Muito bem, vamos a isto.

Patrick posicionou o telemóvel na horizontal e esperou que o foco automático encontrasse Maisie e Grant. Os miúdos pareciam franzinos, assim apertados um contra o outro; até mesmo Maisie, que tinha nove anos. Se a câmara adicionava cinco quilos (e Patrick passara tempo suficiente em frente das câmaras para saber que esse velho clichê era verdadeiro), então a dele estava irreparavelmente defeituosa. Maisie afastou o cabelo do rosto; seis semanas com ele em Palm Springs e já tinha o cabelo aclarado pelo sol do deserto. Grant, distraído, enfiou a língua no espaço onde antes havia um dente.

— Sentem-se direitos – encorajou Patrick, mas não era tanto a postura, e sim a fragilidade, que fazia com que a sobrinha e o sobrinho parecessem pequenos, os dois um feixe de nervos esticados, quase a rebentar. Sorriu quando a câmara os encontrou. Como exercício, qual fora o objetivo deste verão senão ajudá-los a encontrarem-se a si próprios? O dedo de Patrick pairou sobre o ecrã antes de carregar calmamente no botão de gravar.

— Contem-me qualquer coisa sobre a vossa mãe.

Maisie e Grant viraram-se para o lado de dentro e ambos tentaram persuadir o outro a falar. Patrick nunca tinha visto um caso tão debilitante de medo do palco em toda a sua carreira. As duas crianças negociaram em silêncio, quase telepaticamente, como os irmãos muito próximos conseguem por vezes fazer, e por fim Maisie, que era três anos mais velha, falou primeiro.

— Ela era alta.

Patrick espreitou de trás do telefone.

— Era alta? isso? As girafas são altas. A tua mãe era uma girafa?

— NÃO! – Ambos ficaram ofendidos com a sugestão.

— Não gritem comigo – protestou Patrick. – Vocês é que têm de começar por alguma coisa melhor do que a altura dela.

Grant decidiu tentar.

— Era forte. Uma vez, levantou o chofá para aspirar lá debaixo.

— CORTA! – Patrick parou de gravar.

É Desta Que Leio Isto: Em fevereiro recebemos João Luís Barreto Guimarães

Acabado de receber o Prémio Pessoa de 2022, o poeta, médico-cirurgião e tradutor João Luís Barreto Guimarães vem ao É Desta Que Leio Isto, o clube de leitura da MadreMedia. "Aberto Todos os Dias", recentemente lançado, e outras obras suas vão ser tema da nossa sessão de 23 de fevereiro.

Nascido no Porto, em 3 de junho de 1967, João Luís Barreto Guimarães é dono de uma carreira assinalável, tendo-se estreado com "Há Violinos na Tribo", em 1989, numa edição de autor.

Desde então, Barreto Guimarães conta com 12 livros de poesia já publicados, sendo que os primeiros sete foram reunidos em 2011, numa "Poesia Reunida", pela Quetzal. A sua obra mais recente, "Aberto Todos os Dias", foi lançada em janeiro deste ano pela mesma editora.

Escrito pela Quetzal como o seu "grande e auspicioso regresso", os poemas do livro "Aberto Todos os Dias" foram "escritos entre 2020 e 2022 no Porto, Leça da Palmeira, Venade, Torre da Medronheira e em algumas cidades dispersas pelo mapa da Europa". "Neste livro evocam-se os dias «do fechamento», mas também, finalmente, aquilo que está «aberto todos os dias» – aberto o livro, aberto o mundo –, aquilo que permanece vivo apesar das pandemias, do esquecimento ou da banalidade, das «coisas à espera de vez»", refere a nota editorial.

João Luís Barreto Guimarães é também médico-cirurgião e professor de Introdução à Poesia para estudantes de Medicina, no Instituto de Ciências Biomédicas Abel Salazar, da Universidade do Porto, razão pela qual foi entrevistado pelo SAPO24 em 2021.

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Claro que queria que Grant pensasse na mãe como uma pessoa forte – os tratamentos tinham roubado a Sara boa parte da resiliência que a definira até então – e estava inclusive disposto a ignorar a deficiência de fala do sobrinho, apesar de estarem a trabalhar para a corrigir nas horas de sossego ao final do dia, mas recusava-se a permitir que Sara sofresse a indignidade de partilhar o protagonismo do vídeo com um aspirador vertical Dyson.

— Vocês são péssimos a contar histórias.

Maisie agitou-se.

— Bom, o que queres que a gente diga?

