Max Disher estava à porta do Honky Tonk Club a fumar um charuto fino e a observar a turba de gente branca e negra que entrava no cabaré. Max era alto, elegante, com pele cor de café. As suas feições negróides tinham um ligeiro cunho diabólico e a sua postura desenvolta, qualquer coisa de insolente. Usava o chapéu de través e, sob o casaco de pele de guaxinim, trazia um impecável fato de noite. Era jovem, não estava nas lonas, mas sentia-se terrivelmente em baixo. Era véspera do novo ano de 1933, mas não havia nem alegria nem felicidade no seu coração. Como havia ele de partilhar a hilaridade da multidão, se já não tinha miúda? Ele e Minnie, a sua bela garota castanho-clara, tinham discutido naquele dia e acabara tudo entre os dois.

«As mulheres são mesmo estranhas», cogitou, «sobretudo as mais claras. Uma pessoa pode oferecer-lhes a Lua e nem assim ficam satisfeitas.»

O problema era provavelmente esse: dera demasiado a Minnie. Não compensava gastar tanto com as mulheres. Assim que lhe comprara um vestido novo e pagara a renda de um apartamento de três assoalhadas, Minnie tornara-se arrogante. Excessivamente orgulhosa da sua cor de pele, eis o problema dela! Max tirou o charuto da boca e cuspiu, enojado.

Um tipo negro, baixo, rechonchudo e com cara de querubim, resplandecente com o seu chapéu de feltro de aba castanha estreita, casaco de camelo e polainas, aproximou-se descontraidamente e deu-lhe uma palmadinha no ombro.

É Desta Que Leio Isto: Em janeiro recebemos Dulce Garcia

Anote na sua agenda. O É Desta Que Leio Isto já tem a primeira sessão de 2023 marcada. Dulce Garcia é a convidada do próximo encontro do nosso clube de leitura, a ocorrer no dia 19 de janeiro, pelas 21h.

Nascida em 1970, Dulce Garcia foi jornalista entre 1991 e 2017, escrevendo no Diário Económico e, acima de tudo, na Sábado, publicação de que foi fundadora e subdiretora. Assinou também colaborações nas revistas Elle, GQ, Vogue e Máxima. Hoje, é assessora de imprensa na área da política, trabalhando com o Ministério da Justiça.

A sua experiência na literatura bifurca-se nos dois lados da mesma moeda: foi editora de ficção portuguesa do grupo editorial Planeta e começou a publicar ficção com “Quando Perdes Tudo Não Tens Pressa de Ir a Lado Nenhum”, estreia editada na Guerra & paz em 2017.

Olho da Rua” — o seu segundo romance e uma das recomendações do ano do SAPO24 — trata-se de uma sátira do panorama laboral do século XXI, fazendo do escritório uma selva onde impera a lei do mais forte.

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— Olá, Max! — cumprimentou o recém-chegado, estendendo a mão enfiada numa luva parda. — Estás a cismar em quê?

— Em tudo, Bunny — respondeu Max, garboso. — Aquela minha maldita negrinha clara armou-se em boa e largou-me.

— Não me digas! — exclamou o sujeito baixinho. — E eu a pensar que tu e ela eram feitos um para o outro.

— Éramos, dizes bem, pá. E depois de me gastar a massa, ainda por cima! Estou furibundo. Paguei dois lugares para o jantar de hoje no Honky Tonk, a pensar que ela vinha, e em vez disso faz uma cena e põe-se na alheta!

— Ora bolas! — exclamou Bunny. — Eu cá não me ralava. Arranjava logo outro rabo de saia. Nem pensar que uma miúda me estragava a véspera de Ano Novo.

— E eu fazia o mesmo, espertalhão, mas as miúdas que conheço já estão comprometidas. Portanto, aqui me vês todo emperiquitado e sem sítio aonde ir.

— Tens duas reservas, não tens? Então, vamos os dois sugeriu Bunny. Se calhar conseguimos juntar-nos a um grupo qualquer.

