I
A maioria das coisas está sujeita a partir-se, incluindo os corações.
As lições de vida não se traduzem em sabedoria, mas em cicatrizes e calos.
— Wallace Stegner, The Spectator Bird
Reduzir: aquecer lenta e gradualmente para dar consistência.
Em culinária, quando falamos em reduzir, referimo-nos a dar consistência a alguma coisa, sem pressas. Por exemplo, podemos fazê-lo com ovos, acrescentando um líquido quente em pequenas quantidades. A ideia é ir aumentando a temperatura sem deixar os ovos coalhar. O resultado é um creme que pode ser usado como molho de uma sobremesa ou incorporado numa sobremesa complexa.
Eis algo interessante: a consistência do produto acabado nada tem a ver com o tipo de líquido usado para o aquecer. Quanto mais ovos se utilizarem, mais espesso e rico será o produto final.
Ou, por outras palavras, é a substância que temos ao começar que determina o resultado.
CRÈME PATISSERIE
2 chávenas de leite gordo
6 gemas de ovos à temperatura ambiente 150 g de açúcar
50 g de amido de milho
1 colher de chá de baunilha
Leve o leite a levantar fervura numa caçarola de material não reativo. Numa tigela de aço inoxidável, bata as gemas, o açúcar e o amido de milho. Engrosse a mistura com o leite. Volte a aquecer a mistura de leite e gemas, sem nunca deixar de mexer. Quando começar a ficar espessa, mexa mais rapidamente até ferver e depois retire do lume. Acrescente a baunilha e deite a mistura numa tigela de aço inoxidável. Polvilhe com um pouco de açúcar e aplique película aderente diretamente por cima do creme. Coloque no frigorífico e deixe arrefecer antes de servir. Pode ser usado como recheio de tartes de fruta, mil-folhas, profiteroles, éclairs, etc.
AMELIA
Fevereiro de 2007
Nunca tinha ido de férias durante toda a minha vida. Nunca saí sequer do New Hampshire, tirando aquela vez em que fui contigo e com a mãe ao Nebraska… mas até tu tens de admitir que estar sentada num quarto de hospital durante três dias, a ver desenhos animados muito antigos do Tom e Jerry enquanto te faziam exames no Shriners, não era nada parecido com uma ida à praia ou ao Grand Canyon. Por isso, podes imaginar a minha excitação quando descobri que a nossa família estava a pensar ir ao Disney World. Iríamos durante as férias escolares, em fevereiro, e ficaríamos num hotel que tinha um monocarril a passar mesmo pelo meio.
A mãe começou a fazer uma lista das atrações em que podíamos andar: Small World, Dumbo, o Elefante Voador, o Voo de Peter Pan.
— Isso é para bebés — queixei-me.
— São aquelas que são seguras — replicou ela.
— Space Mountain — sugeri.
— Piratas das Caraíbas — contrapôs a mãe.
— Fantástico — berrei. — Consigo ir de férias pela primeira vez na vida e nem sequer me vou divertir!
Saí intempestivamente da sala e fui para o nosso quarto e, embora já não estivesse lá em baixo, conseguia imaginar o que os nossos pais estavam a dizer: Lá está a Amelia armada outra vez em difícil.
É curioso, mas quando acontecem coisas destas (isto é, constantemente) não é a mãe que tenta pôr água na fervura. Está demasiado ocupada a certificar-se que estás bem e por isso é o pai que fica com essa tarefa. Ora aí está outra coisa de que tenho ciúmes: ele é o teu verdadeiro pai, mas só é meu padrasto. Não conheço o meu verdadeiro pai; ele e a minha mãe separaram-se ainda antes de eu nascer e ela jura que a sua ausência é o melhor presente que ele podia ter-me dado. Mas Sean adotou-me e comporta-se como se gostasse tanto de mim como de ti, embora eu tenha sempre aquele pensamento obscuro e insidioso a lembrar-me de que isso pode não ser verdade.
— Meel — disse ele ao entrar no meu quarto (é a única pessoa que deixo chamar-me assim; o nome faz-me lembrar aquelas lagartas que aparecem na farinha e a estragam, mas não quando é o pai a dizê-lo). — Eu sei que estás pronta para andar nas atrações para os mais crescidos, mas estamos a tentar fazer com que a Willow também se divirta.