— O que é que eu quero?... A ideia do vídeo foi vossa!

Grant abanou as pernas, frustrado, e bateu com os pés na mesinha baixa.

— Não me risques a mobília. Patrick estendeu o telefone a Maisie. Toma. Grava-me tu. Eu mostro-vos como se faz. Maisie abriu a boca para protestar mas Patrick cortou-lhe a palavra. – Tss tss tss.

Com relutância, Maisie pegou no telefone do tio e levantou-o para gravar.

— Mais alto – disse Patrick.

— O quê?

— Mais alto. Levanta-te.

Maisie levantou-se.

Mais alto! Patrick inclinou-se e ergueu os braços de Maisie. — Francamente, parece que queres que eu fique com quatro queixos. Regras do Tio Gay*! Regra número... em que número vamos? Ter atenção aos ângulos. Toda a gente tem um lado bom. Até as crianças, que deviam ser fotogénicas de todos os lados, mas não são. — Voltou a sentar-se na poltrona de cabedal mid-century e fez sinal a Maisie para segurar bem na câmara. – Esquece, estamos a desviar-nos do assunto. Vês o botão vermelho? É para gravar.

Maisie estava a perder a paciência, e o mau feitio que exibia quando se sentia pressionada começou a vir ao de cima.

— Podias dizer-me alguma coisa que eu não saiba.

— O verdadeiro nome da Stockard Channing é Susan.

Maisie baixou a câmara, aborrecida.

— Bom, não sabias disso, pois não? E agora sabes. Patrick levantou novamente os braços de Maisie para recuperar o seu ângulo. — Susan Stockard. Stockard era o apelido dela.

— Quem é a Chtockard Channing? – perguntou Grant, atrapalhado com o nome difícil de pronunciar.

— Oh, por amor de Deus. A Rizzo? – Patrick esperou, para ver se havia alguma reação. – Do filme Grease?

Grant encolheu os ombros.

— Não o vimos.

— O quê? Nunca viram o Grease? Quando eu era da vossa idade vi-o para cem vezes. Ui, a maneira como o John Travolta meneava as ancas... – Olhares de incompreensão. – Não faz mal. O Grease 2 tem uma mensagem mais progressista em termos de género. E, a bem da verdade, se querem ver o melhor da Olivia Newton-John se calhar devíamos começar por Xanadu.

— Tu dizes palavras sem sentido protestou Maisie.

Vocês podem achar que isto são conversas eruditas, mas estou apenas a apresentar factos. Bom, queres que te mostre como se faz ou não? Por favor. Começa a gravar.

Maisie acedeu, nem que fosse para despachar o assunto.

— Fala-nos sobre a nossa mãe.

Patrick fechou os olhos e conjurou uma imagem de Sara. Quando os abriu, fitou diretamente a lente da câmara.

— A nossa amizade começou na escuridão. A vossa mãe perguntou-me se eu queria ir ver a vista do terraço da nossa residência de estudantes e eu disse que sim. Apanhámos o elevador até ao nono piso e depois subimos um lanço de escadas bafientas e a porta corta-fogo fechou-se atrás de nós. A vossa mãe ia à frente. Tinha tendência para liderar. Eu segui-a, encolhido atrás das costas dela como se fôssemos uma dupla de detetives adolescentes prestes a desvendar algum aspeto macabro do nosso caso. Estávamos a suar, lembro-me disso, apesar de já ser a segunda semana de outubro. E eu devia estar a queixar-me, porque a vossa mãe me chamou o «mestre do queixume». O cúmulo dos eufemismos. Sabem o que é um eufemismo? – Patrick olhou para cada uma das crianças, e era evidente que não sabiam. – É uma maneira mais suave e indireta de dizer algo que, de outra forma, poderia magoar ou ser embaraçoso. — Estudou as expressões deles para ver se tinham percebido. – Estão os dois a olhar para mim como se vos faltassem duas azeitonas para um martíni completo. PIMBA! Aqui têm um eufemismo que significa não estar a perceber nada.

Grant franziu o rosto.

— Não gochto de azeitonas.

— Não interessa. Estou a ensinar-vos como é que se conta uma história. – Patrick apontou para a orelha para lhes indicar que prestassem atenção. – Então a porta lá em baixo tinha-se fechado e a de cima não abria e, por mais que tentássemos, não tínhamos como subir. Nem como descer. Demos por nós presos naquele lanço de escadas e ali ficámos horas, sem nada para fazer senão partilhar esqueletos. Ela perguntou-me se eu lhe ia contar o meu maior segredo, ou se ia esperar e ser um «gay de maio». A vossa mãe topou-me logo, desde o princípio.

