CAPÍTULO II — FERRAGUS

A profissão de espião é uma coisa maravilhosa quando é exercida por conta própria e no interesse de uma paixão. Não é fruir das satisfações do malandro continuando a ser um homem honrado? Mas é preciso sujeitar-se a ferver de irritação, a urrar de impaciência, a congelar os pés na lama, a gelar e a abrasar, a engolir falsas esperanças. É preciso ir, com fé num indício, até um destino desconhecido; fracassar, barafustar, inventar de repente queixumes, poesias; vociferar imbecilmente diante de um transeunte inofensivo que nos observa; além disso, chocar com o mulherio e derramar os cestos de maçãs delas, correr, descansar, ficar diante de uma janela, fazer mil conjecturas… É a caça, a caça em Paris, a caça com todos os seus incidentes, mas sem os cães, a espingarda e o «busca!». Só a vida dos aventureiros é comparável a estas cenas. Além disso, é necessário ter um coração inchado de amor ou de vingança para embrenhar-se em Paris, como um tigre que quer saltar sobre a presa, e para tirar proveito de todos os recantos da cidade ou de um bairro, adicionando-lhes mais uma utilidade àquelas em que já são férteis. Então, não é preciso ter um espírito complexo? Não é viver mil paixões e mil sentimentos ao mesmo tempo?

É Desta Que Leio Isto: Em abril recebemos Richard Zimler

Richard Zimler junta-se ao É Desta Que Leio Isto no próximo encontro, marcado para dia 20 de abril, pelas 21h.

O livro escolhido para leitura é "A Aldeia das Almas Desaparecidas I - A floresta do avesso", o primeiro volume da mais recente saga do escritor — e um reencontro com a família Zarco.

Nascido em 1956 em Roslyn Heights, subúrbio de Nova Iorque, Zimler escolheu o Porto como novo lar em 1990, onde lecionou na Escola Superior de Jornalismo e na Universidade do Porto durante 16 anos. É onde ainda mora, tendo obtido a nacionalidade portuguesa em 2002.

Foi a partir da Invicta que iniciou uma carreira que já conta com 12 romances publicados, o último dos quais dividido em duas partes: "A Aldeia das Almas Desaparecidas II - Aquilo que procuramos está sempre à nossa procura", acabado de lançar, fecha o díptico iniciado com o volume I.

Zimler conta com uma série de best-sellers bem recebidos tanto pela crítica e como pelo público, como "O Último Cabalista de Lisboa", "O Evangelho segundo Lázaro" ou "Anagramas de Varsóvia".

Quanto a "A Aldeia das Almas Desaparecidas I — A floresta do avesso" é um regresso de Zimler aos Zarco, família de judeus sefarditas cuja saga atravessa vários séculos.

Para se inscrever no encontro basta preencher o formulário que se encontra neste link. No dia do encontro receberá um e-mail com todas as instruções para se juntar à conversa.

Para além dos encontros mensais para discussão de obras literárias, o clube conta com um grupo no Facebook, com mais de 2500 membros, que visa fomentar a troca de ideias à volta dos livros, dos seus autores e da escrita e histórias que nos apaixonam.

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Auguste de Maulincour precipitou-se nesta ardente existência com amor, porque estava preparado para todos os infortúnios e todas as alegrias. Dissimulado, ia por Paris e vigiava todas as esquinas da Rue Pagevin ou da Rue des Vieux-Augustins. Corria como um caçador da Rue de Ménars para a Rue Soly, e da Rue Soly para a Rue de Ménars, sem saber se haveria vingança ou prémio que castigasse ou recompensasse tantas preocupações, diligências e estratagemas! E, todavia, ainda não chegara àquele frenesi que dá a volta ao estômago e faz transpirar; deambulava com esperança, ponderando que a senhora Jules não se arriscaria durante os primeiros dias a voltar ali onde fora surpreendida. De igual modo, consagrara aqueles primeiros dias a inteirar-se de todos os segredos da rua. Principiante naquele ofício, não se atrevia a inquirir nem o porteiro nem o sapateiro do prédio ao qual a senhora Jules se deslocava, mas tencionava poder estabelecer um observatório no prédio situado em frente do misterioso apartamento. Estudava o terreno, queria conciliar a prudência com a impaciência, o amor com o sigilo.

