Capítulo 4
O primeiro ataque a sério de Shelly teve lugar quando ela tinha quase quinze anos. Foi um ataque dissimulado, o tipo de tática que os praticantes da discórdia depressa aprendem ser a forma mais eficaz de causar danos.
Um dia, em março de 1969, Shelly não apareceu em casa depois da escola. Embora já tivesse chegado atrasada antes, desta vez parecia diferente. Era mais tarde do que o habitual. Lara olhou para o relógio na sua cozinha imaculada. Tamborilou com os dedos na mesa.
Onde foste, Shelly?
O que andas a fazer?
Com quem estás?
Cada vez mais ansiosa, a madrasta de Shelly finalmente ligou para a escola, e o que ficou a saber deixou-a sem ar. Shelly não viera para casa porque fora levada para o centro de detenção juvenil em Vancouver. Shelly, a um mês de fazer os quinze anos, dissera a um conselheiro que se passava algo em casa e que não aguentava mais.
— Como assim? — Lara pressionou a funcionária da escola para lhe dar mais detalhes. — Tem de me dizer o que se passa.
— Não posso dizer mais nada — respondeu a mulher do outro lado da linha, com frieza. O seu tom de voz deixou Lara ainda mais alarmada.
Desligou e telefonou de imediato para o marido, Les, que estava a trabalhar no lar de terceira idade. Disse-lhe para vir para casa. Foi seca e direta.
— Imediatamente — disse. — Passa-se qualquer coisa com a Shelly.
Depois de outro telefonema frenético para o centro juvenil, os Watson saíram de casa para ir saber exatamente o que acontecera na escola nessa tarde.
— Ninguém nos dizia nada — disse Lara mais tarde, enquanto via fotografias de Shelly em criança, e depois em adolescente. A beleza de Shelly era inegável. O cabelo ruivo emoldurava um rosto com o nariz sardento e olhos azuis, as pestanas grossas a fazerem lembrar as franjas ondulantes de uma anémona. No entanto, para Lara, a beleza de Shelly era como a beleza das bagas de erva-moira. Parecem deliciosas, mas na realidade são perigosas.
Inocente. Doce. Uma máscara.
Lara estava aflita.
— Até liguei para casa do diretor da escola, mas ele também não me disse nada. Pensei que a Shelly tinha roubado alguma coisa, porque ela tinha a mania de roubar as minhas coisas e de me tirar dinheiro da carteira. Talvez tivesse roubado qualquer coisa a um colega. Não fazia ideia do que ela teria feito desta vez.
Era frustrante. Angustiante. Só podia ter sido algo muito, muito grave.
Quando os Watson chegaram ao centro de detenção juvenil em Vancouver pediram para ver a filha imediatamente, mas o pedido foi recusado pelo superintendente da instituição.
— Está sob investigação — disse.
— O que é que está sob investigação? — perguntou Les.
— A Shelly acusou-o de a ter violado — disse o homem, com ar sério.
Os olhos de Les quase lhe saltaram das órbitas, e ficou vermelho de fúria. Defendeu-se de imediato.
— Por amor de Deus! — exclamou. — Por que raio é que a Shelly está a dizer uma coisa dessas?
Lara assistiu à conversa, agoniada. A acusação era a coisa mais revoltante que ouvira em toda a sua vida. Sabiam que Shelly era mentirosa, mas isto era ir longe demais. Mesmo para ela. Na opinião da madrasta de Shelly, podiam chamar muita coisa ao marido, mas «violador» não era uma delas.
— Se calhar ela nem sabe o que isso quer dizer — disse Lara por fim, para tentar acalmar o marido.
— Temos de falar com ela já — insistiu Les.
— Nem pensar nisso — retorquiu o superintendente. — Não podem. Estamos a investigar um crime.
Les ergueu as mãos para o céu.
— Muito bem. Vamos chamar o nosso médico e exigimos que ele a examine. Agora mesmo.
O médico da família, o doutor Paul Turner, mandou que transferissem Shelly para o St. Joseph’s Hospital em Vancouver, e os Watson regressaram a Battle Ground.