— O que é um «gay de maio»? – Maisie estava perdida mas, há que o admitir, manteve a posição da câmara.

— É quando esperamos para sair do armário a meio do segundo semestre.

— Como é que se partilha um echqueleto?

— Os esqueletos são factos embaraçosos que queremos guardar para nós.

— Não são nada, são uma pessoa feita de ossos! – Grant estava nitidamente aborrecido.

— E ambas as versões são muito assustadoras! Sabem, contar uma história é criar um ritmo; estas interrupções constantes não ajudam nada. BOM! Afinal, a porta de cima não estava trancada, apenas perra, e por fim lá conseguimos sair para o telhado e vimo-nos perante um pôr do Sol extraordinário. Eu tinha a câmara comigo e tirei algumas fotografias da vossa mãe, resplandecente, banhada pela luz rosa. Disse-lhe que era linda e ela respondeu: «Não dirias o mesmo se me tivesses visto há dois narizes atrás.»

— A mamã tinha três narizes?

— Grant! O que é que eu disse sobre interrupções? – Patrick pigarreou. – Nessa noite, no terraço, ela disse-me que a vida ia ser fácil, lembro-me disso. Eu prometi-lhe o mesmo, mas ela olhou para mim como se eu fosse um inocente sem remédio. Explicou que a vida era diferente para as raparigas... mais dura. Mas disse-me que eu tinha talento. Que talvez até viesse a ser famoso um dia. Que eu tinha cabeça para isso.

— Como é que era a tua cabeça? – quis saber Maisie.

Sara quisera dizer grande, mas, para não se afastar da história, Patrick disse:

— É uma cabeça com um só nariz.

— E és famoso!

— Bom, a fama mede-se por uma escala móvel, mas a vossa mãe acertou em muitas coisas. O olhar de Patrick perdeu-se à distância, enquanto pensava no quão tragicamente Sara errara noutras. – Por fim, um segurança da universidade apareceu e mandou-nos descer. Se bem me lembro, acionámos um alarme. – Patrick fez uma pausa; ou talvez tivesse sido por causa do charro que estavam a fumar. – A nossa amizade começou na escuridão – repetiu, lembrando-se das escadas. – Mas a vossa mãe? Sempre foi a minha luz.

Maisie parou a gravação em silêncio e baixou o telefone. Havia realmente uma maneira certa e uma maneira errada de contar uma história, e a expressão dela dizia que queria saber tudo o que acontecera a seguir.

— Muito bem, TIG.

Patrick inclinou-se para a frente para reaver o telefone. Com um gesto, mandou-os aproximar-se de novo um do outro.

— Vamos lá tentar outra vez. – Imaginou-se como Cecil B. de Mille, com as crianças prontas para o seu grande plano. – Contem-me alguma coisa especial sobre a vossa mãe.

SEIS SEMANAS ANTES 

UM 

Às 08:38 da manhã a temperatura já rondava os trinta graus, a caminho dos quarenta – invulgar para o mês de maio, talvez, mas não propriamente inaudito. O céu do deserto estava limpo, de um azul cobalto vibrante que ninguém acreditaria ser real antes de passar tempo suficiente debaixo dele para perceber que não era um efeito especial de Hollywood. Patrick O’Hara estava no passeio em frente do pequeno aeroporto, perdido. As montanhas que rodeavam Palm Springs eram hercúleas; trabalhavam noite e dia para travar todo o tipo de características meteorológicas nuvens, chuva, humidade –, tudo exceto o vento, o que explicava os majestosos moinhos de vento que se erguiam como guardas do palácio à entrada do vale de Coachella. As palmeiras ondulavam suavemente sob a brisa mas não vergavam nem um bocadinho. Nesse momento, Patrick desejou possuir uma fração que fosse da força delas.

