Estupor e impostura
Desde que soube, ao ler o Prémio Nobel Eric Kandel, que em todas as alterações psiquiátricas há um problema na cablagem, impedindo que as sinapses comuniquem adequadamente, percebo muito melhor o funcionamento do meu cérebro. E assim, agora, quando me assalta um estupor, quase me parece estar a ver uma dessas simulações dos genéricos das séries CSI ou Dr. House, nas quais o ecrã do televisor se enche de circuitos neurais e de inputs luminosos que de repente chocam ou desaparecem. Sabem, todo esse alvoroço elétrico que temos aqui em cima.
Comecei este livro a explicar que sempre soube que alguma coisa funcionava mal na minha cabeça e, para dizer a verdade, não era preciso ser um lince para me dar conta disso. Em primeiro lugar, por ser tão despistada. Suponho, embora ninguém o tenha diagnosticado (felizmente), que tenho um problema de défice de atenção, o que não significa, ao contrário do que muitos creem, que não consiga concentrar-me, mas que pessoas assim se concentram tanto em alguns pensamentos que se esquecem de tudo o resto. Míope como sou, passei metade da vida à procura dos meus óculos e a maior parte das vezes encontro-os dentro do frigorífico (tenho-os na mão, abro o frigorífico para tirar a água, pouso os óculos para pegar na garrafa e vou-me embora sem registar de uma forma consciente o que acabei de fazer). Se tenho muita confiança em alguém, ou a suficiente para me sentir realmente descontraída, às vezes estou a contar qualquer coisa e de repente calo-me para sempre a meio da história, embebida mentalmente nalguma ideia paralela que as minhas palavras iluminaram (acontecia-me muitas vezes com Pablo, o meu marido, e o coitado ficava fora de si). E não consigo voltar a pôr na torradeira uma torrada que ficou demasiado branca sem a queimar. Digo sempre para comigo: Desta vez fico atenta e tiro-a a tempo. Mas, por mais ridículo que pareça, não consigo ficar concentrada durante um minuto em algo tão esmagadoramente aborrecido como uma torradeira sem desatar a pensar noutra coisa, e sem o pão se queime.
Tudo isto, embora irritante, até tem alguma graça e é divertido. Muito menos encanto têm os momentos de estupor que, como agora percebo claramente (obrigada, Kandel), são pequenos instantes de desconexão parcial. O pestanejar de um circuito mal integrado. Por exemplo, escrevi inúmeras vezes sobre Sócrates em livros e artigos: sobre a cicuta, as suas horas finais, a sua fealdade; escrevi acerca dele até ao tédio, diria eu. Mas, inesperadamente, há dias queria citá-lo mais uma vez e pensei: Sócrates… ou seria Séneca? Ou algum outro filósofo com a letra S? Qual deles era o raio do filósofo da cicuta? Uma mancha branca, uma névoa, uma nuvem parecia ter borrado esse fragmento concreto do meu conhecimento e da minha memória. Essa parte do mundo. Ou então saio de uma loja numa zona de Madrid que conheço perfeitamente e, de repente, não sei em que ponto da rua estou, se tenho de ir para baixo ou para cima. Esses momentos de estupor (que se sentem como bolhas na nuca) só duram uns segundos, quando muito alguns minutos, se me enervo, mas existe sempre o receio de que aconteçam e de dizer em público qualquer estupidez, de parecer uma analfabeta colossal (por isso levo sempre tudo anotado para as minhas palestras). Já me aconteceu terem-se-me baralhado os fios e dizer uma barbaridade enorme. E como é impossível explicar ao nosso interlocutor o que se passa, o erro garrafal fica gravado na nossa memória durante anos, até décadas, quem sabe se por toda a vida, uma tortura obsessiva, para mais acrescida da virtude destrutiva de nos convencer, mais uma vez, de que somos impostores.