Nessa noite, Lara entrou no quarto da enteada. Não sabia do que estava à procura, na verdade. De uma resposta, talvez? Da verdade. De qualquer coisa. Como de costume, o quarto de Shelly estava todo desarrumado, com roupas e loiça suja por todo o lado. E papéis. Cadernos escrevinhados. Shelly achava que era poeta e estava sempre a escrever qualquer coisa, mas Lara não viu nada, enquanto arrumava o quarto, que lhe desse qualquer pista. Passado algum tempo, deu por si a ver se encontrava alguma coisa à volta da cama. Baixou‐se e enfiou a mão debaixo do colchão. Os seus dedos tocaram nas folhas de uma revista, e puxou-a.
Ficou sem ar com o que viu.
Era um exemplar muito folheado da revista True Confessions. Na capa, a manchete gritava em letras gordas: «FUI VIOLADA PELO MEU PAI AOS 15 ANOS!»
Lara sentiu a tensão arterial disparar. Era impensável que Shelly tivesse feito uma acusação destas, exatamente igual ao que apregoava a capa da revista.
— Olha para isto — disse, e mostrou a Les o que descobrira.
Les abanou a cabeça, revoltado e incrédulo. Ficara arrasado com a acusação, mas ainda mais preocupado com o comportamento da filha.
— O que se passa com ela? — perguntou.
Lara não sabia. Nunca ouvira falar de ninguém que inventasse uma história tão destrutiva. Não fazia sentido.
Na manhã seguinte, quando o doutor Turner chegou ao hospital para examinar Shelly, Lara brandiu a revista.
— Ela inventou tudo — disse.
Na opinião dos Watson, a revista era prova de que não acontecera nada e de que Shelly simplesmente se inspirara na história sórdida que lera. Contudo, isto era mais do que apenas outro ato de um drama criado por Shelly com o seu comportamento destrutivo e escandaloso. Les e Lara estavam no limite. Tinham de pensar nos outros filhos. E também na carreira de Les. Ele era presidente da Câmara do Comércio. Se a mentira de Shelly chegasse aos ouvidos de mais alguém, o escândalo seria suficiente para o arruinar.
— Isto é mesmo grave, Lara — disse Les enquanto aguardavam à porta do quarto de hospital de Shelly.
Lara suspirou.
— É a Shelly — disse. — É o que ela faz.
Pouco depois, o doutor Turner saiu, com os resultados do exame.
— A jovem está completamente intacta — disse. — Não há lesões, nada. Nunca foi sequer tocada.
Nessa noite, Shelly pôde regressar com eles a casa, mas com uma condição.
— A vossa filha precisa urgentemente de apoio — contou Lara que o superintendente do centro juvenil lhes disse. — Precisa de um psicólogo.
***
Infelizmente, várias sessões de terapia familiar e consultas privadas com um psicólogo revelaram-se ineficazes. Shelly não admitia a ideia de poder ter problemas que precisavam de ser tratados. Apesar de ser confrontada com a verdade, continuava a afirmar que não tinha culpa de nada. Nunca tinha culpa de nada. Lara e Les aperceberam-se de algo que poucas pessoas compreendiam ainda no final dos anos 60, início dos anos 70: ninguém pode ajudar uma pessoa com problemas que acha não precisar de ajuda. Na verdade, Shelly nunca admitiu sequer ter inventado a história da violação. Nem parecia compreender a magnitude daquilo que fizera ao pai. Pelo contrário, parecia contente por ter lançado uma granada para o círculo familiar e, graças a isso, ter recebido a atenção por que ansiava.
Shelly queria voltar para a Escola Secundária de Battle Ground, mas a administração recusou-se a recebê-la novamente.
— Fechaste essa porta — disse o diretor. Shelly ficou ali sentada, diante dele, com o olhar vazio, enquanto Les e Lara ouviam. — Não te queremos nesta escola. Não precisamos de mais problemas.