Um velho Chevrolet descapotável, azul como um ovo de pisco-de-peito-ruivo, passou lentamente por ele e abrandou antes da lomba de controlo de velocidade, o condutor a dar-se a esse cuidado acrescido para não raspar a base do carro baixo. Passou sobre a lomba com um solavanco delicado e depois prosseguiu a uma velocidade razoável e afastou-se do terminal em direção à saída do aeroporto, pela estrada ladeada de palmeiras dignas, como se estivesse a desfilar através de um postal antigo. Era uma coisa que Patrick adorava em Palm Springs, a intemporalidade da cidade. Os dias eram longos, e tão puros sob a luz do Sol que era impossível distinguir um do outro. quatro anos que ele estava enfiado na sua propriedade mid-century no deserto, a que comprara com o dinheiro da televisão (compensação generosa por um dos papéis principais em nove temporadas humilhantes de Os Vizinhos de Cima, mais os direitos de reposição, mais os direitos de streaming, mais a popularidade surpreendente da série em França), no bairro com o nome muito apropriado de Movie Colony, a sul de Tamarisk Road. Não fora sua intenção isolar-se do mundo tão completamente, mas a cidade convidava a isso. Nos tempos áureos dos estúdios, os atores sob contrato não podiam afastar-se mais do que cento e cinquenta quilómetros de Los Angeles, não fosse algum filme precisar deles de repente. Palm Springs encontrava-se exatamente nessa fronteira, cento e cinquenta quilómetros em linha reta; tornara-se um escape — o mais longe que os atores se atreviam a ir.

Quando se mudara para ali, Patrick convidara os amigos a visitá-lo, principalmente pessoas da indústria cinematográfica – excêntricos que colecionara ao longo de uma década e meia em Hollywood. Sara viera uma vez com os miúdos passar uma semana com ele, e tinham rido e chapinhado na piscina como se não tivesse passado tempo nenhum: ela troçara dele e da sua fama como só velhos amigos podem fazer. Depois, gradualmente, ele deixou de fazer convites. E as pessoas deixaram de aparecer. Sara tinha razões legítimas para isso, mas outros pareciam simplesmente ter esquecido que ele existia. Aqueles que observavam o fraco movimento de visitas na sua propriedade, como JED, o trisal gay que vivia na casa atrás da sua, chegavam a chamar-lhe eremita. John, Eduardo e Dwayne costumavam mostrar os seus rostos sorridentes sobre o muro que dividia as propriedades, com provocações amistosas (mas mordazes), como um trio de personagens animadas que partilhavam a mesma cama. A governanta de Patrick, Rosa, estava sempre a encorajá-lo a conhecer alguém.

– Senhor Patrick. Porque tem esta casa toda sozinho?

A resposta era complicada e ele evitava o assunto, pois sabia que se parecesse desanimado ela teria pena dele e lhe faria o seu ceviche preferido. Mas para Patrick a situação não era assim tão desesperada. Estava simplesmente... farto. Durante nove anos dera uma parte de si ao mundo, e não devia a ninguém aquilo que lhe restava.

Patrick puxou o boné de basebol mais para os olhos, enquanto um homem estacionava o seu Lexus numa zona de largada de passageiros, saía do carro sem desligar o motor e se despedia de um amigo ou colega de trabalho com um aperto de mão vigoroso. Patrick inclinou a cabeça num cumprimento quando este passou, e foi recompensado com uma pancada do saco de ténis Wilson para três raquetes quando o homem o pôs ao ombro. Patrick era invisível. E o anonimato, afinal, era fácil; já passara tempo suficiente desde que estivera sob as luzes da ribalta. Quanto ao resto, o truque era não abusar. Um disfarce tinha de ser vulgar. Chapéu e óculos de sol. Camisa azul-escura, não muito justa. (O físico atraía sempre olhares.) Mais do que isso e parecia que estava a tentar esconder-se, o que chamava as atenções. Um aceno de cabeça breve, olhar para o outro lado. Era quase sempre o suficiente.

Patrick pegou no telemóvel e mandou uma mensagem ao irmão, Greg. Estou a caminho.

Os telefonemas tinham começado pouco depois da meia-noite, mas ele deixara o telemóvel no silêncio. Acordara cedo e vira que tinha treze chamadas perdidas (nunca era um número bom) dos pais, e uma décima quarta de Greg; ninguém deixara uma mensagem mais longa do que «Liga-me», e Greg não deixara mensagem alguma. Patrick tivera uma discussão por causa disto com a mãe, anos antes, quando ela lhe ligara a uma hora imprópria para o informar de que o pai sofrera um AVC; de manhã, Patrick retribuíra a chamada.

— Onde estavas ontem à noite quando precisei de ti? – perguntara a mãe.

— Na cama, como a maior parte das pessoas.

— E o telefone não te acorda?

— Tenho-o programado para só tocar a partir das sete da manhã.

— E se houver uma emergência?

— Se houver uma emergência, lidarei muito melhor com ela depois de uma boa noite de sono.