Max animou-se visivelmente.

— Boa ideia — disse. — Nunca se sabe, talvez encontremos alguma coisa boa.

Balançando as bengalas, os dois juntaram-se à massa de gente na entrada do Honky Tonk Club e desceram às suas profundezas enfumaçadas. Seguiram um empregado que gingava pelo labirinto de mesas e sentaram-se perto da pista de dança. Depois de pedirem ginger ale e bastante gelo, recostaram-se e observaram a multidão. Max Disher e Bunny Brown1 eram amigos desde a guerra, quando combateram juntos no velho 15.º Regimento, em França.

Max era um dos melhores agentes da Companhia Afro-Americana de Seguros de Incêndio, Bunny era caixeiro do Banco Douglass. No Harlem negro, ambos gozavam da reputação de serem jovens alegres e pimpões. Partilhavam um fraquinho bastante prevalecente entre os machos afro-americanos: preferiam mulheres de pele castanho-clara. Juravam ambos que havia três coisas essenciais à felicidade de qualquer cavalheiro de cor: moedas pretas, mulheres castanho-claras e táxis amarelos. Pouca dificuldade tinham em arranjar os trocos e absolutamente nenhuma em conseguir os táxis, mas viam as mulheres castanho-claras como caprichosas e inconstantes. Era dificílimo mantê-las. Com tamanha procura, era preciso quase um milhão de dólares para as afastar das garras dos rivais.

— Para mim, acabaram-se as miúdas castanho-claras! — anunciou Max, num tom decidido enquanto sorvia a bebida. — Vou arranjar uma negra.

— Não posso crer! — exclamou Bunny, reforçando a bebida com o conteúdo do grande cantil prateado que levava no bolso. — Não pensas passar ao carvão, pois não?

— Bem… — explicou o companheiro — talvez tivesse mais sorte. Pode-se confiar numa rapariga negra; ela vai ser-te fiel.

— Como é que sabes? Nunca tiveste nenhuma. Só te vejo com umas quase branquelas.

— Oh! — resmungou Max. — E a próxima até pode ser uma branca! Dão menos trabalho e não te pedem a Lua.

— Tens toda a razão, amigo — concordou Bunny, — mas a minha tem de ter classe. As miúdas da Woolworth não são para mim! Só te dão chatices… A verdade, companheiro, é que nenhuma mulher serve. Todas perdem a graça muito depressa.

Beberam em silêncio e observaram a multidão multicolorida à volta. Havia negros, castanhos, castanho-claros e brancos a conversar, a namoriscar e a beber, lado a lado na democracia da vida nocturna. A fumaça dos cigarros envolvia a cabeça de todos e o estrépito da infatigável orquestra de jazz silenciava todos os sons, à excepção dos gritos mais altos. Os empregados dançavam pelo meio das mesas, equilibrando ao alto as bandejas, enquanto os convivas, ataviados com chapéus de papel colorido, marcavam o ritmo a par da orquestra, lançavam serpentinas ou mostravam-se sentimentais apoiando-se nos ombros uns dos outros.

— Olha-me para aquilo! Deus do céu! — exclamou Bunny, indicando a porta.

Acabara de entrar um grupo de brancos. Estavam todos em traje de noite, e entre eles havia uma rapariga alta e esguia, de cabelo louro-arruivado, que parecia vir directamente do céu ou da capa de uma revista.

— Minha nossa! — disse Max, endireitando-se imediatamente.

O grupo era composto por dois homens e quatro mulheres. Foram conduzidos à mesa ao lado da que ocupavam os dois dândis de cor. Max e Bunny observaram-nos disfarçadamente. A rapariga alta era um verdadeiro sonho.

— Daquilo é que eu gosto — murmurou Bunny.

— Arreda os cavalos — disse Max. — Nem com um bastão de um metro lhe podes tocar.

— Não sei não, companheiro. — Bunny irradiava confiança. — Nunca se sabe! Nunca se sabe!

