhe valia; obrigado,
Em suma, foi; e teve de casar
E com a velha esposa se deitar.
Diriam, porventura, alguns de mim
Que não me dou ao esforço, que ao festim
E às bodas que ocorreram nesse dia
Eu escondo toda a pompa e alegria.
A isso bruscamente eu respondo:
Qual pompa e alegria?
Nada escondo;
Apenas houve peso e houve dor.
Casou ele em privado e no alvor
De um dia ao qual se deu como a coruja,
Em luto pelo horror da garatuja.

Sofreu o cavaleiro em pensamento,
Quando cumpriu deitar-se em casamento;
Coiceia para a frente e para trás.
E a sua velha esposa se compraz
E diz «Ó meu marido, abençoado!
É isto um cavaleiro já casado?
Assim lhe dita a lei do Rei Artur,
Que sempre em todo o lado se aventure?
Sou eu, a tua esposa, a tua querida;
Sou eu quem te salvou a tua vida,
E mal nenhum me deves tu a mim;
Porque me tratas esta noite assim?
Parece que perdeste o teu juízo.
Que mal te fiz? Meu Deus, o que preciso
De corrigir? Que o faço, se puder».

«De corrigir?», disse ele,
«Ai não, mulher! Não é uma questão de corrigir.
És desprezível, velha, de fugir,
E, além do mais, de baixa condição,
Por voltas mais que eu dê, será em vão.
Que Deus me estoure o coração no peito!».

«É essa a tua angústia?», diz-lhe a eito.
«E admira?», disse-lhe ele, «Claro que é».
«Senhor», disse ela, «é coisa que eu até
Poderia corrigir nuns bons três dias,
Se me tratares a bem, com cortesias.

Mas já que falas tanto da nobreza
Que vem, e desde há muito, da riqueza,
E que, por isso, deves ser gentil,
Tal arrogância não vale um ceitil.
É ver o que se mostra virtuoso,
Em público, em privado, o que é zeloso
Em ser gentil em tudo o que faz;
É esse o mais gentil e o mais capaz.
Devemos só a Cristo a nobreza,
E não aos nossos pais nem à riqueza.
Pois apesar de toda a rica herança,
A qual dará nobreza e abastança,
A vida virtuosa não se lega,
E não é a linhagem que a entrega,
A que homens faz gentis e a tal anima,
E os mandou seguir conforme ensina.

Bem pode o sábio vate de Florença,
Chamado Dante, dar esta sentença.
Olhai, a rima dele aqui a damos:
«É raro vir do homem, de seus ramos,
O seu valor, pois Deus, que em tudo é bom,
Requer que lhe peçamos esse dom» (27);
De nossos pais mais nada esperemos
Que não bens temporais, dos quais sofremos.

E bem o sabe toda a criatura,
Brotasse a grandeza da natura
E fosse em linha deste até àquele,
Em público ou privado era dele
Somente agir com plena equidade;
Não lhe cabia vício nem maldade.

Ateia fogo à casa mais escura
Que deste ponto ao Cáucaso se apura,
E fecha as suas portas, vai-te embora;
E sem descanso, o fogo que lá mora
A vinte mil que o vejam luzirá;
E mais por natureza arderá
Até morrer de fome, em verdade.

Contos de Cantuária
créditos: E-Primatur

E por aqui se vê que a dignidade
Não se une à possessão mais abundante,
Que os homens não se portam consoante
O fogo, tal qual manda a natureza.
Pois não é raro ver-se na nobreza
O filho de um senhor em má conduta;
E quem a si de berço se reputa,
De nobre e virtuosa ascendência,
Quem se acha de gentil proveniência
Mas não se dá a hábitos honrados
Nem segue os seus gentis antepassados,
Gentil não é, embora duque ou conde,
Que em actos de vilão um tal se esconde.
Nobreza vem de actos, de bom nome,
Dos teus antepassados de renome.
Não nasce de quem sejas, da natura.
Foi Deus quem te fez nobre, ó criatura!
Assim nobreza vera vem da graça;
Não vem da tua herança, nem da raça.