Os Watson ficaram fora de si ao ouvir isto. Shelly tinha apenas quinze anos. Tinha de frequentar a escola. Lara tentou de imediato matriculá-la na escola Annie Wright, um colégio interno prestigiado e caro em Tacoma, mas sem sucesso.
— Pesquisaram-na — recordou Lara mais tarde. — Recusaram-na sem explicações.
Embora os Watson tivessem um bom rendimento, a verdade era que pagariam o que fosse preciso para tirar Shelly de Battle Ground e pô-la numa escola algures. Onde quer que fosse. Por fim, lá encontraram uma vaga para Shelly em Hoodsport, Washington, onde ficou a viver com os pais de Lara, que depressa aprenderam a andar com pezinhos de lã perto da adolescente. Ninguém queria fazer com que Shelly explodisse. Era impossível dizer o que ela faria a seguir. Era volátil, imprevisível. Tinha uma faceta cruel que por vezes escondia, fingindo preocupar-se ou gostar de alguém ou alguma coisa. Por exemplo, oferecia-se para ajudar a mãe de Lara a lavar a loiça, mas acabava por atirar talheres, pratos e até tachos sujos para o lixo. Quando estava a sentir-se mais produtiva, «limpava» os pratos sujos com um pano em vez de os lavar.
Shelly dizia adorar crianças, e queria fazer baby-sitting para pessoas da vizinhança. Melhor ainda, dizia, gostava tanto de tomar conta de crianças que se oferecia para o fazer de graça. Parecia gostar de ser vista como uma rapariga benévola e carinhosa. Foi uma fachada que não durou muito tempo. Quando os pais chegaram a casa, depois de um serão fora, encontraram os filhos na cama ainda vestidos e ouviram histórias de como Shelly os fechara no quarto e barricara a porta com mobílias pesadas.
Shelly também se virou contra os avós poucas semanas depois de ir viver com eles.
— Os meus pais nunca tiveram problema algum com nenhum dos netos — disse Lara muitos anos depois de Shelly regressar a Battle Ground. — Descobri mais tarde que os meus pais ficaram felizes quando a escola finalmente acabou e puderam mandar Shelly para casa.
Ao que parece, Shelly também acusara o pai de Lara de abusos sexuais.
— Descobri que a Shelly disse aos vizinhos que o avô andava a meter-se com ela. E eles contactaram imediatamente a minha mãe. — Lara não compreendia. — Não percebo esta necessidade constante que a Shelly tem de tentar dar cabo da vida das pessoas.
Capítulo 5
Lara Watson às vezes ficava tensa ao ouvir o toque estridente do telefone, e preparava-se para mais um telefonema sobre alguma coisa que Shelly fizera, uma nova situação para pôr à prova a determinação da madrasta e a sua capacidade de resolver as coisas. Lara era uma pessoa capaz. Sabia lidar com as pessoas. Tinha um espírito vivo. No entanto, mesmo sem Shelly em casa, o casamento dos Watson estava sujeito a uma pressão insuportável. Os negócios da família requeriam atenção constante, sem dúvida, e Les estava à altura das exigências. Provavelmente era aquilo que fazia melhor. Lara, por seu lado, estava atolada nas areias movediças de criar cinco crianças, dois filhos que tinha com Les e os três do casamento anterior dele com a ex-mulher Sharon. Os rapazes mais velhos continuavam a espalhar o caos pela casa, embora não ao nível do que Shelly fazia. Chuck ainda era muito calado — tímido, até. Lara sentava‐o ao colo enquanto lia para ele e o ouvia fingir que lia para ela. Ele tinha também dificuldades na escola. Paul, por seu lado, era um mentiroso crónico, como a irmã mais velha. Enquanto Shelly controlava Paul, este, por sua vez, imitava a irmã e tentava controlar Chuck. Era como se as três crianças tivessem formado um gangue, com Shelly como líder.
A abelha-rainha.
A que sabia sempre o que era melhor.
Tal como a avó Anna.