Porque quando a Willow se diverte todos nós nos divertimos. Não precisou de dizer isto, mas ouvi na mesma.
— Só queremos ser uma família de férias — disse.
Hesitei.
— O carrossel das chávenas giratórias — ouvi-me dizer.
O pai disse que ia interceder por mim e, embora a mãe fosse completamente contra — e se tu batesses na parede de gesso da chávena? —, lá conseguiu convencê-la de que podíamos rodopiar em círculos contigo entalada entre nós, de maneira a não te magoares. A seguir, sorriu-me, tão orgulhoso por ter conseguido este acordo que não tive coragem de lhe dizer que não estava minimamente interessada no dito carrossel.
A razão para me ter lembrado disso foi porque, há uns anos, tinha visto na televisão um anúncio do Disney World. Mostrava a Sininho a flutuar como um mosquito através do Reino Mágico, sobre as cabeças dos alegres visitantes. Havia uma família que tinha duas filhas da mesma idade que nós e estavam todos a andar no carrossel das chávenas do Chapeleiro Louco. Não conseguia tirar os olhos delas: a filha mais velha até tinha cabelo castanho, como eu; e, se semicerrasse os olhos, o pai parecia-se imenso com o nosso. A família parecia tão feliz que fiquei com um nó no estômago só de a ver. Sabia que o mais provável era as pessoas do anúncio não serem sequer uma família verdadeira — que a mãe e o pai seriam provavelmente dois atores solteiros que tinham conhecido as supostas filhas nessa manhã ao chegarem ao local de filmagem do anúncio —, mas eu queria que fossem. Queria acreditar que riam e sorriam enquanto rodopiavam de forma descontrolada.
Peguem em dez desconhecidos, enfiem-nos numa sala e perguntem-lhes de qual de nós sentem mais pena — de ti ou de mim —, e todos sabemos quem irão escolher. É um bocadinho difícil não reparar nos teus aparelhos de gesso; nem no facto de teres o tamanho de uma criança de dois anos, apesar de teres cinco; nem no estranho requebrar das tuas ancas quando estás suficientemente bem para conseguires andar. Não estou a dizer que seja fácil para ti. Apenas que para mim é pior, porque, sempre que penso que a minha vida é uma porcaria, olho para ti e odeio-me ainda mais por ter pensado tal coisa.
Eis um instantâneo de como é a minha vida:
Amelia, não saltes na cama, ainda magoas a Willow.
Amelia, quantas vezes te disse para não deixares as meias no chão, porque a Willow pode tropeçar nelas?
Amelia, desliga a televisão (embora só estivesse a ver televisão há meia hora e tu estivesses a olhar para ela como um zombie há cinco horas seguidas).
Sei como isto me faz parecer egoísta, mas saber que uma coisa é verdade não impede que a sintamos. E posso ter só doze anos, mas acredita que é tempo suficiente para saber que a nossa família não é igual às outras, nem nunca será. Por exemplo: qual é a família que enche uma mala de viagem extra com ligaduras e aparelhos de gesso à prova de água, para prevenir qualquer eventualidade? Qual é a mãe que passa dias a pesquisar os hospitais que existem em Orlando?
Era o dia da partida e, enquanto o pai carregava o carro, nós as duas sentámo-nos à mesa da cozinha, a jogar à pedra, papel e tesoura.
— Vá — disse eu, e ambas fizemos tesoura.
Já devia saber; fazias sempre tesoura.
— Vá — voltei a dizer, e desta vez fiz pedra. — A pedra quebra a tesoura — disse, batendo com o punho cerrado em cima da tua mão.
— Cuidado — disse a mãe, embora estivesse virada para o outro lado
— Ganhei.
— Ganhas sempre.
Ri-me de ti.
— Isso é porque fazes sempre tesoura.
— O Leonardo da Vinci inventou a tesoura — disseste.
De uma maneira geral, eras um manancial de informações que mais ninguém sabia ou queria saber, porque estavas sempre a ler, a navegar na Internet ou a ouvir programas do Canal de História que me deixavam a dormir. As pessoas ficavam abismadas ao darem de caras com uma miúda de cinco anos que sabia que os autoclismos descarregavam em mi bemol, ou que a palavra mais antiga da língua inglesa é town, mas a mãe dizia que muitos miúdos com OI aprendiam a ler muito cedo e tinham capacidades verbais avançadas. Eu imaginava que fosse como um músculo: o teu cérebro era mais usado do que o resto do teu corpo, que estava sempre a soçobrar; não admirava que parecesses um Einstein em miniatura quando falavas.