Era uma lógica que parecia infalível a Patrick. E, quase como se fosse a prova disso mesmo, o «AVC» do pai revelara ser apenas um leve caso de paralisia de Bell.

Naquela noite, contudo, os telefonemas eram justificados. Depois de uma corajosa batalha de dois anos e meio, Sara partira tranquilamente. Um rugido sonoro ergueu-se e afastou-se no céu quando um avião acelerou e descolou da pista. Patrick sentiu a vibração do passeio, mas de resto estava entorpecido. Isto não podia estar a acontecer. Não uma segunda vez. Não depois de Joe. E a perda de Sara vinha acompanhada de sentimento de culpa. Prometera-lhe, quando se conheceram, que jamais a largaria. E depois a vida metera-se pelo meio. Ela foi para norte e casou com o irmão dele. Ele foi para oeste e encontrou a fama na televisão. E lentamente, com o passar do tempo, foi o que fez.

Largou-a.

Patrick olhou para a mala aos seus pés, quase surpreendido por a ver ali. Não tinha qualquer memória de a ter preparado. Ali estava ele, prestes a embarcar num avião pela primeira vez em anos, coisa que antes fazia constantemente. Até no avião privado da estação televisiva, uma ou duas vezes, quando era preciso o elenco viajar a Nova Iorque para aparecer no Good Morning America, ou, Deus nos valha, no The View. Agora estava nervoso, com o estômago sensível. Disse a si próprio que era tanto pela ocasião como pelo voo, não que fizesse alguma diferença. Patrick ajeitou os óculos escuros; virou-se e entrou no aeroporto, deixando as portas de vidro automáticas abrirem-se para ele e voltarem a fechar-se, refletindo as montanhas que deixava para trás.

Recolha de bagagem. Os olhos de Patrick passaram por Greg sem se deter, e já estavam no grupinho de assistentes de bordo que falavam em voz baixa quando se apercebeu de que era ele. Julgava que fosse o pai a vir buscá-lo a Hartford e por isso ficou surpreendido ao ver o irmão do outro lado do vidro. Greg parecia esgotado, magro; mesmo a quinze metros de distância, Patrick viu o sofrimento dele o irmão mais novo que parecia subitamente mais velho, como se tivesse atravessado algum portal bizarro e envelhecido uma década nos anos desde que o vira pela última vez, fossem lá quantos fossem.

Quando Greg o viu, a alça do saco de viagem de Patrick deslizou-lhe do ombro e ficou presa no cotovelo, o saco a centímetros do chão; ensaiou um aceno débil. Ficaram ali parados, dois irmãos, confusos, com um vidro a separá-los, como se Patrick pudesse começar aos murros no vidro e recriar o final do filme A Primeira Noite. Mas não o fez. Patrick sabia; vira o filme dezenas de vezes. Talvez fosse satisfatório no momento, mas esperavam-no as duras realidades da vida.

Patrick avançou para as portas automáticas, passou pelo aviso de «REENTRADA PROIBIDA» e dirigiu-se sem hesitar para o irmão mais novo, envolvendo-o num abraço apertado, com uma mão na nuca dele, os dedos enfiados no cabelo de Greg.

– Lamento muito – murmurou. Greg estava a tremer. Patrick apertou o irmão até ele parecer frouxo, esvaziado de emoção, pelo menos por um fugaz segundo. – Estou aqui.

Esperaram pela bagagem de Patrick em silêncio; um desfile de malas pretas que progredia a um ritmo de cortejo fúnebre pela passadeira rolante, como uma procissão de carros cheios de pessoas enlutadas. Dentro de poucos dias, eles próprios estariam num desses cortejos. Nenhum dos irmãos falou muito no caminho até ao parque de estacionamento, e Greg não disse nada enquanto procurava o bilhete do parque junto da máquina de pré-pagamento, exceto para dizer distraidamente às pessoas atrás deles que passassem (não se lembrava de que guardara o bilhete na carteira), nem quando se esqueceu do piso em que deixara o carro. Patrick manteve a calma e até pegou na mão do irmão quando este começou a girar como um animal, em círculos rápidos, quase em pânico.

— Calma, havemos de o encontrar – murmurou.