Shelly sempre fora perita em causar perturbação e caos. Era certo e sabido que voltar a juntá-la à família depois do seu exílio de Battle Ground não ia correr bem para ninguém. Lara passou metade desse verão ao telefone, a tentar encontrar uma escola que aceitasse Shelly no outono. Todos os estabelecimentos para onde ligou lhe recusaram entrada. Lara estava quase de cabeça perdida quando finalmente conseguiu um sim da escola de St. Mary of the Valley em Beaverton, Oregon, cerca de quarenta minutos a sul de Battle Ground. Talvez não fosse tão longe como Lara gostaria, mas era a melhor de uma lista muito curta de opções.
Mais tarde, Lara admitiria que estava tão desesperada que omitiu certas coisas sobre os problemas que seguiriam Shelly para o colégio interno. Calculou também que um grupo de freiras habituadas a estas coisas depressa perceberiam as manipulações mais evidentes de Shelly e lhe colocariam um travão.
Passadas algumas semanas, as religiosas começaram a ligar e a pedir aos Watson se podiam ir buscar Shelly para passar o fim de semana em casa.
— Íamos buscá-la às sextas-feiras à noite e depois seguíamos para a nossa cabina nas montanhas, onde fazíamos esqui. Eu tentava sempre fazer isso ao fim de semana, apesar de, para falar com franqueza, ser difícil. Todos os fins de semana tinha de cerrar os dentes e fazer das fraquezas, forças. As coisas eram tão tranquilas sem ela! Até os rapazes, apesar de terem problemas graves, estavam a melhorar.
Parecia que, quanto mais faziam por Shelly, mais ela queria. E quando não conseguia o que queria fazia cenas.
— As freiras não queriam que ela voltasse no ano letivo seguinte — disse Lara. — Disseram-me que ela tinha problemas comportamentais.
Os problemas eram bem familiares.
Segundo as religiosas, Shelly acordava muitas vezes a meio da noite, aos gritos. Roubou o trabalho de casa de uma colega e destruiu-o. Foi apanhada a roubar coisas às outras raparigas. Shelly até ressuscitou uma das suas antigas táticas de guerrilha: pôs vidros partidos no sapato de uma colega.
Perto do final do ano letivo, a diretora do colégio de St. Mary of the Valley disse a Les e a Lara que não aceitariam Shelly no ano seguinte. — Nós estávamos dispostos a pagar o que fosse preciso para a manter lá — disse Lara. — Mas nada feito. As irmãs não cederam. No verão, Shelly adotou uma abordagem de terra queimada à sua vida em Battle Ground. Passava os dias a dizer a Lara como a odiava e que só queria que ela morresse. Lara, farta de se calar, respondeu-lhe mais do que uma vez que ela também não era flor que se cheirasse.
— O que se passa contigo? — perguntava. — Nunca estás contente nem satisfeita com nada.
Era verdade. Mas Lara não precisava de procurar muito longe para encontrar a razão. O marido dava a Shelly tudo o que ela queria. Apesar do que ela lhe fizera, sujando o seu nome, Les tratava Shelly como uma princesinha.
A princesa Shelly não podia ficar em Battle Ground.
***
A irmã de Les Watson, Katie, foi a próxima pessoa bem intencionada mas ingénua a lançar uma boia salva-vidas aos Watson. Shelly tinha uma grande capacidade de fazer com que as pessoas tivessem pena dela e ficassem ao seu lado contra o resto do mundo. A mãe fora assassinada. O pai abusara dela. A madrasta tratava-a mal. Katie ofereceu-se para ficar com Shelly no verão, depois de a rapariga se queixar de como os pais — especialmente Lara — a tratavam mal.
Lara ouviu algumas das conversas. Shelly nunca se preocupou em esconder os seus sentimentos. Falava alto e de modo a que toda a gente a ouvisse.
— Ela estava a falar ao telefone com a Katie e a dizer-lhe que eu era má e a tratava mal — recordou Lara. — Que não a deixava ter nada e não lhe comprava nada. Que lhe chamava nomes.
O teatro de autocomiseração de Shelly foi um êxito total.