— Será que tenho tudo? — perguntou a mãe, mas estava a falar consigo mesma. Pela enésima vez, verificou a sua lista. — A carta… — disse, e depois virou-se para mim. — Amelia, precisamos do bilhete do médico.
Era uma carta do doutor Rosenblad a dizer o óbvio: que tinhas OI, que eras tratada por ele no Hospital Pediátrico em caso de emergência, o que era bastante engraçado, uma vez que as tuas fraturas eram uma emergência atrás da outra. Estava no porta-luvas da carrinha, junto ao livrete e ao manual de instruções da Toyota, mais um mapa rasgado do Massachusetts, um recibo da Jiffy Lube e um bocado de pastilha elástica que perdera o invólucro e estava cheia de pelos. Eu tinha feito o inventário uma vez, enquanto a mãe estava a pagar a gasolina.
— Se está na carrinha, porque é que não podes tirá-la quando estivermos a ir para o aeroporto?
— Porque ainda me esqueço — disse a mãe ao mesmo tempo que o pai entrava.
— Está tudo pronto — anunciou ele. — O que dizes, Willow? Vamos visitar o Mickey?
Tu brindaste-o com um enorme sorriso, como se o Rato Mickey fosse a sério e não uma adolescente qualquer a usar uma grande cabeça de plástico para o seu trabalho de verão.
— O aniversário do Rato Mickey é no dia dezoito de novembro — proclamaste, enquanto ele te ajudava a sair da cadeira. — A Amelia ganhou-me ao pedra, papel e tesoura.
— Isso é porque fazes sempre tesoura — disse o pai.
A mãe franziu a testa, verificando a lista uma última vez.
— Sean, guardaste o Motrin?
— Dois frascos.
— E a máquina fotográfica?
— Bolas! Tirei-a para fora e deixei-a lá em cima na cómoda… — Virou-se para mim. — Querida, podes ir buscá-la enquanto ponho a Willow no carro?
Acenei com a cabeça e corri escadas acima. Quando desci, com a máquina na mão, a mãe estava sozinha na cozinha e girava lentamente em círculo, como se não soubesse o que fazer sem ti ao seu lado. Desligou as luzes e trancou a porta de entrada, e eu corri para a carrinha. Entreguei a máquina ao pai e apertei o cinto de segurança ao lado da tua cadeirinha, admitindo que, por mais piroso que fosse ter doze anos e sentir-me entusiasmada por ir ao Disney World, a verdade é que me sentia. Estava a pensar no sol, nas canções da Disney e nos monocarris, e completamente esquecida da carta do doutor Rosenblad.
O que significa que tudo o que aconteceu foi por minha culpa.
Nem sequer chegámos a andar nas estúpidas chávenas giratórias. Quando aterrámos e chegámos ao hotel, já era o final da tarde. Fomos até ao parque temático e tínhamos acabado de entrar na Main Street, EUA — com o castelo da Cinderela à vista —, quando fomos surpreendidos por uma tempestade perfeita. Disseste que estavas com fome e dirigimo-nos para uma gelataria à moda antiga. O pai pôs-se na fila, contigo pela mão, enquanto a mãe trazia guardanapos para a mesa onde eu já estava sentada.
— Olha! — disse eu, apontando para o Pateta que apertava a mão a uma criança pequena, que não parava de berrar.
No preciso momento em que a mãe deixou cair um guardanapo no chão e o pai te largou a mão para tirar a carteira, precipitaste-te para a janela, para veres o que te queria mostrar, e escorregaste no minúsculo quadrado de papel.
Todos vimos em câmara lenta a forma como as tuas pernas cederam simplesmente debaixo de ti e caíste com força de rabo no chão. Olhaste para nós e o branco dos teus olhos ficou azul, como sempre acontece quando sofres uma fratura.