Nos primeiros dias do mês de Março, em plenos esquemas que congeminava para forjar um resoluto ardil, ao abandonar o «teatro de operações» após uma daquelas constantes vigias que ainda não lhe tinham revelado nada, regressava por volta das quatro horas à sua residência – onde um assunto de serviço o solicitava – quando foi surpreendido na Rue Coquillière por uma daquelas fabulosas chuvadas que engrossam de repente os regatos e cujos pingos repicam ao caírem nas poças de água da via pública. Um peão em Paris é pura e simplesmente obrigado a parar e a refugiar-se numa loja ou num café, se estiver suficientemente abonado para pagar a hospitalidade forçada; ou, conforme a urgência, sob as portas largas das entradas dos prédios, asilo dos pobres e mal-afortunados. Como é que ainda nenhum dos nossos pintores tentou reproduzir a imagem de um enxame de parisienses amontoados durante uma borrasca sob a arcada de entrada do saguão de um prédio? Onde encontrar um quadro mais soberbo? Para começar, vê-se ali o peão sonhador ou filósofo que observa com deleite, ora os sulcos feitos pela chuva num enquadramento pardacento da atmosfera, espécie de entalhes comparáveis ao rebrilhar inconstante de filamentos de vidro, ora os redemoinhos de chuva prateada que o vento revoluteia num poalho cintilante por cima dos telhados, ora o escoar descompassado dos algerozes gorgolejantes, escumosos; enfim, uma miríade de fantásticas ninharias advertidas com prazer pelos andantes, apesar das vassouradas com que o guarda-portão os mimoseia. Depois, há o peão conversador que se lastima e cavaqueia com a porteira enquanto esta se apoia à sua vassoura como um soldado granadeiro se apoia à espingarda dele; o peão indigente incrivelmente grudado à parede, sem se preocupar com os seus andrajos acostumados aos atritos da rua; o peão erudito que avalia, soletra ou lê os cartazes sem os terminar; o peão zombeteiro que troça das pessoas às quais acontece algum infortúnio na rua, que se ri das mulheres enlameadas e faz caretas àqueles ou àquelas que estão às janelas; o peão taciturno que olha para todas as janelas de todos os andares; o peão industrioso, aprestado com uma bolsa ou munido de um embrulho, reduzindo a chuva a perdas e ganhos; o peão afável que surge como uma bomba, exclamando: «Ah! Que tempo este, meus senhores!» e que cumprimenta toda a gente. Por derradeiro, o verdadeiro burguês de Paris, homem de chapéu-de-chuva, especialista em aguaceiros – que prognosticou –, mas que saiu de casa apesar da advertência da esposa, e que se sentou na cadeira do porteiro. Cada membro daquela associação imprevista contempla o céu, segundo o seu temperamento, e parte saltaricando para não se enlamear, ou porque está apressado, ou porque os concidadãos caminharem contra ventos e marés, ou, porque sendo o saguão do prédio húmido e catarralmente mortal, é pior a emenda que o soneto, como diz o provérbio. Cada um tem os seus motivos. Só fica o peão cauteloso, homem que espreita alguma entreaberta azul por entre as nuvens apartadas para se meter ao caminho.

Então, o senhor de Maulincour abrigou-se com toda uma parentela de peões sob o túnel da entrada de um prédio vetusto, cujo saguão parecia a conduta de uma chaminé. Tinha ao longo das paredes estucadas, salitrosas e esverdeadas, tantas caleiras e algerozes e tantos andares nas quatro partes principais do edifício que dir-se-ia que eram as cascatazinhas de Saint-Cloud. A água jorrava de todos os lados; escumava, borbulhava, rumorejava; era negra, branca, azul, verde; gorgolhava, crescia debaixo da vassoura da porteira, uma desdentada senhora idosa, acostumada às chuvadas, parecendo louvá-las, e que empurrava para a rua uma miríade de detritos cujo peculiar inventário revelava a vida e os costumes dos locatários do prédio. Viam-se recortes de chita, folhas de chá, pétalas de flores artificiais, descoloridas, perdidas; cascas de legumes, papéis, pedaços de metal. A cada vassourada a senhora idosa desencobria a alma do regato, aquele rasto negro recortado sobre mosaicos pretos e brancos atrás do qual se obstinam os porteiros. O infeliz apaixonado observava aquele quadro, um dos melhores que a movimentada Paris oferece todos os dias, mas observava-o involuntariamente como um homem absorto nos seus pensamentos, quando ao erguer os olhos se encontrou cara a cara com um indivíduo que acabava de entrar.

Ferragus - Chefe dos Devoradores
Ferragus - Chefe dos Devoradores créditos: Guerra e Paz

Livro: "Ferragus - Chefe dos Devoradores"

