Estavam a esquecer a chuva miudinha que ia caindo. Aos grupos, três, cinco, doze ou mais amigos, roupa, urbana: hoodies, bonés, sapatilhas de marca, camisolas de equipas de futebol ou basquetebol. A maralha era já considerável a meia hora da abertura de portas e, assim que o gongo imaginário soou, partiram todos na debandada habitual de quem não quer perder a oportunidade de ver o seu artista o mais de perto possível.

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PRIMAVERA SOUND PORTO 2023 _ © Hugo Lima | hugolima.com | www.fb.me/hugolimaphotography | instagram.com/hugolimaphoto créditos: Hugo Lima | Primavera Sound

O artista era Kendrick Lamar, regressado à excelente forma com “Mr. Morale & The Big Steppers”, álbum editado o ano passado e que se revelou um dos melhores de 2022. Um álbum onde Kendrick olha ainda mais para a sua própria experiência, para as suas próprias falhas, desde o adultério aos seus problemas de saúde mental, desde o vício à forma como tem que lidar com a fama. Praticamente sozinho em palco contra a meteorologia, que por algumas vezes ia dando tréguas, o rapper norte-americano encabeçou este primeiro dia de Primavera Sound Porto com uma espécie de best of de carreira. “Já aqui ando desde 2006”, atiraria mais perto do final, depois de enumerar cada um dos seus trabalhos de estúdio.

De um grande espetáculo pouco se viu – nos dois sentidos da expressão. Tal como em Barcelona, Kendrick Lamar entrou em palco em frente a uma enorme cortina, com uma pintura de dois jovens negros e a mensagem: “não é necessário disparar tiros de aviso”. Simbolismo óbvio: era e é um protesto contra a violência policial e o racismo, que no seu país de origem continua a provocar demasiadas vítimas a cada dia. Isso, e uns quantos performers de palco, em danças estranhas, aliados a algum fogo de artifício, foram as únicas distrações visuais da música.

O segundo sentido prende-se com a nova disposição do palco principal do Primavera Sound Porto, agora denominado Palco Porto. Com a Rotunda da Anémona e o Atlântico a enquadrar o horizonte, o que está para além da estrutura até pode ser mais belo ao olhar, mas é preciso conseguir olhar. Se nos anos anteriores um declive ia ajudando quem sofre com a distância e a miopia, desta feita é necessário um esforço considerável, ou uma clara apetência para fazer cosplay de sardinha em lata, para conseguir ver o que quer que seja de perto. O facto de a chuva ter tornado o campo relvado onde o palco se situa num autêntico pantanal não ajudou. Cá atrás, mais perto da zona de restauração que outra coisa, o alcatrão impediu que as botas se ensopassem ainda mais, mas também impediu a percepção do que se ia passando.

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PRIMAVERA SOUND PORTO 2023 _ © Hugo Lima | hugolima.com | www.fb.me/hugolimaphotography | instagram.com/hugolimaphoto créditos: Hugo Lima | Primavera Sound

Restava a música. O hello new world! de 'N95' deu o mote para o que seguiria: um concerto que agradou a muitos fãs de Kendrick e deixou outros tantos fãs de Kendrick com um ligeiro amargo de boca. Não que tenha sido um mau concerto – um concerto do rapper será sempre agradável se incluir 'Alright', 'Bitch, Don't Kill My Vibe', 'Backseat Freestyle' ou 'Swimming Pools'. Mas faltou ali algo que é difícil de descrever e que tem que ver com uma certa faísca que um artista apresenta, ou não, em palco. Kendrick teve-a em 2016, num SBSR esgotadíssimo, onde a Altice Arena quase que vinha abaixo (tanto, que ainda esta noite esse concerto foi recordado em dezenas de conversas). Hoje, e as prolongadas pausas entre temas, que eram inevitavelmente preenchidas pelos fãs com gritos pelo seu nome, não acenderam grande chama.