Era quase como se as pessoas do Disney World estivessem à espera de que aquilo acontecesse. Assim que a mãe disse ao homem que servia o gelado que tinhas fraturado a perna, apareceram dois homens do centro médico com uma maca. Com a mãe a dar ordens, como sempre faz com médicos por perto, conseguiram pôr-te em cima da maca. Não estavas a chorar, mas a verdade é que raramente o fazias quando partias alguma coisa. Uma vez, eu tinha fraturado o dedo mindinho a jogar espirobol na escola e perdi a cabeça quando o vi ficar vermelho-vivo e inchado como um balão, mas tu nem sequer choraste daquela vez em que sofreste uma fratura exposta no braço.
— Não te dói? — sussurrei, enquanto levantavam a maca, que subitamente ganhou rodas.
Estavas a morder o lábio inferior e disseste que sim com a cabeça. Quando chegámos ao portão do Disney World, tínhamos uma ambulância à nossa espera. Olhei uma última vez para a Main Street, EUA, para o topo do cone metálico que albergava a Space Mountain, para as crianças que corriam lá para dentro em vez de estarem a sair, e depois entrei no carro que alguém tinha arranjado para que eu e o pai pudéssemos ir atrás de ti e da mãe até ao hospital.
Era estranho ir a um serviço de urgências diferente do habitual. No hospital da nossa área, toda a gente te conhecia e todos os médicos davam ouvidos àquilo que a mãe lhes dizia. Mas aqui ninguém lhe prestava atenção. Disseram que podia tratar-se não de uma, mas de duas fraturas femorais, e que isso podia significar hemorragia interna. A mãe entrou contigo na sala de exames para fazeres a radiografia, enquanto eu e o pai ficámos sentados em cadeiras de plástico verdes na sala de espera.
— Lamento, Meel — disse ele; limitei-me a encolher os ombros. — Talvez seja uma fratura simples e possamos voltar amanhã ao parque.
Um homem de fato preto no Disney World dissera-lhe que teríamos bilhetes de cortesia, o que quer que isso significasse, se quiséssemos voltar noutro dia.
Era sábado à noite e as pessoas que chegavam ao serviço de urgências eram muito mais interessantes do que o programa que estava a dar na televisão. Havia dois rapazes que pareciam ter idade suficiente para andar na faculdade, ambos a sangrar do mesmo sítio na testa e a rir de cada vez que olhavam um para o outro. Havia um velhote com calças de lantejoulas agarrado ao lado direito da barriga e uma rapariga que só falava espanhol e trazia ao colo dois bebés gémeos, que não paravam de chorar.
Subitamente, a mãe irrompeu pelas portas duplas à direita, com uma enfermeira a correr no seu encalço e ainda outra mulher de saia justa às risquinhas e sapatos vermelhos de salto alto.
— A carta — gritou. — Sean, o que fizeste à carta?
— Qual carta? — perguntou o pai, mas eu já sabia do que ela estava a falar e, de repente, pensei que era capaz de vomitar.
— Senhora O’Keefe, por favor — disse a mulher. — Vamos fazer isto num local mais reservado.
Ela tocou no braço da mãe e… bem, a única forma de descrever o que sucedeu é que a mãe se dobrou ao meio. Fomos levados para uma sala com um sofá vermelho muito gasto e uma mesinha oval com uma jarra de flores artificiais. Havia uma fotografia com dois pandas na parede e eu fiquei a olhar para ela, enquanto a mulher de saia justa — disse que se chamava Donna Roman e era do DCF, o Departamento de Crianças e Famílias — conversava com os nossos pais.
— O doutor Rice contactou-nos porque tem algumas reticências em relação às lesões sofridas pela Willow — disse ela. — A curvatura do braço e as radiografias indicam que esta não foi a sua primeira fratura, não é verdade?
— A Willow sofre de osteogénese imperfeita — respondeu o pai.
— Já lhe disse isso, mas ela não me deu ouvidos — disse a mãe.
— Sem uma declaração do médico, temos de investigar a situação mais a fundo. É esse o protocolo, para proteger as crianças…
— Eu quero proteger a minha filha — disse a mãe, numa voz afiada como uma lâmina. — E gostaria que me deixassem voltar lá para dentro, para fazer precisamente isso.
— O doutor Rice é especialista…
— Se fosse especialista, saberia que eu estava a dizer a verdade — ripostou a mãe.