Autora: Honoré de Balzac

Editora: Guerra e Paz

Tradução: Pedro Barata Duarte

Preço: € 14,40

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Era, a avaliar pelo aspecto, um mendigo, mas não era o mendigo de Paris, criação sem nome nas linguagens humanas; não, aquele homem constituía uma nova figura proporcionada fora de qualquer noção despertada pelo vocábulo «mendigo». O desconhecido não se identificava por aquela aparência mormente parisiense, que nos impressiona bastantes vezes nos desventurados que Charlet em certos momentos pintou com raro discernimento de observação: criaturas informes rojadas na lama, com a voz roufenha, com nariz avermelhado e bulboso, com bocas ferozes embora despovoadas de dentes; humilhadas e assustadoras, nas quais a inteligência profunda que lhes brilha nos olhos parece ser um contra-senso. Alguns daqueles vagabundos insolentes têm a pele marmorizada, gretada, de veias salientes; o rosto cheio de rugosidades; os cabelos escassos e sujos como os de uma peruca deitada fora, para o lixo. Cada um deles, alegre na sua degradação e degradado nos prazeres; cada um deles, assinalado pelas marcas da depravação, ostenta o seu silêncio como uma crítica; a sua postura denota tenebrosos pensamentos. Situados entre o crime e a esmola, já não têm escrúpulos e circulam prudentemente ao redor do cadafalso sem nele caírem, inocentes no âmago do vício e viciosos no âmago da sua inocência. Habitualmente fazem sorrir, mas dão sempre que pensar. Um caracteriza-nos a mesquinha civilização, inclui tudo: a honra da penitência, a pátria, a virtude; depois, é a maldade do crime vulgar e a artimanha de uma janota percentagem fixa. Outro é resignado, grande pantomineiro, mas estúpido. Todos têm veleidades de ordem e de trabalho, mas são rechaçados para a abjecção deles por uma sociedade que não quer certificar-se de quantos poetas, pessoas audaciosas e temperamentos geniais poderão existir entre os mendigos, aqueles boémios de Paris; povo soberanamente bondoso e soberanamente malvado como todas as multidões que sofreram; habituados a suportar dificuldades assombrosas e que uma força incisiva insiste em manter ao nível da lama. Todos têm um sonho, uma esperança, uma alegria: o jogo, a lotaria ou o vinho.

Não havia nada daquela inquietante existência no indivíduo encostado muito despreocupadamente à parede diante do senhor de Maulincour, tal qual uma excentricidade desenhada pela parte de trás de algum quadro virado ao contrário, por um artista talentoso no seu estúdio. Aquele homem alto e enxuto, cujo rosto lívido denunciava um pensamento profundo e reservado, secava a compaixão no coração dos curiosos através de uma postura repleta de ironia e por meio de um olhar sombrio que afirmavam a pretensão de tratar com eles de igual para igual. O seu aspecto era de um branco-sujo, e o seu crânio enrugado, desprovido de cabelos, tinha uma vaga semelhança com um bloco de granito. Algumas melenas lisas e grisalhas, amoldadas de cada um dos lados da cabeça, alongavam-se até à gola da sebenta casaca abotoada até ao pescoço. Parecia-se simultaneamente com Voltaire e com D. Quixote; era malicioso e melancólico, carregado de desprezo, de filosofia, mas meio alienado. Parecia que não tinha camisa. A barba era comprida. A iníqua gravata negra totalmente puída, dilacerada, permitia entrever um pescoço protuberante, muito sulcado e constituído por veias tão grossas como cordas. Por baixo de cada um dos olhos delineava-se, apisoada, uma enorme circunferência castanha. Aparentava ter no mínimo sessenta anos. As mãos eram brancas e limpas. Calçava umas botas cambadas e rotas. As calças azuis, remendadas em vários sítios, estavam descoradas por uma espécie de cotão que tornava a sua aparência ignóbil a quem o visse. Fosse porque as vestimentas molhadas exalassem um odor fétido, fosse porque em condições normais tivesse aquele cheiro a miséria que têm os tugúrios parisienses – aroma fétido e rançoso difícil de imaginar, tal como as repartições, as sacristias e os hospícios têm o deles –, os circundantes daquele homem abandonaram as suas posições e deixaram-no sozinho. Ele fitou-os, depois transferiu para o oficial o olhar calmo e sem expressão, o tão célebre olhar do senhor de Talleyrand, mirada baça e sem calor, espécie de véu impenetrável sob o qual um carácter sólido esconde insondáveis sentimentos e os mais exactos cálculos sobre os homens, as coisas e os acontecimentos. Nenhum franzimento lhe percorreu o rosto. A boca e a face permaneceram imperturbáveis, mas os seus olhos baixaram num movimento de nobre e quase trágica lentidão. Enfim, houve todo um drama no movimento das pálpebras enrugadas.

A aparência daquela estóica figura despertou no senhor de Maulincour um daqueles confusos devaneios que começam por uma vulgar pergunta e acabam por abranger todo um mundo de reflexões. O temporal acabara. O senhor de Maulincour já só viu a aba da casaca daquele sujeito a roçar o umbral da arcada; mas, ao deixar aquele sítio para se ir embora, encontrou a seus pés uma carta que acabava de cair e percebeu que pertencia àquele estranho, ao vê-lo meter no bolso um lenço que acabava de utilizar. O oficial, que apanhou a carta para lha entregar, leu inadvertidamente o endereço.