— Pois eu sei — observou Disher, — porque ela é do Sul.

— Como é que sabes?

— Pá, topo os sulistas à légua. Não é por acaso que nasci e cresci em Atlanta, na Geórgia, sabes? Presta atenção à voz dela.

Bunny ouviu.

— Acho que tens razão — concordou.

Continuaram a examinar o grupo, excluindo tudo o resto. Max estava particularmente fascinado. A rapariga era a criatura mais bonita que ele já vira e sentiu-se irresistivelmente atraído por ela. Sem se dar conta, ajustou a gravata e passou a mão, com uma manicura impecável, sobre o cabelo rigidamente alisado.

De repente, um dos homens brancos levantou-se e veio à mesa deles. Olharam-no com ar desconfiado. Causar-lhes-ia problemas? Teria reparado que estavam de olhos postos na rapariga? Retesaram-se quando o viram aproximar-se.

— Olá, rapazes — saudou, inclinando-se sobre a mesa. — Sabem onde se pode arranjar uma bebida decente? Acabou-se-nos tudo e o empregado diz que não nos pode arranjar mais.

— Encontram pinga muito boa mesmo ao fundo da rua — informou Max, com um certo alívio.

— Não lhe vão vender nada — disse Bunny. — Provavelmente vão achar que é um agente da Lei Seca.

— E será que um de vocês podia ir comprar por mim? — perguntou o homem.

— Claro — disse Max, entusiasmado.

Que sorte! Eis a oportunidade por que esperava. Talvez aquelas pessoas o convidassem para a sua mesa. O homem estendeu-lhe uma nota de dez dólares e Max saiu em cabelo para comprar o álcool. Estava de volta passados dez minutos. Entregou a garrafa e o troco ao homem. Este devolveu-lhe o troco e agradeceu. Não houve convite para que se juntasse ao grupo. Max regressou à sua mesa e fitou a comitiva com ar desiludido.

— Convidou-te? — perguntou Bunny.

— Estou aqui, não estou? — respondeu Max, com uma ponta de ressentimento.

Teve início o espectáculo. Um comediante com a cara pintada de negro, um cantor corpulento a berrar canções negras com a voz enrouquecida pelo gim, três bailarinas cor de chocolate com sapatilhas e um octeto de coristas mulatas que se saracoteavam praticamente nuas.

Depois, chegou a meia-noite e o pandemónio da entrada no novo ano. Quando o alvoroço se acalmou, as luzes baixaram e a orquestra lançou-se nos melancólicos blues. A pista encheu-se de casais. Os dois homens e duas das mulheres na mesa do lado levantaram-se para dançar. A beldade e outra jovem ficaram sozinhas.

—Vou lá convidá-la para dançar — anunciou de súbito Max.

— Estás a brincar! — exclamou Bunny, surpreendido. — Estás-te a pôr a jeito, companheiro.

— Bem, vou correr o risco à mesma — insistiu Max, e levantou-se.

Aquela loura lindíssima hipnotizara-o. Sentia que daria tudo para dançar com ela nem que fosse uma vez. Rodopiar naquela pista com o braço em redor daquela cintura esguia seria como passar a eternidade no paraíso. Sim, valia a pena arriscar uma rejeição.

— Não faças isso, Max! — implorou Bunny. — Aqueles tipos podem não gostar da brincadeira.

Mas Max não se deixou deter. Era impossível impedi-lo de fazer uma coisa quando a punha na cabeça, sobretudo quando envolvia uma graciosa donzela.

Avançou para a mesa com o seu ar mais sedutor e parou para baixar os olhos para a resplandecente beldade dos cabelos louro-arruivados. Era realmente sublime e o seu perfume exótico atiçou as narinas dele, apesar das nuvens de fumo dos cigarros.

— Deseja dançar? — perguntou, após um instante de hesitação.