Os Watson tinham uma carrinha e uma autocaravana e planeavam ir à Disneyland nesse verão. Fizeram as malas, puseram Shelly no avião para casa da tia e tiveram umas férias maravilhosas sem ela.
Algumas semanas depois, Katie telefonou e disse que Shelly lhe contara tudo. Ela e o marido, Frank, tinham decidido que seria melhor «a pobre menina» ficar com eles, na sua casa na Costa Leste, onde Frank era engenheiro de minas e presidente de uma companhia de carvão, durante o próximo ano letivo.
Lara não queria acreditar na sua sorte. Sabia que Shelly mentira com quantos dentes tinha na boca sobre a situação em Battle Ground. Mas não se importava.
Oh, meu Deus! pensou na altura. O Senhor ouviu as minhas preces!
Esta estada na Costa Leste seria a última paragem de Shelly na digressão pelo ensino secundário que a levara de escola em escola, de familiar em familiar.
— Foi horrível — disse Lara sobre os dois anos que Shelly esteve com a tia. Na sua opinião: — Os problemas que ela [Shelly] causou entre a Katie e o Frank foram tão maus que eles acabaram por se divorciar.
Shelly parecia não se importar minimamente com o drama. Tencionava passar à próxima etapa da sua vida. Ainda não fizera dezoito anos, mas já conhecera o seu futuro marido.
Capítulo 6
Qualquer homem sabe identificar o momento em que conhece aquela rapariga. A sua alma gémea. A que lhe deixa a cabeça a andar à roda como um pião. Randy Rivardo viu Shelly Watson pela primeira vez no verão de 1971, quando ela tinha dezassete anos. Não havia como negar que ela era uma beldade, esta rapariga nova. Shelly chamou a atenção de muitos rapazes locais quando foi viver com os tios em Murrysville, Pensilvânia, onde frequentava o liceu de Franklin Regional High. Ela e Randy começaram a namorar e, quando Shelly frequentava o último ano, a relação já era séria. Faziam um casal que dava nas vistas: Shelly com o cabelo ruivo e a pele perfeita, e Randy com os olhos e cabelos escuros da sua herança italiana. Mas era um romance de adolescentes, destinado a ser apenas uma diversão passageira e uma memória feliz. Separaram-se depois de concluírem o ensino secundário em 1972. Randy ficou na Pensilvânia, a ganhar dinheiro para as propinas da universidade, e Shelly acabou por regressar a Washington, onde começou a trabalhar como auxiliar de enfermagem no lar gerido pelo pai.
Contudo, a meio do verão, Randy recebeu um telefonema da sua ex-namorada. Shelly tinha saudades dele e, além disso, sabia de uma oportunidade. O pai tinha uma oferta de trabalho para Randy.
— Queres vir para Battle Ground? — perguntou ela. — O meu pai contrata-te para fazer serviços de manutenção.
Randy ficou na dúvida. Era uma boa proposta, mas completamente inesperada.
Shelly adoçou ainda mais a oferta.
— O meu pai diz que podes ficar aqui num apartamento sem pagar renda — disse. — Conseguirás poupar mais depressa para a universidade.
A ideia intrigou-o. O salário era apenas cinco dólares à hora, mas depois de pesquisar o preço das propinas no Clark College em Vancouver, Randy decidiu-se. Meteu-se no carro, dirigiu-se a Battle Ground e encontrou Shelly à sua espera de braços abertos.
Como as mandíbulas de uma planta carnívora.
Pouco depois de chegar, tornou-se evidente que a família Watson tinha algo mais em mente para Randy do que um emprego na manutenção do lar. Queriam um marido para Shelly. A bem da verdade, quando ele estacionou o carro em Battle Ground, os planos do casamento provavelmente já estavam em marcha. Não demoraram muito tempo a deitar-lhe o isco. Shelly disse a toda a gente como amava Randy. Les tratou-o como um filho pródigo regressado a casa. Sempre que precisava de alguma coisa, Les estava disposto a oferecer-lhe fosse o que fosse.
Contudo, Randy tinha um pressentimento de que se passava aqui alguma coisa. O pai de Shelly parecia demasiado ansioso para entregar a filha a outro homem.