É ASSIM QUE SE FAZ! – A voz veio do outro lado de um pilar de betão, um idiota qualquer que quebrou o momento. Patrick ergueu a mão num aceno, por instinto, como se fosse a primeira vez que alguém se lembrava de lhe gritar aquela frase e não a milionésima primeira. É assim que se faz! era a frase que tornara a sua personagem popular na série da ABC, na segunda metade da temporada dois. Daí em diante, Patrick proferira-a fielmente pelo menos uma vez por episódio, e o público em estúdio — na sua maioria, pessoas do Midwest com roupas demasiado largas que não tinham conseguido lugar no público d’O Preço Certo perdia sempre a cabeça; o ator secundário, pelo menos durante algum tempo, a eclipsar em popularidade o protagonista. – É você, não é? O que é que lhe aconteceu?

A pergunta ecoou pelo parque de estacionamento. Os Vizinhos de Cima fora a última sitcom a definir a era da televisão; chegara a ter uma temporada especial, de três episódios, que passara depois do Super Bowl. O elenco estivera na capa da revista People. Até tinham recebido um Globo de Ouro, precisamente para Patrick. Agora, as pessoas viam televisão aos três minutos de cada vez, nos telemóveis, se é que viam alguma coisa. Na maior parte do tempo preferiam ver-se a si próprias, fazendo vídeos com filtros que suavizavam a tez ruborizada ou que lhes davam bigodes e narizes de gato.

— Sim, sou eu – disse Patrick calmamente.

— Eh, diga lá, então. Diga a sua frase.

— Esta não é a altura mais indicada.

— Vá lá! – insistiu o homem.

— Muito bem, já CHEGA! – Patrick largou a mala com rodinhas e deu três passos rápidos na direção do desconhecido, furioso o suficiente para lhe dar um soco. Foi Greg que o puxou, apercebendo-se de súbito de que estavam de mãos dadas. O homem abanou a cabeça e tirou as chaves do bolso.

–Estúpido.

Patrick acelerou o passo no sentido oposto, guiando Greg para longe antes que alguém se apercebesse da altercação. Não sabia onde o carro estava estacionado, mas a última coisa que queria era atrair uma multidão. Abriu a porta para as escadas com o e depois de ela se fechar parou, com as mãos nos joelhos, a recuperar o fôlego.

Um tipo com uma camisola da Universidade de Connecticut subiu as escadas rapidamente, dois degraus de cada vez, como se fosse uma corrida olímpica. Patrick desviou-se para a esquerda, para o deixar passar. Ouviu o homem subir mais dois lanços e depois continuou à escuta até o som de passos desaparecer por completo.

— Ela... ela simplesmente... – começou Greg.

— Eu sei. – Queria estar na segurança do carro antes de fazerem isto, mas se tinha de ser ali nas escadas, paciência. – A mãe disse-me.

— Há três semanas, disse-me que queria a música «Reelin’ in the Years» de Steely Dan tocada na cerimónia fúnebre e eu mandei-a estar calada. Não queria acreditar que o fim estava tão próximo. Mas ela sabia.

Patrick virou-se ligeiramente para que Greg não visse a sua dor.

— Ela sabia tudo. – Devia ter vindo mais cedo. Devia ter estado presente para se despedir. Mas convencera-se de que Sara já não era dele, e já não o era há muito tempo. Cada momento que passasse ao seu lado era um momento roubado a Greg ou aos miúdos.

Greg abanou a cabeça. Patrick concentrou-se na janela das escadas; alguém gravara umas iniciais com uma chave. Do outro lado, aviões aterravam e descolavam, luzes em formação que salpicavam o céu do entardecer.

— O médico disse que depois de... – Um carro contornou a esquina do outro lado da porta com os pneus a chiar. Greg olhou para todas as paredes de betão em bruto como se estivesse a reparar pela primeira vez nesta prisão. – Acho que não importa o que o médico disse. Eu estava lá, mas ela partiu antes que os miúdos conseguissem chegar. – Teve um acesso de vómitos e inclinou-se para a frente, com as mãos apoiadas nos joelhos. Patrick afastou a mala, aproximou-se, pegou no capuz do casaco de fato de treino do irmão para o segurar e fez uma careta.

— Anda cá – disse, depois de ver que Greg já não tinha mais nada no estômago para deitar fora. Ajudou o irmão a subir meio lanço de escadas até ao patamar seguinte, afastando-o da cena e, esperava ele, aproximando-os mais do carro. Arrastou a mala atrás de si, enojado ao pensar no que ela estaria a pisar, já com a certeza de que a queimaria e compraria uma mala nova assim que chegasse a casa.

Greg limpou a boca com as costas da mão e segurou-se à balaustrada.

— Como é que sobreviveste a isto? Com o Joe?