Ela ergueu os frios olhos verdes e fitou-o com arrogância, quase atónita perante a insolência dele e, ao mesmo tempo, talvez secretamente intrigada, mas a sua resposta não deixou lugar a dúvidas.

— Não — declarou, gélida. — Nunca danço com pretos! — Depois, virou-se para a amiga e observou: — Estes escurinhos têm cá uma lata. — Esboçou uma ligeira careta desdenhosa, encolheu graciosamente os ombros e descartou o desagradável incidente.

Humilhado e furioso, Max regressou ao seu lugar sem pronunciar uma palavra. Bunny ria-se à gargalhada.

— Eu bem te disse para arredares os cavalos… Acabaste de levar um coice — cacarejou.

— Oh, vai prò diabo — resmungou Max.

Nesse momento, passou Billy Fletcher, chefe de sala. Max travou-o.

— Já tinhas visto aquela miúda ali? — perguntou.

— Tem vindo praticamente todas as noites, mesmo antes do Natal — respondeu Billy.

— Sabes quem é?

— Ouvi dizer que é uma gaja rica de Atlanta que veio cá passar as Festas. Porquê?

— Oh, por nada, só curiosidade.

De Atlanta! A sua cidade natal. Não admira que ela lhe tivesse dado para trás. Viera experimentar as sensações fortes do Black Belt2, mas só com os olhos, evitando o contacto. Céus, como os brancos eram estranhos. Não queriam ter nada que ver com os negros, mas estavam sempre a frequentar os lugares onde os negros paravam.

Às três da manhã, Max e Bunny pagaram a conta e subiram para a rua. Bunny queria passar pelo baile que havia ao pequeno-almoço no Casino Dahomey, mas Max estava sem vontade.

— Vou para casa — anunciou, lacónico, enquanto chamava um táxi. — Boa noite!

Conforme o táxi subia velozmente a Sétima Avenida, Max encostou-se e pensou na rapariga de Atlanta. Não conseguia, nem queria, tirá-la da cabeça. Chegado à pensão, pagou ao taxista, destrancou a porta, subiu ao quarto e despiu-se, mecanicamente. A sua mente era um caleidoscópio: Atlanta, olhos verdes como o mar, silhueta esguia, cabelo louro-arruivado, modos glaciais. «Nunca danço com pretos.» Max adormeceu por volta das cinco e sonhou imediatamente com ela. Sonhou que dançava com ela, jantava com ela, andava de carro com ela, que estava sentado ao lado dela num trono dourado enquanto milhões de escravos brancos agrilhoados se prostravam a seus pés. Seguiu-se um pesadelo envolvendo homens cinzentos de ar sinistro com espingardas, cães de caça a uivar, uma pilha de beatas embebidas em gasolina e uma turba fanática e estridente.

Acordou coberto de suor. O telefone tocava e o sol do final da manhã jorrava pelo quarto. Saltou da cama e levantou o auscultador.

— Olha lá — gritou Bunny, — viste o Times de hoje?

— Claro que não — resmoneou Max. — Acabei de acordar.

Porquê? O que é que diz?

— Lembras-te do doutor Junius Crookman3, aquele fulano de cor que foi para a Alemanha estudar há uns três anos? Acabou de regressar e, segundo o Times, anunciou que descobriu um modo infalível de transformar os escurinhos em brancos. Achei que talvez te interessasse, como ficaste caidinho por aquela branquelas ontem à noite… Dizem que o Crookman está prestes a abrir uma clínica no Harlem. É a tua oportunidade, companheiro, e não tens outra. — Bunny riu-se.

— Oh, vai dar uma volta — resmungou Max. — Que disparate pegado.