Como disse anteriormente, a nós, escritores, e particularmente aos romancistas, encantam-nos os impostores; mas a verdade é que creio que temos uma tendência notável para nos sentirmos uma fraude: «Sou uma traidora, uma pecadora, uma impostora», escreveu nos seus diários uma desesperada Sylvia Plath. «Nos dias bons sinto-me um impostor», diz Emmanuel Carrère em Yoga. «Nem sequer sou um verdadeiro artista, mas uma espécie de impostor que escreve a partir do asco mais absoluto», considerou Charles Bukowski. Podia continuar até à exaustão, porque há muitos exemplos. Trata-se da chamada «síndrome do impostor»; foi descrita pela primeira vez em 1978 pelas psicólogas Pauline Clance e Suzanne Imes no artigo «The Impostor Phenomenon in High Achieving Women», publicado em Psychotherapy: Theory, Research and Practice. Clance e Imes descobriram nas suas sessões clínicas que muitas mulheres, profissionais de sucesso, se sentiam, no entanto, impostoras no trabalho; que julgavam não dominar a profissão onde se destacavam e sofriam de uma enorme ansiedade por medo de as suas carências serem descobertas. Agora sabe-se que também acontece aos homens, embora nos afete um pouco mais (o rácio é de cada dez mulheres para oito homens), uma desigualdade lógica se tivermos em conta que o mundo profissional continua a estar construído maioritariamente para eles. É um fenómeno psicológico que, de qualquer forma, está relacionado com o perfeccionismo, mas que acredito abundar também entre os escritores, porque comunica com esse Eu carente de osso que nós, os literatos, temos. Com a multiplicidade e com a falta de fiabilidade interior. E se, além disso, temos estupores e se nos mistura tudo, a sensação de fraude é enorme.
Há um caso terrível da síndrome do impostor que é a do filósofo francês Louis Althusser. Foi um homem que sofreu de gravíssimos problemas mentais; aos vinte e nove anos diagnosticaram-lhe uma psicose maníaco-depressiva e foi internado uma vintena de vezes em diversos hospitais psiquiátricos. Em 1980 começou a dar uma massagem à mulher, a socióloga Hélène Rytmann, com quem vivia há trinta e cinco anos, e acabou a estrangulá-la até à morte. Declararam-no inapto para ser julgado por ter sofrido um episódio de loucura e voltaram a interná-lo durante três anos. Em 1992, dois anos depois da sua morte, publicou-se a sua autobiografia, O Futuro É muito Tempo, na qual conta, de modo dilacerante, que se considerava um cobarde e um impostor. Que albergava desejos homossexuais que nunca concretizou; que passava por filósofo eminente quando a verdade é que tinha enormes lacunas de conhecimento: não sabia nada de Aristóteles, nem dos sofistas, nem dos estoicos, nem de Kant (imagino-o num estupor a dizer para consigo: «Aristóteles? Ou será Aristarco? Ou, quem sabe, Anaxarco?»). E que foi considerado um herói na Segunda Guerra Mundial porque esteve num campo de prisioneiros alemão durante cinco anos, mas que, na realidade, tinha sofrido de um tal «completo terror total» com a ideia de combater, que inventara doenças para evitar missões e que, quando os alemães o capturaram, se sentiu aliviado. Pobre Althusser, que viveu, como dissemos antes, esmagado pelo imperativo heroico desse tio e primeiro noivo da mãe de quem tinha herdado o nome, morto em combate na Grande Guerra! De facto, foi ao voltar do campo de prisioneiros que a psicose de Althusser surgiu oficialmente: teve a pouquíssima sorte de lhe calhar viver outra guerra mundial na qual mediu forças com o seu fantasma. Evidentemente, perdeu.
Acrescentarei que desconfio de que na mente de um escritor há outros ingredientes que contribuem para que nos sintamos uma fraude. Creio que é um problema com o entomólogo, com o cuidador que tudo sabe e nada sente. Se realmente acharmos que não sentimos nada, isso significa que não amamos ninguém. E, se não amamos, não seremos os maiores impostores do universo? Num texto autobiográfico escrito por Virginia Woolf numa idade madura, ela descreve o momento em que a mãe morreu; tinha treze anos e fizeram-na entrar no quarto para se despedir: «Não sinto absolutamente nada», lembra-se de pensar. «Então, inclinei-me e dei um beijo à minha mãe na cara. Ainda estava quente. Tinha morrido há minutos.» Eis a entomóloga a trabalhar ao máximo. E, no entanto, Virginia adorava a defunta: de facto, a sua primeira crise mental – a impossibilidade de saltar o charco que já contámos anteriormente – deu-se aos treze anos, depois desse desaparecimento materno diante do qual ela acreditava não ter sentido «absolutamente nada». Este é um dos já mencionados traumas fundacionais que nos destroem a infância. Embora a de Virginia já tivesse sido destruída muito antes: desde os sete anos sofreu os abusos sexuais de dois meios-irmãos que rondavam os vinte anos.
