PARTE UM

LENNI

Quando as pessoas dizem «terminal», penso em aeroportos.

Imagino uma vasta zona de check-in com teto alto e paredes de vidro, os funcionários de fardas iguais à espera que lhes diga o meu nome e os dados do meu voo, à espera que me perguntem se alguém mexeu na minha bagagem além de mim e se vou viajar sozinha.

Imagino as expressões vazias dos passageiros a olharem para os ecrãs, famílias a abraçarem-se com promessas de uma próxima vez. E imagino-me no meio dessas pessoas, com a mala de viagem a rodar atrás de mim com tanta facilidade sobre o chão altamente polido, que poder-se-ia dizer que estou a flutuar, enquanto procuro o meu destino no ecrã das partidas e chegadas.

Tenho de me esforçar para sair desse cenário e lembrar-me de que não é esse tipo de terminal que se aplica a mim.

Livro: Os Cem Anos de Lenni e Margot

Autora: Marianne Cronin

Editora: Editorial Presença

Data de lançamento: 7 de julho

Preço: 16,11€

Ultimamente, começaram a dizer «limitações» em vez de «terminal». «Crianças e jovens com limitações...»

A enfermeira di-lo delicadamente, enquanto me explica que o hospital começou a disponibilizar um serviço de aconselhamento para os jovens com doença «terminal». Hesita e fica muito corada.

Desculpe, eu queria dizer jovens com limitações.

Pergunta-me se quero inscrever-me. O psicólogo poderia ir ter comigo, ou poderia ser eu a ir ter com ele à sala de aconselhamento para adolescentes. Agora, já lá há uma televisão. As opções parecem ilimitadas, mas o termo não é novo para mim. Passei muitos dias no aeroporto. Anos.

Apesar disso, não me fui embora.

Faço uma pausa, fixando o relógio voltado ao contrário que ela tem preso ao bolso do peito. Balança conforme ela vai respirando.

Quer que inclua o seu nome? A psicóloga, a Dawn, é uma pessoa encantadora.

Obrigada, mas não. Já estou a fazer terapia.

Ela franze a testa e inclina a cabeça de lado.

Já?

Os Cem Anos de Lenni e Margot

LENNI E O PADRE

Fui ao encontro de Deus, porque é uma das únicas coisas que posso fazer aqui. As pessoas dizem que, quando morremos, é porque Deus está a chamar-nos para si e, por isso, pensei saltar a introdução e avançar antecipadamente. Além disso, ouvi dizer que os funcionários são obrigados por lei a deixar ir à capela do hospital as pessoas com convicções religiosas, e não ia desperdiçar a oportunidade de ir a uma sala onde ainda não tinha estado e, ao mesmo tempo, encontrar-me com o Todo-Poderoso. Uma enfermeira que nunca tinha visto, de cabelo cor de cereja, deu-me o braço e guiou-me pelos corredores dos mortos e dos moribundos. E eu ia devorando todas as coisas novas que via, todos os novos cheiros, todos os pijamas trocados com que me ia cruzando.

Acho que posso dizer que a minha relação com Deus é complicada. Para mim, ele é uma espécie de poço dos desejos cósmico. Pedi-lhe coisas algumas vezes, e em alguns casos ele deu-mas. Noutros casos, ficou em silêncio. Ou, como ultimamente comecei a pensar, talvez de todas as vezes que pensei que Deus tinha ficado em silêncio, ele estivesse calmamente a depositar mais coisas erradas no meu corpo, uma espécie de «vai à merda» secreto por me atrever a desafiá-lo, que viria a descobrir mais tarde. Um tesouro escondido à espera que eu o descobrisse.

Quando chegámos à porta da capela, não fiquei impressionada. Estava à espera de um elegante arco gótico e, em vez disso, deparei com uma porta de madeira com vidraças quadradas de vidro fosco. Fiquei a pensar porque precisaria Deus daqueles vidros foscos. O que andará ele a fazer lá dentro?

Eu e a enfermeira nova mergulhámos no silêncio que estava para lá das portas.

Ora viva! — disse ele.

Devia ter uns sessenta anos e estava com uma camisa e umas calças pretas e um colarinho branco de padre. E, pela cara dele, dir-se-ia que, naquele momento, estava no auge da felicidade.

Senhor padre — disse, à laia de cumprimento.