— Pelo que sei, o doutor Rice está a tentar contactar o médico da sua filha — disse Donna Roman. — Mas, como é sábado à noite, está a ter dificuldade em fazê-lo. Por isso, enquanto isso não acontece, gostaria que assinassem as autorizações necessárias para podermos efetuar um exame completo à Willow, nomeadamente uma cintigrafia óssea e um exame neurológico, e entretanto podemos conversar um bocadinho.
— A última coisa de que a Willow precisa é de mais exames… — comentou a mãe.
— Escute, senhora Roman — interrompeu o pai. — Eu sou agente da polícia. Com certeza, não acredita que ia mentir-lhe…
— Já falei com a sua mulher, senhor O’Keefe, e também quero falar consigo… mas, primeiro, gostaria de falar com a irmã da Willow.
A minha boca abriu-se e fechou-se, mas não saiu nada. A mãe estava a olhar para mim como se estivesse a tentar comunicar por telepatia e eu preguei os olhos no chão até ver aqueles sapatos de salto alto vermelhos à minha frente.
— Deves ser a Amelia — disse a mulher, e eu acenei afirmativamente. — Porque é que não vamos dar um passeio?
Quando íamos a sair, chegou um polícia que parecia o pai quando vai para o trabalho.
— Separe-os — disse Donna Roman, ao que ele respondeu com um aceno de cabeça.
A seguir, ela levou-me até à máquina de venda automática, ao fundo do corredor.
— O que queres comer? Eu sou doida por chocolates, mas talvez tu sejas mais adepta de batatas fritas, não?
Era muito mais simpática para mim quando os nossos pais não estavam sentados por perto. Apontei imediatamente para um Snickers, pensando que o melhor era aproveitar enquanto podia.
— Suponho que estas não sejam exatamente as férias de que estavas à espera, não é? — disse ela, e eu abanei a cabeça. — Isto já alguma vez tinha acontecido à Willow?
— Sim. Ela parte os ossos muitas vezes.
— Como?
Para alguém que devia ser inteligente, esta mulher não tinha ar disso. Como é que as pessoas partem os ossos?
— Bem, quando cai. Ou alguma coisa lhe bate.
— Alguma coisa lhe bate? — repetiu Donna Roman. — Ou queres dizer alguém?
Certa vez, no infantário, um miúdo tinha esbarrado contigo no recreio. Eras perita em esquivares-te, mas nesse dia não foste suficientemente rápida.
— Bem, às vezes isso também acontece — respondi.
— Quem estava com a Willow quando ela se magoou desta vez, Amelia?
Pensei na bancada da gelataria e no pai, contigo pela mão.
— O meu pai.
A boca dela cerrou-se numa linha fina. Introduziu moedas noutra máquina e tirou uma garrafa de água. Desenroscou a tampa. Queria que ela ma oferecesse, mas tive vergonha de pedir.
— Ele estava nervoso?
Pensei no rosto do pai enquanto seguíamos a toda a velocidade em direção ao hospital atrás da ambulância. Nos seus punhos cerrados em cima das coxas enquanto aguardávamos notícias da tua fratura mais recente.
— Sim, estava bastante nervoso.
— Achas que ele fez isto por estar zangado com a Willow?
— Fez o quê?
Donna Roman ajoelhou-se de maneira a olhar-me nos olhos.
— Amelia, podes contar-me o que aconteceu realmente. Posso garantir que ele não te magoa.
De repente, percebi o que ela pensava que eu queria dizer.
— O meu pai não estava zangado com a Willow. Ele não lhe bateu. Foi um acidente!
— Acidentes como esse não têm de acontecer.
— Não, não está a perceber! É por causa da Willow…
— Não há nada que as crianças possam fazer que justifique maus-tratos — murmurou Donna Roman muito baixinho, mas eu consegui ouvi-la muito bem.
Entretanto, ela já se encaminhava de volta à sala onde os nossos pais se encontravam e, embora eu gritasse para tentar que me desse ouvidos, ela não me ligou nenhuma.
— Senhor e senhora O’Keefe — disse —, vamos pôr as vossas filhas sob proteção legal.
— Porque é que não vamos até à esquadra para conversar? — estava o polícia a dizer ao pai.
A mãe abraçou-me.
— Proteção legal? O que significa isso?
Com uma mão firme e a ajuda do agente, Donna Roman tentou afastá-la de mim.