De modo que o cuidador às vezes pode travar demasiado tarde. E suponho que aqui, como em tudo, a chave está no equilíbrio entre a percentagem de desapego e a percentagem de sentimento, em atingir alguma harmonia entre o Eu que sofre e o Eu que controla. Pressinto que as pessoas mais transtornadas, aquelas a quem a doença mental fere mais gravemente, têm mais dificuldade para se reconhecerem nas suas emoções. Por exemplo, chocou-me ver nos diários fascinantes de Sylvia Plath como ela parece utilizar toda a gente que conhece (exceto os homens por quem julga apaixonar-se: a paixão é a sua fuga) como simples documentação para a sua obra: «Gosto de pessoas, de toda a gente. Creio que gosto delas como o colecionador de selos gosta da sua coleção. Cada episódio, cada incidente, cada pedaço de conversa são, para mim, matéria-prima.» Esta tendência para desumanizar os outros e transformá-los em objetos de estudo vai piorando com os anos; dir-se-ia que Plath não é capaz de ter um amigo, uma amiga. Já no fim dos diários as entradas começam a ser um pouco arrepiantes: parece que absolutamente tudo o que ela vive é transformado em notas de trabalho, para mais tarde poder escrever acerca disso. Por exemplo, os vizinhos da frente são um casal de velhos. O homem adoece com gravidade; fica incapacitado e, cuidado pela mulher, sofre em agonia durante meses. Ted, o marido de Sylvia, ajuda-os de vez em quando; Sylvia também os visita uma vez por outra, mas eu diria que somente para tomar notas. De facto, um dia fica a saber que o vizinho acaba de ter um derrame cerebral e está quase a morrer, sendo apenas uma questão de horas. E então decide visitá-lo, instando-se com estas palavras: «Vai lá, tens de o ver; nunca viste um derrame cerebral nem ninguém morto.»
Sim, suponho que há escritores vampíricos que perderam completamente o contacto com o seu Eu sofredor; ou, o que vai dar ao mesmo, com o seu coração. Talvez esses romancistas, que não têm pejo em utilizar, quase sem disfarce, as pessoas reais nos livros, sejam todos um pouco filhos de Drácula. Mas não quero condenar ninguém, nem tenho razão para tal; é muito possível que ajam assim porque, se se permitissem um maior contacto com as suas emoções, se desmoronariam. De qualquer modo, não me reconheço nisto. Verdade número dois: somos todos diferentes.
Mas já que falamos de imposturas, deixem-me contar-vos uma pequena história. Cerca de um ano depois da noite agitada em torno de Constantino, fui a uma festa em casa de uns amigos. Deviam estar umas trinta pessoas e, a dada altura, a dona da casa aproximou-se e apresentou-me Pedro Zarco, um eminente cardiologista que eu não conhecia, mas admirava (ironicamente, morreu em 2003 de um enfarte). Apertei-lhe a mão com entusiasmo e comecei a dizer-lhe como me interessavam os seus trabalhos, mas a minha loquacidade foi esmorecendo diante da expressão de total perplexidade do médico. Acabei por me calar, momento que Zarco aproveitou para me perguntar:
— É a Rosa Montero?
— Sim.
— A Rosa Montero que trabalha no El País, a que faz entrevistas?
— Sim, sim, claro.
Já vos disse que nessa altura me tinha tornado mais ou menos famosa, mas tanto o meu aspeto como a minha voz eram ainda muito pouco conhecidos. O Dr. Zarco olhou para mim, consternado.
— Não é possível. Como posso ter a certeza? – murmurou.
— Perdão?
— Há três semanas estive a almoçar com uma Rosa Montero e não era a senhora.