Patrick estacou abruptamente, como se tivesse sido apanhado numa mentira terrível. Apertou a cana do nariz (onde ainda conseguia sentir a cicatriz do acidente que lhe tinha levado o namorado) e inalou profundamente. Não, pensou. Não sobrevivi. Era sempre essa a sua primeira reação. Mas estava ali, não estava? Era ele que se via uma vez mais a enfrentar a perda. Apontou para o resto das escadas.

Guncle - As Regras do Tio
créditos: ASA

Livro: "Guncle - As Regras do Tio"

Autor: Steven Rowley

Editora: ASA

Publicação: 21 de fevereiro

Preço: € 17,01

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— Vamos procurar o carro lá em cima.

Percorreram os corredores no novo piso, depois de Patrick ter retirado as chaves a Greg, carregando no botão do comando de poucos em poucos metros, à espera de ouvir um apito ou avistar luzes a piscar. Subiram e desceram ao longo de quatro ou cinco filas de carros antes de um dos dois voltar a falar.

— O que estás a fazer aqui? – perguntou Patrick.

— Hã?

Patrick parou e olhou para o irmão. Porque é que ele não estava com os filhos?

— Greg.

Greg parou também e virou-se para ele, mas não respondeu.

— Pensei que era o pai que me vinha buscar.

— Sou toxicodependente.

A mudança de assunto súbita era quase cómica; Patrick teve de fazer um esforço para não se rir. Uma coisa era Greg recorrer ao humor como mecanismo para lidar com a dor, outra coisa era Patrick mostrar-se divertido. Assim, disse apenas:

— É aqui que vens encontrar-te com o teu traficante? – Olhou para o poste mais próximo, que dizia 4E. – Podemos comprar um saquinho de erva-gateira antes de ir para casa.

— Não é uma piada. – Greg sentou-se no para-choques de uma carrinha branca de passageiros, com cuidado para não fazer disparar o alarme.

— Não me estou a rir – disse Patrick. Um homem com o que lhe pareceu ser solas de sapateado percorreu o corredor atrás deles com passos rápidos. – Estou confuso.

— Qual é a confusão?

— Mas, o quê?... Heroína?

— O QUÊ? Não. Comprimidos.

— Comprimidos. Que tipo de comprimidos?

— Vicodin, oxicodona, fentanilo, tramadol. Acho que uma vez tomei comprimidos para emagrecer que encontrei na gaveta da secretária da minha assistente.

Patrick estava meio horrorizado, meio intrigado.

— E resultaram?

— O quê?

— Os comprimidos para emagrecer.

— Queres saber se fiquei pedrado?

— Não, se emagreceste. – Greg não respondeu e o silêncio arrastou-se, mas Patrick pensou: Ainda bem. Agora estava zangado, por cima de tudo o resto, e já não se sentia tão ansioso por o confortar. Na verdade, questionava agora o motivo para o irmão ter vomitado. – Como é que deixaste acontecer uma coisa dessas?

— Metade do país está viciado em comprimidos, não vês as notícias?

Não, Patrick não via as notícias. Nunca havia nada de bom nas notícias.

— Há quanto tempo?

Greg lançou um olhar ao irmão, aquele olhar que aprendera na faculdade de Direito e aperfeiçoara nos primeiros anos de advogado.

— Três anos, Patrick. Há quase três anos. Desde o diagnóstico. Desde que comecei a tentar chegar a sócio na firma. Não conseguia fazer tudo. Não conseguia... – Procurou as palavras para continuar.

— Ser o que toda a gente precisava que eu fosse.

Patrick encostou a testa à parte lateral da carrinha, absorvendo o frio do metal. A diferença de três horas no fuso horário significava que era já noite escura, embora ele estivesse ainda bem acordado.

— Estás pedrado agora?

Greg fitou-o com ar revoltado até Patrick desencostar a cabeça da carrinha.

— A mãe sabe?

Greg demorou um instante a responder.

— Ninguém sabe. És o primeiro a quem conto. Ouve, podemos ir a algum lado, por favor? Nem que seja... sei lá, ao McDonald’s?

— Porquê, a moca está a dar-te fome? – respondeu Patrick com sarcasmo, embora ele próprio não se lembrasse da última coisa que comera. Talvez um chocolate no avião.

Greg levantou-se e enfiou as mãos nos bolsos do casaco de fato de treino antes de olhar para os sapatos.

— Para podermos conversar. Ergueu os olhos para Patrick. Preciso que leves os miúdos.