Mas ficou impressionado e inclusive um pouco empolgado. E se aquilo tivesse um fundo de verdade? Tomou um duche frio, vestiu-se à pressa e dirigiu-se para o quiosque. Comprou o Times e percorreu os artigos. Sim, ali estava:

NEGRO ANUNCIA EXTRAORDINÁRIA DESCOBERTA

Transforma negros em brancos em três dias

Max entrou no restaurante de Jimmy Johnson e devorou o artigo enquanto esperava o pequeno-almoço. Sim, devia ser verdade. Quem diria que o velho Crookman seria capaz de uma coisa destas! Ainda há poucos anos não passava de um estudante de Medicina esfaimado do Harlem. Max pousou o jornal e olhou distraidamente pela janela. Céus, o Crookman seria milionário em menos de nada. Multimilionário, até. Pelos vistos, a ciência ia ter êxito onde a Guerra Civil falhara. Mas como seria possível? Olhou para as mãos e tocou na nuca, onde a loção de alisamento dos cabelos não conseguira domar alguns nós. Depois, foi mexendo o presunto e os ovos enquanto imaginava as potencialidades da descoberta.

Negro Nunca Mais
créditos: Tinta da China

Livro: "Negro Nunca Mais"

Autor: George S. Schuyler

Editora: Tinta da China

Publicação: 19 de janeiro

Preço: €16.11

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De súbito, impôs-se-lhe uma resolução. Regressou ao artigo do jornal. Sim, Crookman estava instalado no Hotel Phyllis Wheatley. Porque não ir lá ver do que se tratava? Porque não ser o primeiro negro a experimentar? Claro que era arriscado, mas só de pensar em tornar-se branco em três dias! Acabavam-se as leis de Jim Crow. Acabavam-se os insultos. Uma vez branco, podia ir a qualquer lado, ser tudo o que quisesse, fazer o que desejasse, ser um homem livre, por fim… e talvez conhecer a rapariga de Atlanta. Que sonho!

Ergueu-se à pressa, pagou o pequeno-almoço, precipitou-se porta fora, quase esbarrou num velhote branco que transportava um cartaz a anunciar uma dança numa associação negra, e dirigiu-se quase em passo de corrida para o Hotel Phyllis Wheatley.

Galgou os degraus dois a dois até chegar ao salão. Estava repleto de jornalistas brancos dos jornais diários e jornalistas negros dos semanários negros. Entre eles, reconheceu o doutor Junius Crookman, alto, magro, negro como o ébano, com modos refinados e estudiosos. Estava flanqueado por Henry («Hank») Johnson, organizador de lotarias clandestinas, e Charlie («Chuck») Foster, agente imobiliário, com ar muito grave, solene e controlador no meio de todo aquele rebuliço.

— Sim — dizia o doutor Crookman aos jornalistas, que anotavam avidamente as suas declarações, — no meu primeiro ano de faculdade, reparei numa rapariga negra na rua que tinha várias manchas brancas irregulares no rosto e nas mãos. Fiquei intrigado. Comecei a estudar doenças de pele e concluí, sem sombra de dúvida, que a rapariga sofria de uma doença nervosa chamada vitiligo. É uma doença muito rara. Pode afligir tanto negros como caucasianos, mas é naturalmente mais evidente nos negros do que nos brancos. A doença elimina o pigmento da pele e, por vezes, torna um negro completamente branco, mas só após um período de trinta ou quarenta anos. Ocorreu-me que, se descobrisse um método artificial para induzir e estimular essa doença nervosa, talvez resolvesse o problema racial na América. O meu professor de Sociologia disse um dia que só havia três maneiras de um negro na América resolver o seu problema. — Começou a enumerá-los com os dedos compridos e finos. — Passar a fronteira, passar a branco ou passar bem. Como os negros não querem ou não conseguem sair do país e não estão a passar assim tão bem, pareceu-me que a única via era tornarem-se brancos.

Por um instante, os seus dentes cintilaram sob o bigode elegantemente encerado; depois, voltou a pôr-se sério e continuou:

— Comecei a estudar de modo bastante aprofundado o problema nos meus tempos livres. Infelizmente, havia pouquíssima informação sobre o tema neste país. Decidi ir à Alemanha, mas não tinha dinheiro. Justamente quando começava a perder a esperança de reunir os fundos necessários para levar a cabo as minhas experiências e estudar no estrangeiro, o senhor Johnson e o senhor Foster — indicou os dois homens com um gesto gracioso da mão vieram em meu auxílio. Naturalmente, devo-lhes grande parte do meu êxito.