Esta é a Lenni... Peters? — A enfermeira nova voltou-se para mim para que eu confirmasse.

Pettersson.

Soltou-me o braço e acrescentou amavelmente:

É da Enfermaria Maio.

Era a forma mais simpática que tinha de o dizer. Acho que ela sentiu que tinha obrigação de o avisar, porque ele parecia tão entusiasmado como uma criança a receber um comboio elétrico num embrulho com um grande laço quando, na realidade, a prenda que ela estava a dar-lhe já estava partida. Podia apegar-se a ela, se quisesse, mas as rodas já estavam a sair e, provavelmente, a prenda não ia durar até ao Natal seguinte.

Peguei no tubo que estava preso ao saco pendurado no porta-soros e encaminhei-me para ele.

Volto daqui a uma hora — disse-me a enfermeira nova e depois disse mais qualquer coisa, mas eu não estava a ouvir. Estava a olhar para cima, para o sítio por onde a luz entrava e para o brilho com todos os tons rosa e púrpura imagináveis que atingia as minhas pupilas.

Gostas da janela? — perguntou-me o padre.

Uma cruz de vidro castanho atrás do altar iluminava toda a capela. A cruz era revestida por estilhaços de vidro violeta, cor de ameixa, fúcsia e cor-de-rosa.

Era como se a janela inteira estivesse a arder. A luz espalhava-se pela alcatifa, pelos bancos e pelos nossos corpos.

Ele ficou pacientemente à espera ao meu lado, até eu estar preparada para olhar para ele.

Tenho muito gosto em conhecer-te, Lenni — disse ele. — Sou o Arthur. — Deu-me um aperto de mão e, honra lhe seja feita, não estremeceu quando os seus dedos tocaram no sítio onde o cateter está enterrado na minha pele. — Queres sentar-te? — perguntou, apontando para as filas de bancos vazios. — Tenho muito gosto em conhecer-te.

Já disse isso.

Ah, disse? Desculpa.

Fui andando com o porta-soros atrás de mim e, quando cheguei ao pé do banco, apertei melhor a bata à volta da cintura.

Importa-se de dizer a Deus que peço desculpa por estar de pijama? — pedi-lhe, enquanto me sentava.

Acabaste de lhe dizer. Ele está sempre a ouvir — retorquiu o Padre Arthur, sentando-se ao meu lado. Eu estava a olhar para a cruz.

Então, Lenni, o que é que te trouxe hoje à capela?

Estou a pensar comprar um BMW em segunda mão.

Não sabia como lidar com a minha resposta e, por isso, pegou na Bíblia que estava no banco ao lado dele, folheou-a sem olhar para as páginas e tornou a pousá-la.

Já vi que... que gostas da janela.

Acenei com a cabeça.

Fez-se uma pausa.

Está na sua hora de almoço?

Desculpa?

É que... estava a pensar se tem de fechar a capela e ir ao refeitório com as outras pessoas todas, ou se pode ficar aqui?

Eu, hum...

Acho que é um bocado de descaramento descontar o tempo do almoço quando, basicamente, tem o tempo todo por sua conta.

Por minha conta?

Bem, estar sentado numa igreja vazia não é um trabalho lá muito exigente, pois não?

Isto nem sempre está assim tão sossegado, Lenni.

Olhei para ele para ver se não o tinha ofendido, mas não consegui perceber.

Aos sábados e domingos há missa, há leituras da Bíblia para crianças às quartas-feiras à tarde, e vêm cá mais pessoas do que possas imaginar. Os hospitais são um sítio assustador; sabe bem estar num sítio onde não há médicos nem enfermeiras.

Voltei a concentrar-me no vitral da janela.

Então, Lenni, há alguma razão em especial para a tua visita hoje?

Os hospitais são um sítio assustador — respondi. — Sabe bem estar num sítio onde não há médicos nem enfermeiras.

Acho que o ouvi dar uma gargalhada.

Queres ficar sozinha? — perguntou e, pela sua voz, não me pareceu magoado.

Não faço questão.

Queres falar de alguma coisa em particular?

Nem por isso.

O Padre Arthur deu um suspiro.

Queres saber como é o meu intervalo para o almoço?

Quero, por favor.