— Está bem. O que eu puder fazer para ajudar. – A família ia precisar que ele fizesse uma série de coisas esta semana, tinha de estar à altura. – Que os leve onde?

— Que os leves.

— Não estou a per... O QUÊ? – Procurou no rosto de Greg algum sinal de que ele estava a brincar. – Oh, nem pensar.

— Patrick.

— Estás mesmo pedrado. Isso é absurdo. Estás a ser absurdo.

— Patrick!

— É obviamente ridículo. Há dois anos, recusei um convite para apresentar o prémio de Melhor Atriz Secundária em Série de Comédia nos Emmys. Queres saber porquê? Era um grande compromisso da minha parte. Não. Estás a pedir à pessoa errada.

— Há uma instituição. Em Rancho Mirage. Fica só a uns quinze quilómetros da tua casa. Normalmente têm lista de espera, mas liguei hoje de manhã e arranjam-me uma vaga. Circunstâncias especiais, porque um dos sócios principais da minha firma conhece alguém na direção.

— Então não sou a primeira pessoa a quem contas. – Patrick não sabia tudo sobre adições, mas sabia o bastante para começar a contabilizar as mentiras.

— Contei no trabalho. Teve de ser. – Greg suspirou. – Tenho de fazer isto agora.

Patrick pensou na época em que fumava cigarros, em parte para se manter magro para a televisão, e nas suas várias recaídas ao tentar deixar o tabaco, na altura em que a série estava a ser cancelada. E como lhe saberia bem um cigarro agora, perante estas notícias, este novo cancelamento.

— Mas achas que é mesmo a melhor altura?

Greg começou a tremer, determinado a decidir o assunto.

— Os miúdos vão precisar do pai, não da amostra de pai que tiveram nos últimos anos. Esta é a única altura.

Patrick sentiu a cabeça à roda ao pensar na logística; as paredes do parque de estacionamento pareciam aproximar-se, o chão e o teto prestes a tocarem-se. Os carros, e eles os dois, seriam esmagados e jogados fora, levados para o ferro-velho.

— Só trouxe dois pares de calças.

— Quero que os leves contigo para Palm Springs. A única forma de isto resultar, a única maneira de eu conseguir fazer isto, é se souber que eles estão perto. Eles são a minha força. São tudo o que eu...

— Chega. Para com isso. – Patrick não sabia se estava a falar dos tremores de Greg ou do seu pedido ridículo.

Um casal mais velho dirigiu-se para o Cadillac estacionado em frente deles, a mulher com o braço enfiado no do homem. Demoraram um tempo penosamente longo para entrar na viatura.

— Durante quanto tempo? – Patrick sabia muito bem que não devia sequer dar credibilidade à ideia com esta pergunta. Mas escapou-lhe.

— Noventa dias.

— NOVENTA DIAS! – As palavras ecoaram pelo parque, mais como uma pena de prisão do que um favor. Patrick sabia que não devia armar-se em vítima quando o irmão perdera a mulher e duas crianças tinham perdido a mãe. Mas ele também perdera alguém. — Estás completamente louco.

Greg desatou a chorar.

— Oh, meu Deus. Pronto. Vá lá... – Aproximou-se para confortar o irmão mas não conseguia decidir onde havia de pôr as mãos. — Tenho de te informar que sou alcoólico. – Não era, mas já não sabia que mais havia de dizer. Talvez pudesse internar-se na mesma instituição.

— Patrick. Bebes em ocasiões sociais.

— Vivo sozinho no deserto... que ocasiões sociais? – Noventa dias sentado num círculo a falar sobre os seus sentimentos enquanto se punha sóbrio parecia o inferno na Terra, mas era de certeza melhor do que cuidar de duas crianças, e talvez a instituição tivesse um bom chef e um massagista. Patrick levantou a chave do carro e carregou furiosamente no botão, à procura do carro, girando sobre si próprio com o braço no ar como um periscópio que acabou de romper a superfície da água. Raios te partam, Joe, pensou, como fazia muitas vezes em ocasiões de grande stress. Porque é que não ia eu a conduzir? Mas não ia. Estava no banco do passageiro, com o cinto de segurança posto, quando Joe fora atingido em cheio por um cabrão de um adolescente que andava a dar uma voltinha num carro roubado. Era preciso azar.

E depois, do nada, um bip bip. Ambos se viraram.

Finalmente, o carro. Podiam discutir este assunto mais tarde.

Notas:

* No original, Guncle. Uma contração de gay + uncle, intraduzível em Português. (N. do E.)