— Vamos apenas manter as crianças em segurança até conseguirmos esclarecer tudo. A Willow vai passar a noite aqui. — E começou a tentar levar-me para fora da sala, mas eu agarrei-me à ombreira da porta.
— Amelia! — exclamou a mãe, em pânico. — O que é que disseste?
— Tentei dizer-lhe a verdade!
— Para onde leva a minha filha?
— Mãe! — guinchei, tentando alcançá-la.
— Anda, querida — disse Donna Roman, e puxou-me pelas mãos até eu ter de largar a ombreira e ser arrastada para fora do hospital a espernear e aos gritos.
Fiz isto durante cinco minutos seguidos até ficar completamente entorpecida. Até compreender porque não choravas, embora te doesse: há algumas dores que não se conseguem traduzir em voz alta.
Já tinha visto e ouvido as palavras lar de acolhimento em livros e programas de televisão. Pensava que fossem para órfãos e crianças de bairros degradados, miúdos cujos pais eram traficantes de droga… e não para meninas como eu, que viviam em belas casas, recebiam imensos presentes de Natal e nunca iam para a cama com fome. Mas acontece que a senhora Ward, que dirigia aquele lar de acolhimento temporário, podia ter sido uma mãe como as outras. Suponho que já o tinha sido, a julgar pelas fotografias que cobriam todas as superfícies, como se fossem papel de parede. Recebeu-nos à porta, de roupão de banho vermelho e chinelos que pareciam porquinhos cor-de-rosa.
— Deves ser a Amelia — disse, e abriu a porta um pouco mais.
Eu estava à espera de um bando de crianças, mas afinal era a única que ia ficar com a senhora Ward. Ela levou-me para a cozinha, que cheirava a detergente da louça e a massa cozida. Pôs um copo de leite e um monte de Oreos à minha frente.
— Provavelmente, estás a morrer de fome — disse ela.
Embora fosse verdade, abanei a cabeça. Não queria nada dela; daria a sensação de que estava a ceder.
O meu quarto tinha uma cómoda, uma cama pequena e um edredão com cerejas estampadas. Havia uma televisão e um comando. Os nossos pais nunca me deixariam ter uma televisão no quarto; a mãe dizia que era a raiz de todo o mal. Disse isso à senhora Ward e ela riu-se.
— Talvez seja verdade — disse —, mas também é verdade que, por vezes, Os Simpsons são o melhor remédio.
Abriu uma gaveta e tirou de lá uma toalha limpa e uma camisa de dormir dois tamanhos acima do meu. Perguntei-me de onde teria vindo. Perguntei-me quanto tempo a última rapariga que a usara teria dormido naquela cama.
— Estou mesmo ao fundo do corredor, se precisares de mim — disse a senhora Ward. — Precisas de mais alguma coisa?
Da mãe.
Do pai.
De ti.
Da nossa casa.
— Quanto tempo… — consegui articular, as primeiras palavras que dizia em voz alta naquela casa. — Quanto tempo vou ter de ficar aqui?
A senhora Ward sorriu tristemente.
— Não sei dizer, Amelia.
— Os meus pais… também estão num lar de acolhimento? Ela hesitou.
— Algo do género.
— Quero ver a Willow.
— Amanhã, logo de manhã, vamos ao hospital. Que me dizes? — perguntou a senhora Ward.
Acenei com a cabeça. Queria tanto acreditar nela… Com esta promessa nos braços, como se fosse o alce de peluche que tinha em casa, podia dormir toda a noite. Podia convencer-me de que tudo iria melhorar.
Deitei-me e tentei lembrar-me das informações inúteis que costumavas debitar antes de adormecermos, quando eu estava sempre a mandar-te calar: as rãs têm de fechar os olhos para engolir. Um lápis consegue desenhar uma linha com cinquenta e cinco quilómetros de comprimento. Cleveland, lida ao contrário, é DNA level C.
Começava a perceber porque é que andavas com esses factos estúpidos atrás, da mesma forma que as outras crianças andavam com as suas mantinhas: se os repetisse vezes sem conta, isso quase fazia sentir-me melhor. Só não sabia se era porque me ajudava a saber mais coisas, quando o resto da minha vida parecia ser um grande ponto de interrogação, ou porque me fazia lembrar de ti.