Costuma ser da uma até à uma e vinte. Como pão branco cortado em pequenos triângulos com ovos e agriões, preparados pela minha empregada. Tenho um escritório para lá daquela porta — apontou — e demoro um quarto de hora a comer o pão e cinco minutos a beber o chá. Depois volto para aqui. Mas a capela está sempre aberta, mesmo quando estou no escritório.

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Pagam-lhe para estar aqui?

Não, ninguém me paga.

Então, como é que tem dinheiro para as sanduíches de ovo e agrião?

O Padre Arthur deu uma gargalhada.

Ficámos sentados em silêncio durante algum tempo e, depois, ele começou outra vez a falar. Para um padre, não parecia dar-se muito bem com o silêncio. Para mim, o silêncio permitiria a Deus dar-se a conhecer. Mas, pelos vistos, o Padre Arthur não gostava do silêncio e, por isso, falámos sobre a empregada dele, a Sra. Hill, que lhe manda sempre um postal quando vai de férias e, depois, quando regressa, tira o postal do monte da correspondência que ele recebe e cola-os ao frigorífico. Falámos de como as lâmpadas são mudadas atrás do vitral (há uma passagem secreta pela parte de trás). Falámos de pijamas. E, apesar de estar com um ar tão cansado, quando a enfermeira nova veio buscar-me, disse-me que esperava que eu voltasse.

Ainda assim, acho que ele ficou surpreendido, quando apareci na tarde do dia seguinte, com um pijama lavado e sem o soro. A enfermeira-chefe, Jacky, não gostou nada da ideia de eu ir lá dois dias seguidos, mas olhei-a nos olhos e disse-lhe baixinho:

É muito importante para mim.

Quem é que tem coragem para dizer não a uma criança que está a morrer?

Quando Jacky chamou uma enfermeira para me levar pelos corredores, foi a enfermeira nova que apareceu. A do cabelo cor de cereja, que chocava com a farda azul como se não houvesse amanhã. Ela só estava na Enfermaria Maio há uns dias e estava nervosa, sobretudo com as crianças do aeroporto, e desesperada por que alguém lhe garantisse que estava a fazer um bom trabalho. Quando íamos pelo corredor a caminho da capela disse-lhe que ela era impecável a acompanhar-me. Acho que ela gostou.

Mais uma vez, só o Padre Arthur é que estava na capela, sentado num banco, com umas vestes brancas compridas por cima do fato preto e a ler. Não a Bíblia, mas um livro A4 com uma encadernação barata e uma capa laminada brilhante. Quando a Enfermeira Nova abriu a porta, e eu entrei, agradecendo-lhe, Arthur não se voltou logo para nós. A Enfermeira Nova deixou a porta fechar-se atrás de nós, e só com o som surdo e pesado é que ele se voltou, pôs os óculos e sorriu.

Pastor, hum... Reverendo? — balbuciou a Enfermeira Nova. — Ela, hum, a Lenni pediu-nos se podia passar uma hora aqui. Pode ser?

Arthur fechou o livro no colo.

Claro que sim — respondeu.

Obrigada, Vigário...? — disse a Enfermeira Nova.

Padre — murmurei. Ela fez uma careta, ficou muito vermelha — o que chocou com o cabelo — e depois saiu sem dizer nem mais uma palavra.

Eu e o Padre Arthur sentámo-nos no mesmo banco. As cores do vitral estavam tão encantadoras como no dia anterior.

Isto está outra vez vazio — observei. As minhas palavras ecoaram. O Padre Arthur não disse nada. — Costumava ter mais gente? Quer dizer, quando as pessoas eram mais religiosas?

Tem mais gente — disse o padre.

Voltei-me para ele.

Somos as únicas pessoas que estamos aqui. — Era óbvio que ele estava em negação. — Não faz mal não querer falar disso — continuei. — Deve ser complicado. É como se estivesse a dar uma festa e ninguém aparecesse.

Achas?

Acho. Está aqui com o seu melhor vestido de festa branco com uvas e outras coisas bordadas, e...

São paramentos. Não é um vestido.

Que seja, paramentos. Está aqui com os seus paramentos de festa, já tem a mesa posta para o almoço...

É um altar, Lenni. E não é para almoçar. É para a Eucaristia. O pão de Cristo.

O quê? E ele não o partilha?

O Padre Arthur olhou para mim.