Passada meia hora, e depois de verificar a minha identidade com os amigos, o cardiologista pôs-me ao corrente da história. Acontecera durante a apresentação do livro de um conhecido, no hotel Palace; depois houve um cocktail e calhou estarem ambos junto ao balcão, a servir-se de aperitivos, na mesma altura. A conexão foi tão fácil e imediata que se afastaram os dois para uma das mesinhas altas com os pratos de plástico, onde estiveram à conversa por um bom bocado.
— Disse-lhe que gostava muito das suas entrevistas e artigos, ou seja, das tuas entrevistas e artigos, e ela comentou que o meu trabalho também lhe interessava… Era uma rapariga muito esperta e simpática. Não sei, parecia tudo tão normal. Ela esteve a contar-me algumas coisas das entrevistas…
– Coisas? Que coisas?
— Não sei, pormenores… Que quando entrevistou o aiatola Khomeini em França, o tipo não a olhou nos olhos uma única vez…
Não foi exatamente assim; quem não conseguiu olhar para ele fui eu. Obrigaram-me a cobrir o cabelo, a testa e as sobrancelhas com um lenço, sem um único pelo pecaminoso à mostra, e avisaram-me que teria de manter a minha cabeça mais baixa do que a do aiatola durante todo o tempo, algo francamente difícil, porque o homem era velho e pequeno e estava sentado numa almofada no chão, pelo que tive de fazer a entrevista praticamente deitada sobre o tapete. De modo que não foi como dizia essa rapariga, mas também não era uma observação mentirosa ou despropositada. Claro que tudo isso podia deduzir-se do texto da minha entrevista, mas isso indicava que a mulher me lia, me seguia, que conhecia bem o meu trabalho. Fiquei apavorada; outros talvez pudessem achar engraçada semelhante situação, uma história banal e divertida para animar as reuniões de amigos, mas a mim inquietava-me e angustiava-me. Zarco também não parecia achar a mais pequena graça.
— E o pior não é isso… – continuou, e o meu estômago encolheu. — O pior é que prometeu que me mandaria o seu romance. E eu, imbecil, dei-lhe a minha morada. A minha morada! Mas como poderia saber? E ela mandou-mo.
Uma semana depois recebi em casa esse livro, reenviado pelo cardiologista. Era Crónica del desamor, um exemplar da nona edição, da editora Debate. A dedicatória dizia: «Para o Dr. Zarco, com a minha admiração, este meu primeiro livro ainda titubeante. Um beijo, Rosa Montero.» A letra não tinha nada a ver com a minha — era pequena, apertada e inclinada –, mas o texto podia muito bem ter sido eu a escrevê-lo. Espreitar aquela página tornou a realidade um pouco escorregadia.
— E fisicamente, como era ela? – perguntei ao cardiologista.
— Normal. Teriam a mesma idade, mas era muito bonita. Ou seja, quero dizer que não era normalmente bonita… Bom, estou a meter os pés pelas mãos. A verdade é que era lindíssima.
Um ato falhado, como lhe chamaria o Dr. Freud. Esse «mas» deixou o médico corado e a mim, divertida e também um pouco ofendida, é preciso reconhecê-lo. Portanto, era lindíssima. Suponho que essa beleza contribuiu para a sua credibilidade e para a sua simpatia, e não estou a dizer que Zarco tivesse nenhuma intenção de a seduzir ou, sequer, de namoriscar com ela, mas as pessoas mais bonitas parecem imediatamente mais espertas, melhores, mais amáveis, uma ilusão aborrecida que afeta homens e mulheres por igual e que está sobejamente estudada. Embora por um lado me tenha desgostado que fosse mais atraente do que eu, porque nessa altura ainda arrastava um desses abundantes complexos físicos que são tão comuns nas mulheres mais novas, por outro senti-me lisonjeada: pelo menos essa fingida Rosa Montero era bonita e deixava ficar bem o meu nome. Estas considerações ridículas ofuscaram-me o cérebro e impediram-me de me aperceber completamente da importância do que estava a acontecer. Porque essa foi a primeira vez que a Outra apareceu oficialmente na minha vida.
Depois desse dia, nunca mais encontrei o Dr. Zarco. Mas ainda tenho em casa esse exemplar do meu livro.
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