Pensemos, como diz Valério, Públio,
No nobre Hostílio, de seu nome Túlio,
Que sendo pobre veio ao privilégio.
É Séneca quem o diz, e tão egrégio,
Boécio, que o confirma com clareza,
Que é nobre quem pratica a nobreza.
Assim, querido esposo, em conclusão:
Os meus antepassados rudes são,
Mas Deus me dê a graça de viver
Com toda a dignidade que há num ser.
Assim serei eu nobre, sem pecados,
Vivendo sempre a vida dos honrados.

Censuras-me o ser pobre, e se o for?
Se aquele em quem eu creio, que é Senhor,
Optou por uma vida de pobreza.
E toda a gente entende de certeza
Que o cristo, o rei dos céus, não escolhesse
Um modo imoral de que vivesse.
Honesta é a pobreza, certamente;
É Séneca quem o diz, e sábia gente.
Quem quer que se console na pobreza
Pra mim é rico, mesmo na nudeza.
É pobre o que cobiça, quer obter
Aquilo que não está no seu poder;
Mas o que nada tem, nem tem apego,
É rico, passe embora por labrego.
Se canta, o pobre tem razões pra tal;
Que o diga alegremente Juvenal:
«O pobre folga e canta e vai sozinho,
Sem medo de ladrões no seu caminho.»
Ser pobre é um bem, se bem que odioso,
E impele, creio eu, o industrioso;
Também promove muito a sapiência
Naquele que se prova na paciência.
Pobreza, muito embora miserável,
É uma posse, e isso é inegável.
O homem, quando está por baixo, obtém
Compreensão de Deus, de si também.
Qual lupa é a pobreza, pela qual
Se vêem dos amigos o real.
Assim, não te lesei, tenho a certeza,
Não me censures tu, pois, a pobreza.

Mas de ser velha ainda me censuras;
Decerto não preciso de escrituras
Que afirmem que o carácter virtuoso
Ensina a respeitar qualquer idoso
E a chamar-lhe pai, e assim honrá-lo;
Em muitos livros podes encontrá-lo.

E dizes, além disso, que sou feia,
Então não temas cornos, que ideia!,
Palavra de honra, nojo e idade
São grandes guardiães da castidade.
Ainda assim, sabendo o que te excite,
Terás quem te sacie esse apetite.

«Das duas uma», disse, «é só escolher:
Ou tens-me feia e velha até morrer,
E ser-te-ei fiel e dedicada,
Sem nunca te ofender no mais em nada,
Ou antes bela e jovem, arriscando-te
Com isso à multidão importunando-te
Por minha causa à porta do teu lar,
Ou se não for ali, noutro lugar.
Escolhe destas a que mais te inspira».

O cavaleiro pensa e suspira,
E concluiu de forma mais concreta:
«Senhora, meu amor, mulher dilecta,
Coloco-me ao teu bom discernimento;
A escolha a ti confio de momento,
O que for mais honroso para os dois.
E se não for do agrado de ambos, pois
Se for do teu agrado, a mim me agrada.»

«Então», disse ela, «já que não há nada
Que não me faças, estás ao meu dispor?»

«Esposa, sim», disse ele, «por favor».
«Um beijo», tornou-lhe ela, «de quem faz
As pazes, e, olha, hei-de ser capaz
Dos dois, ou seja, ser esbelta e boa.
Que Deus me leve, vá co’a macacoa
Se não te for esposa verdadeira
Igual à que aqui Deus criou primeira.
E se ao amanhecer não for eu bela
Qual dama, imperatriz, rainha, aquela
Que de este a oeste mais houver de o ser,
Dispõe da minha vida a teu prazer.
Afasta a cortina, vê quem sou».

E quando o cavaleiro contemplou
Como era bela e jovem como o dia,
Abraça-a num arroubo de alegria.
Em gozo mergulhou o coração.
Mil vezes a beijou, e, sem excepção,
Em tudo lhe obedecia, ela, em tudo
O que lhe desse gozo sobretudo.