— Foi tudo tão apressado que o Les teve de me arranjar um padrinho de casamento porque eu não tinha amigos nem família na área — contou Randy. — Foi mesmo rápido. — Randy não era um tipo passivo, mas decidiu fechar a boca. — Recostei-me e deixei as coisas acontecerem.
Nenhum dos amigos ou familiares de Randy esteve no casamento.
Mais tarde, um amigo da família descobriu a razão: Shelly não chegou a enviar os convites.
***
Shelly e Randy, ambos com dezanove anos de idade, casaram-se em fevereiro de 1973, na igreja metodista em Vancouver. Shelly levou um vestido branco comprido com gola subida, a fazer lembrar, deliberadamente, o que a atriz Olivia Hussey usou no filme Romeu e Julieta de 1968. O noivo levou um smoking cor de rosa escolhido por Shelly. Seguiu-se um copo de água no histórico Summit Grove Lodge, na cidade próxima de Ridgefield. Toda a gente disse que foi uma cerimónia maravilhosa, um sonho de Shelly desde sempre. Os noivos eram jovens mas estavam muito apaixonados. Pelo menos, era o que Randy pensava. O casal foi passar a lua de mel na cabana da família Watson em Government Camp, Oregon — um lugar que Shelly odiava quando era adolescente — e, a seguir, foram viver, de graça, numa autocaravana de doze metros que era propriedade dos Watson. Shelly queixou-se de que a caravana era reles, mas Lara recordou-lhe que era apenas o ponto de partida para a sua vida com Randy. De qualquer modo, eles não tinham dinheiro para uma casa.
— Mas eu não quero viver nesta caravana! — repetiu Shelly, uma e outra vez.
Pouco depois do casamento, Shelly deu em queixar-se de fortes cãibras menstruais e começou a faltar ao trabalho no lar. Os seus «problemas», como ela lhes chamava, vinham numa vaga que durava do princípio ao fim do mês. Ela ia trabalhar, vinha-se embora, e recomeçava tudo de novo. Por fim, numa decisão que deve ter sido difícil para Les, este despediu a filha.
— Vontade de trabalhar e fiabilidade nunca foram dois dos seus pontos fortes — disse Randy mais tarde da sua jovem esposa.
Depois disso, Shelly foi trabalhar para o lar de terceira idade de outro membro da família. Mas o padrão de absentismo constante repetiu-se e foi novamente despedida.
— Depois voltou para o lar do pai — disse Randy. — Saltava de um para o outro como uma bola de pingue-pongue.
Por fim, Shelly foi despedida de vez. Como dona de casa, não trazia qualquer benefício ao lar. Não cozinhava. Não limpava. Tudo o que parecia fazer era ficar refastelada e dizer a quem a quisesse ouvir o que deviam estar a fazer, embora nunca hesitasse em dizer aos outros aquilo que ela merecia, e como deviam ajudá-la a ter aquilo que queria.
Nesse aspeto, era muito parecida com a avó Anna.
***
Shelly andava de olho num carro novo, portanto fez o que fazia sempre — foi ter com o papá. Não importava que ela quase lhe tivesse custado a sua reputação, ou mais do que isso, quando se queixara às autoridades de que a violara. Isso pareciam ser águas passadas. Na verdade, os Watson tinham medo de Shelly e do que ela poderia fazer. Era mais fácil dar-lhe tudo o que ela queria, só para a manter feliz e ao largo. Se Shelly queria ir ao cinema, ou a um concerto, ou a um evento qualquer fora da cidade, eles davam-lhe dinheiro sem hesitar. Claro que até os Watson tinham os seus limites. Por mais bem-sucedidos que fossem os negócios de Les, ele não era feito de dinheiro.
Com a exigência do carro novo, Shelly mostrou mais uma vez ao pai e à madrasta até onde estava disposta a ir para conseguir aquilo que queria.
Shelly insistiu num Volkswagen Carocha.