Continuava com fome, ou estava vazia, não sabia qual das duas coisas. Depois de a senhora Ward ter ido para o seu próprio quarto, saí da cama em bicos de pés, acendi a luz do corredor e desci até à cozinha. Aí, abri o frigorífico e deixei a luz e o frio envolverem os meus pés descalços. Olhei para as carnes frias, fechadas em embalagens de plástico; para o monte de maçãs e pêssegos num cesto; para as embalagens de sumo de laranja e leite alinhadas como soldados. Quando me pareceu ouvir um rangido lá em cima, agarrei em tudo o que consegui: um pão de forma, uma caixa com esparguete, um punhado daquelas Oreos. Voltei a correr para o meu quarto e fechei a porta, espalhando o meu tesouro nos lençóis à minha frente.
De início, foram só as Oreos, mas depois o meu estômago roncou e devorei o esparguete todo… com os dedos, porque não tinha garfo. Comi um bocado do pão, depois outro e mais outro, e quando dei por isso já só restava o invólucro de plástico. O que se passa comigo?, pensei, vendo o meu reflexo no espelho. Quem come um pão de forma inteiro? O meu exterior já era suficientemente horrível — cabelo castanho desinteressante que ficava todo frisado quando estava mau tempo, olhos demasiado afastados, aquele dente da frente torto, gordura suficiente para me sair um pneu do cós das calças de ganga —, mas o meu interior ainda era pior. Imaginava-o como um grande buraco negro, como aqueles que aprendemos na aula de ciências no ano passado, que suga tudo para o seu centro. Um vazio cheio de nada, segundo dissera a professora.
Tudo o que havia de bom e gentil em mim, tudo o que as pessoas imaginavam que eu era, tinha sido envenenado pela parte de mim que desejara, no mais recôndito do seu ser, ter uma família diferente. O meu verdadeiro eu era uma pessoa repelente que imaginava uma vida em que não tivesses nascido. O meu verdadeiro eu vira-te a ser enfiada numa ambulância e desejara, por uma fração de segundo, poder ficar para trás no Disney World. O meu verdadeiro eu era uma alma sem fundo, capaz de comer um pão de forma inteiro em dez minutos e ainda ter espaço para mais.
Odiava-me.
Não saberia explicar-te o que me fez ir à casa de banho contígua ao meu quarto — papel de parede salpicado de rosas, sabonetes com formas invulgares em pratinhos junto ao lavatório — e enfiar o dedo pela garganta abaixo. Talvez fosse por sentir aquela coisa tóxica a entrar na minha corrente sanguínea e quisesse expulsá-la. Talvez fosse uma forma de me castigar. Talvez fosse porque queria controlar uma parte de mim que estava descontrolada, para que tudo o resto entrasse na ordem. As ratazanas não conseguem vomitar, disseras-me em tempos, e isso veio-me então à cabeça. Com uma mão a segurar o cabelo, vomitei para a sanita até ficar corada, a transpirar e vazia, e aliviada por saber que, sim, podia fazer uma coisa bem, mesmo que me fizesse sentir pior do que antes. Com um nó no estômago e o gosto amargo da bílis ao fundo da garganta, sentia-me pessimamente, mas desta vez podia dar uma razão física para isso.
Fraca e vacilante, voltei aos tropeções para a cama emprestada e peguei no comando da televisão. Os meus olhos pareciam lixa e doía-me a garganta, mas não conseguia dormir. Em vez disso, fui mudando de canal em canal: programas de decoração, desenhos animados, talk shows e concursos de culinária. Foi no «Nick at Nite», quando o The Dick Van Dike Show já estava a dar há vinte e dois minutos, que surgiu o velho anúncio da Disney — como uma piada, uma provocação, um aviso. Senti-me como se tivesse levado um murro no estômago: lá estava a Sininho e as pessoas felizes; lá estava a família que podia ser a nossa no carrossel das chávenas giratórias.
E se os nossos pais nunca mais voltassem?
E se tu não melhorasses?
E se eu tivesse de ficar ali para sempre?
Quando comecei a chorar, enfiei o canto da almofada na boca para a senhora Ward não ouvir. Premi o botão do comando para tirar o som da televisão e fiquei a ver a família no Disney World a andar às voltas.
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