É para a missa de domingo. Não como o pão sagrado ao almoço, nem almoço no altar.

Claro. Porque tem ovos e agriões no escritório.

Pois tenho — confirmou, corando ligeiramente por eu me lembrar de uma coisa sobre ele.

Portanto, tem tudo pronto para a festa. Tem música — apontei para o triste rádio com CD e cassete que estava num canto, com uma pilha muito direitinha de CD ao lado — e tem montes de lugares para toda a gente. — Apontei para as filas de bancos vazios. — Mas não vem ninguém.

À minha festa?

Todos os dias, todinhos, dá uma festa para Jesus, e ninguém vem. Deve ser uma sensação horrível.

Isso é... hum... Bem, é uma maneira de ver as coisas.

Desculpe se estou a tornar a situação ainda pior.

Não estás a piorar nada, mas isto não é uma festa, Lenni. É um local de culto.

Pois. Não, eu sei isso, mas o que eu quero dizer é que já passei por isso. Uma vez, a minha mãe organizou uma festa para mim, quando eu fiz oito anos, e tinha acabado de me mudar da Suécia para Glasgow. A minha mãe convidou todos os miúdos da minha turma, mas não veio nenhum. Mas, nessa altura, o inglês da minha mãe era uma desgraça e, por isso, há fortes probabilidades de terem ido todos para o sítio errado, com presentes e balões, à espera que a festa começasse. Pelo menos, foi o que eu disse para mim própria na altura.

Fiz uma pausa.

Continua — sugeriu Arthur.

E, quando estava sentada nas cadeiras da sala de jantar que a minha mãe tinha disposto em círculo, à espera de que alguém aparecesse, senti-me muito mal.

Lamento que isso tenha acontecido.

Portanto, é o que estou a dizer-lhe. Sei o que custa quando ninguém vem à nossa festa. Só queria dizer que tenho pena. Acho que não deve negá-lo. Só conseguimos resolver um problema se o encararmos.

Mas isto é concorrido, Lenni. É concorrido porque tu estás aqui. É concorrido porque está cá o espírito do Senhor.

Olhei para ele.

Mexeu-se no banco.

E, além disso, um pouco de solidão não deve ser motivo de riso. Isto pode ser um local de culto, mas também é um lugar de paz. — Olhou para o vitral. — Gosto de poder falar a sós com os doentes; significa que posso dedicar-lhes toda a minha atenção, e não me interpretes mal, Lenni, mas acho que és o tipo de pessoa a que o Senhor gostaria que eu dedicasse toda a minha atenção.

Ri-me do que ele disse.

Pensei em si à hora de almoço — disse-lhe. — Tornou a comer ovos e agriões?

Comi.

E?

Estava ótimo, como sempre.

E a senhora...?

Hill, a senhora Hill.

Contou a nossa conversa à senhora Hill?

Não. Tudo o que é dito aqui é confidencial. É por isso que as pessoas gostam tanto de cá vir. Podem dizer tudo o que quiserem sem se preocuparem se alguém vai descobrir.

Então, é um confessionário?

Não, mas se quiseres confessar-te, terei todo o gosto em tratar disso.

Se não é um confessionário, então o que é?

É o que tu quiseres que seja. A capela está aqui para ser o que precisares que ela seja.

Olhei para as filas de bancos vazios, para o órgão eletrónico tapado com um pano bege, o quadro dos recados com uma imagem de Jesus lá presa. O que é que eu queria que aquele lugar fosse, já que podia ser qualquer coisa?

Gostava que fosse um lugar de respostas.

Pode ser.

Pode? A religião consegue responder a alguma pergunta?

Lenni, a Bíblia ensina-nos que Cristo pode guiar-nos até à resposta para todas as perguntas.

Mas consegue mesmo responder a uma pergunta? Honestamente? Consegue responder-me a uma pergunta sem me dizer que a vida é um mistério, ou que Deus tem um plano para tudo, ou que as respostas que eu procuro hão de vir a seu tempo?

Porque é que não me dizes qual é a pergunta, e depois tentamos perceber os dois em conjunto de que forma Deus pode ajudar-nos a descobrir uma resposta?

Recostei-me no banco, e ele rangeu. O som ecoou por toda a capela.

Porque é que eu estou a morrer?

Porque o seu tempo é precioso.

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