— Mas como funciona? — perguntou um jornalista.

— Bom, evidentemente, não posso divulgar o segredo — respondeu Crookman com um sorriso, — mas posso dizer que assenta na nutrição eléctrica e no controlo glandular. Estimulam-se bastante as segregações de certas glândulas, ao mesmo tempo que se reduzem consideravelmente outras. É um tratamento muitíssimo forte e perigoso, mas inofensivo se feito da maneira correcta.

— E que acontece ao cabelo e às feições do rosto? — perguntou um jornalista negro.

— Também são transformados no processo — respondeu o biólogo. — Em três dias, o negro assume todo o aspecto de um caucasiano.

— Mas a transformação transmite-se aos descendentes? — insistiu o jornalista negro.

— Até ao momento — respondeu Crookman, — não descobri modo de alcançar um resultado tão revolucionário, mas sou capaz de transformar uma criança negra numa criança branca em vinte e quatro horas.

— Já testou o método em algum negro? — quis saber um céptico jornalista branco.

— Com certeza que sim — disse o doutor, ligeiramente abespinhado. — Não teria feito o meu anúncio se assim não fosse. Vem cá, Sandol — chamou, virando-se para um jovem branco e pálido postado à margem da multidão e com o aspecto mais nórdico de todos os presentes. — Este homem é senegalês, antigo aviador do exército francês. É a prova viva da veracidade das minhas afirmações.

O doutor Crookman exibiu então a fotografia de um homem muito negro, algo parecido com Sandol, mas com cabelos crespos, nariz largo e lábios grossos.

— Este é o Sandol — anunciou, cheio de orgulho — antes do meu tratamento. O que fiz com ele, posso fazer a qualquer negro. Como podem ver, ele goza de boa condição física e mental.

O público ficou boquiaberto. Depois de fazerem mais anotações e tirarem várias fotografias do doutor Crookman, dos seus sócios e de Sandol, os jornalistas retiraram-se. Só permaneceu o garboso Max Disher.

— Olá, doutor! — disse, aproximando-se de mão estendida. — Não te lembras de mim? Sou o Max Disher.

— Claro que me lembro de ti, Max — respondeu cordialmente o biólogo, levantando-se. — Há muito tempo que não nos víamos, mas estás tão janota como sempre. Como vais?

Os dois homens deram um aperto de mão.

— Oh, tudo bem. Ouve, doutor, que me dizes de experimentar a tua coisa comigo? Deves andar à procura de voluntários.

— Sim, mas não para já. Primeiro tenho de instalar o equipamento. Penso estar pronto a começar daqui a duas ou três semanas.

Henry Johnson, o organizador de lotarias clandestinas, mulato robusto de bochechas macias, soltou uma risada e cutucou o doutor Crookman.

— Aqui o Max ‘tá cheio de pressa, doutor. Quando este preto for branco, vai logo recuperar o tempo que perdeu sem as branquinhas.

Charlie Foster, baixo, magro, sério, da cor do âmbar e lacónico, falou por fim:

— Parece bem, Junius, mas vai ser um inferno quando aclarares os escurinhos todos e começarem a aparecer bebés mulatos por toda a parte. Aí como é?

— Oh, pára lá de agoirar, Chuck — irrompeu Johnson. — Não metas a carroça à frente dos bois. O doutor trata dessas coisas. E, depois, nessa altura já a gente tem mais carcanhol que o Henry Ford.

— Em todo o caso, não haverá problemas — assegurou Crookman, com um toque de impaciência.

— Esperemos que não…

Notas

  1. À letra, «Coelhinho Castanho».
  2. Cintura Negra. Nome por que era conhecido o Harlem, na época.
  3. À letra, «intrujão».

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