E em gozo assim viveram, sem maçadas;
Sejamos dons de Cristo, enviadas
A esposos mansos, jovens e lascivos;
Que aqui duremos mais, se já não vivos;
E a Cristo mais lhe peço, de encurtar
As vidas aos que teimam em mandar;
E a velhos e a sovinas miseráveis
Que Deus lhes traga as pragas incuráveis!

Aqui termina a Mulher de Bath o seu conto.

Notas

(14) Alusão às «tribulações na carne» e à «autoridade» que marido e mulher têm sobre o corpo do cônjuge postuladas por Paulo na sua primeira epístola aos Coríntios (7: 4 e 28).

(15) Um costume peculiar em Dunmow, no condado de Essex, ditava que um lado ou uma manta de toucinho fumado fosse dado ao casal que estivesse em condições de provar ausência de querelas no último ano de casados. Alguns dos felizes contemplados podem ser encontrados em Rictor Norton, Early Eighteenth-Century Newspaper Reports: A Sourcebook, «The Dunmowe Flitch of Bacon».

(16) Fogo grego (ou greguês) é uma mistura altamente inflamável, uma arma bélica especialmente nefasta usada pelos bizantinos.

(17) Alusão a Egnatius Metellius, contemporâneo de Rómulo, que terá assassinado a mulher à cacetada por beber vinho, segundo a narrativa do escritor romano Valerius Maximus (séc. i) em Factorum dictorumque memorabilium liber («Feitos e máximas memoráveis») VI.3.9.

(18) São Judoc, um nobre bretão do século vii, que, embora considerado santo, nunca foi canonizado.

(19) Alusão ao artífice judeu responsável pelo túmulo de Dario. 261

(20) Eufemismo para vulva. (Do latim por causa, visto que.) A familiaridade vocálica em con, provavelmente transmitida por via do francês (usada, aliás, em Rabelais), é a responsável pelo trocadilho.

(21) Caio Sulpício Galo era um general romano que abandonou a mulher porque a vira certo dia a olhar para a rua com a cabeça destapada. A história, tal como a seguinte, é contada por Valerius Maximus em Factorum dictorumque memorabilius liber VI.3.10, escrito no primeiro século a. C.

(22) Valerius, autor de Dissuasio ad Rufinum e Teofrasto, autor do Livro de Ouro do Casamento, assim como os seguintes, Jerónimo (Contra Joviniano) e Tertuliano, são acérrimos objectores do casamento. A desconhecida Crísipo é mencionada por Jerónimo. «A que era em Argenteuil sacerdotisa» é Heloísa, amante de Abelardo. Trótula de Salerno, médica italiana do século onze, é habitualmente referenciada como a primeira ginecologista do mundo.

(23) Jankyn terá reunido num tomo uma colecção de histórias e patrística sobre o tópico esposas retorcidas, englobando nele uma série de autores que, em diferentes momentos, tomaram posição contra o casamento.

(24) A mulher de Bath alude à fábula de Esopo em que, confrontado com uma pintura de um homem matando um leão, o leão sugere que o resultado teria sido diferente, fosse este a pintá-lo.

(25) Os pares Sansão e Dalila e Hércules e Dejanira serão novamente mencio- nados no «Conto do Monge». As referências seguintes são a Xantipa, a mulher de mau génio de Sócrates; Pasífae, esposa do rei Minos e mãe do Minotauro; Clitemnestra, que matou o seu marido, Agamémnon; Erifila, responsável pela morte do seu esposo, Anfiarau, adivinho da corte de Argos; Lívia, amante de Lúcio Élio Sejano, prefeito da guarda pretoriana, e Lúcia, mulher do poeta romano Lucrécio.

(26) Chaucer pode ter invocado Latumius em vez do nome Pacuvius, dono de uma árvore onde se enforcaram as suas três esposas. Em De oratore, II xix, de Cícero, conta-se a sua história, e como terá ido chorar-se a Arrius, o qual lhe terá pedido uma estaca que pudesse plantar no seu jardim em busca de resultados semelhantes.

(27) Cf. Dante Alighieri, A Divina Comédia (Purgatório, 7.121-23): «Rade volte risurge per li rami / l’umana probitate; e questo vole / chei che la dà, perché da lui si chiami.»