Tudo merece quem pede um perdão

Sem o sentimento padrão, fiquemo-nos pela simbologia. 'Auntie Diaries', um dos temas mais pujantes de “Mr. Morale & The Big Steppers”, tem ficado de fora dos alinhamentos do rapper. Foi elogiada pela forma como Kendrick abordou a nova identidade de género da sua tia, uma espécie de mea culpa misturada com um apelo velado ao combate à transfobia. Mas também foi criticada (ou “cancelada”) pela utilização repetida de um termo pejorativo para com homossexuais. Se essa segunda parte terá pesado na decisão de Kendrick de não a interpretar ao vivo, que dizer do facto de ter substituído os bitch de 'Worldwide Steppers' por citch, expressão que significa a mesma coisa mas que é mais utilizada por membros dos Crips? Que dizer do facto de não ter pronunciado nem uma, nem outra no refrão de 'Backstreet Freestyle'? É mais condenável a homofobia que a misoginia e a apologia do crime? Ou é tudo uma questão de flow?

Mas o maior símbolo foi este: Kendrick Lamar a ser projetado, nos ecrãs laterais, dentro de um círculo que ia rodando durante o I am a sinner..., como que assinalando o fechar do mesmo – desde o pecador de 'Bitch, Don't Kill My Vibe' ao homem que expõe os seus pecados, sobretudo os que envolvem a sua família, em “Mr. Morale & The Big Steppers”.

A fechar, 'Savior' lembrou a todos os que estavam ali presentes que a arte de Kendrick serve, como toda a boa arte, para nos fazer pensar, talvez no seu caso até demasiado (porque com Kendrick somos tentados a ver símbolos em tudo), mas... não será ele, a figura-Kendrick, a nossa salvação. Pelo menos esta noite não o foi. Mas já o tem sido tantas vezes que somos obrigados a dar-lhe o perdão pelo qual tanto suplica.

Baby Keem, o seu primo, e que também deu uma perninha no concerto de Kendrick, já tinha iludido as hostes com 50 minutos de canções onde foi a batida trap a dominar. Antes do início do concerto já muitos gritavam o seu nome em coro (incluindo uma rapariguita cuja língua nos soou a hindu e que não deveria ter mais que 7 ou 8 anos), e uns poucos se iam divertindo, lá à frente, com uma espécie de voleibol improvisado.

Também sozinho, recorrendo mais às backtracks que o primo, Baby Keem levou centenas de braços a saltitarem como molas assim que entrou em palco, passou por temas como 'Hooligan' (o fa fa fa ainda está na cabeça), mereceu elogios naquele quase-freestyle de 'Scapegoats' e ainda proporcionou um momento que passou despercebido a 99,9% do público: 'Issues', canção sobre os seus traumas, contou com duas pombas brancas no céu sobre as nossas cabeças assim que o rapper declama how can I resent you, verso onde se mostra disposto a perdoar. Se isto é um sinal? Não confirmamos nem desmentimos.

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PRIMAVERA SOUND PORTO 2023 _ © Hugo Lima | hugolima.com | www.fb.me/hugolimaphotography | instagram.com/hugolimaphoto créditos: Hugo Lima | Primavera Sound

O que podemos confirmar é que os The Comet Is Coming foram um grande sinal de que ainda é possível assistir a momentos mágicos em festivais repletos de logótipos. Com a chuva a cair com cada vez mais força, e com Kendrick Lamar a começar dali a uma hora, muitos desistiram de ver o saxofonista Shabaka Hutchings e seus comparsas aliar o jazz à eletrónica mais dançável. Que nos primeiros temas, até um solo de Hutchings (a encarnar o melhor do grande Fela Kuti), tudo tenha soado tépido não ajudou.

Mas eis que da resistência se faz força e da força se faz um momento que desejamos contar ao mundo: dezenas de pessoas a dançar com o maior dos sorrisos no rosto, em frente às grades; a banda a sentir essa energia e a aproveitá-la para acrescentar ainda mais raiva às suas canções; a raiva a explodir e a levar a chuva a parar por completo até ao final do espetáculo, depois de quase o ter destruído, primeiro, e alimentado, depois. Lembramo-nos da vez em que os Motörhead pararam a chuva em Paredes de Coura e saímos do Palco Vodafone a sentir algo semelhante a felicidade. É para este tipo de experiências, e não para ativação de marcas, que se entra num festival de música.

O Primavera Sound Porto prossegue esta quinta-feira com concertos de Fumo Ninja, Arlo Parks, Mars Volta, Rosalía, Shellac, The Beths, Alvvays, Japanese Breakfast ou Bad Religion, entre muitos outros.

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