— Papá, é esse o carro que eu quero! É o carro que tenho de ter! Les concordou por fim e foi a Vancouver ver o que conseguia encontrar. Contudo, não voltou para casa com um Volkswagen. Em vez disso, regressou a Battle Ground com algo que pensava ser ainda melhor — um Buick descapotável cor de rosa, praticamente novo.
Shelly semicerrou os olhos e o seu rosto ficou dez tons mais escuro do que o carro novo. Bateu o pé. Fez uma cena tão grande que as janelas da casa estremeceram. Gritou com o pai, acusando-o de lhe ter comprado um «carro horrível de velha solteirona». Les recuou um passo. Devia estar preparado, mas na verdade não esperava isto.
Randy achou que o carro era giro, mas não conseguiu apaziguar a mulher. Shelly estava inconsolável.
O que aconteceu a seguir deixou toda a gente em pânico. Nessa noite, Shelly perdeu os sentidos, aparentemente com uma dose excessiva de comprimidos para dormir e álcool. Quando Randy viu que não a conseguia reanimar, ligou para os Watson, em pânico, e levaram-na de imediato para o Vancouver Memorial Hospital. Todos estavam com receio de que ela não sobrevivesse. O médico de serviço nas Urgências fez-lhe uma lavagem ao estômago e transmitiu à família aquilo que encontrara.
— Descobrimos que ela tomara aspirina, imagine-se — recordou Lara muitos anos depois. — E uma pequena quantidade. Não havia comprimidos para dormir nenhuns.
***
Um dia, depois de Randy chegar das aulas em Clark College, encontrou a caravana onde moravam de pernas para o ar e a mulher com a cara ensanguentada.
Correu para ela.
— O que aconteceu?
— Apareceu um homem — soluçou Shelly. — Entrou e atacou-me. Violou-me. — Apontou para os arranhões no rosto. — Depois pegou na tua espingarda e fugiu.
Randy ligou para o xerife de Clark County e para o sogro. Ambos chegaram com poucos minutos de intervalo. Randy e Les ficaram na rua enquanto o xerife interrogava Shelly dentro da caravana.
Pouco depois, o xerife apareceu e, com expressão grave, disse que os ferimentos de Shelly eram autoinfligidos. Não houvera intruso algum. Olhou fixamente para Les e Randy e disse-lhes que desta vez não apresentaria queixa contra Shelly.
Depois de o xerife partir, Shelly alterou outra vez a sua história.
— Voltou a afirmar que tinha sido violada — contou Randy mais tarde. — Disse que só tinha retirado a história porque o xerife a obrigara. Disse que tinha visto o atacante enterrar a espingarda ali perto.
Para provar a sua história, Shelly conduziu o marido e o pai até à espingarda.
— Aqui mesmo — disse-lhes. — Foi onde ele a escondeu.
Randy era demasiado esperto para acreditar nesta história. E desconfiou que o sogro também não estava convencido. E a madrasta de Shelly decididamente não acreditava numa só palavra.
Shelly simplesmente não queria continuar a viver naquela caravana. Não era suficientemente boa para ela. Por amor de Deus, era filha de Les Watson. Merecia melhor.
— Disse que era demasiado perigoso continuar a viver ali — contou Lara, anos mais tarde, com um revirar de olhos. — Queria viver numa casinha bonita na cidade.
***
E o que Shelly queria, Shelly conseguia. Comportava‐se como se fosse dona de Battle Ground. Deixava contas por pagar na estação de serviço e no supermercado. Passava cheques sem cobertura uns atrás dos outros. Com o tempo, as suas dívidas chegaram ao ponto de alguns proprietários dos negócios se verem forçados a obrigar Randy a pagar. Ele dizia-lhes para não deixarem Shelly levar mais nada a crédito, e eles concordavam. Mas acabavam sempre por ceder. Agora, Randy percebia por que razão Les o acolhera tão depressa na família. Era mais do que despachar uma filha solteira; estava a passar a outro um grande problema.
Quando Shelly anunciou que estava grávida, no verão de 1974, toda a gente respirou fundo.
Talvez isto ajudasse?
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