Desde as suas origens que o rock n' roll anda de mãos dadas com a revolução. Até porque o rock n' roll foi uma revolução em si, uma pedrada no charco da América conservadora e segregada dos anos 40 e 50, não só pela sua sonoridade – o blues “negro” misturado com a country “branca” – mas também pelas suas figuras, começando com Elvis Presley e passando nas décadas subsequentes pelos Beatles, pelos MC5, por Jimi Hendrix, pelos Pink Floyd de “The Wall” e pelos Sex Pistols. Os anos 80, dominados culturalmente pelos yuppies e pelo capitalismo com mão de ferro de Ronald Reagen e Margaret Thatcher, levaram o rock a vender-se e a perder a necessidade de combate, a reformar-se e a dar lugar aos sintetizadores, à dança, à alienação. Era preciso algo fresco. Algo novo.
Dessa vontade nasceram os Rage Against the Machine (RAtM), provavelmente a banda mais despudoradamente política da história do rock mainstream (isto é, do rock que chegou até às massas, que não se perdeu em nichos punk como, por exemplo, o dos Crass ou dos Aus-Rotten, bem mais políticos que os RAtM). Bastou um álbum, homónimo, e uma canção, 'Killing in the Name', para que o quarteto formado por Zack De La Rocha (frontman e rapper), Tom Morello (guitarrista), Tim Commerford (baixista) e Brad Wilk (baterista) voltasse a instalar o medo no coração do grande capital: estava ali uma banda que queimava a bandeira norte-americana em palco, que invadia a Bolsa de Valores de Nova Iorque só para gravar um videoclip, que apoiava, de forma explícita, grupos de extrema-esquerda como o Exército Zapatista de Libertação Nacional ou o Sendero Luminoso. E, o que era pior: fazia-o em direto na MTV.
O facto de os RAtM se posicionarem contra o capitalismo e os grandes conglomerados empresariais, ao mesmo tempo que os seus discos eram vendidos em grandes cadeias retalhistas e editados por gigantes como a Sony, valeu-lhes algumas acusações de hipocrisia. Mas nem isso levou a banda a dar um passo atrás. “Quando se vive numa sociedade capitalista, a informação passa por canais capitalistas. Não estamos interessados em pregar aos convertidos. É fixe tocar em casas ocupadas por anarquistas, mas também é fixe poder chegar às pessoas com uma mensagem revolucionária”, explicou à altura Morello.
Porém, a mensagem revolucionária acabaria por se esfumar com a viragem do milénio. Problemas internos levaram os RAtM a separar-se, ficando Zack De La Rocha de um lado e os restantes membros do outro. Daqui nasceriam os Audioslave, grupo que juntava Morello / Commerford / Wilk a Chris Cornell, e que foi matando algumas das saudades, mesmo que a sua música não fosse tão politicamente forte quanto a dos RatM. O anúncio de uma reunião, em 2007, ainda fez erguer muitos punhos esquerdos, mas acabou por resultar em nostalgia e não em progresso. Até 2016, quando Donald Trump foi eleito presidente dos Estados Unidos, levando Morello a reagir; se o seu MC anterior não queria voltar ao grupo, poderia sempre arranjar dois.
É daqui que nascem os Prophets of Rage, supergrupo formado pela secção instrumental dos RAtM e por dois rappers que também guardam, dentro de si, um verdadeiro espírito revolucionário: Chuck D (que, com os Public Enemy, incendiou palcos no final dos anos 80 e 90) e B-Real (voz nos Cypress Hill e um dos primeiros grandes rappers latino-americanos). “Somos uma força de elite de músicos revolucionários, determinados a enfrentar de frente esta montanha de tretas em ano de eleições”, afirmou Morello aquando da crianção da banda.
Desde 2016, os Prophets of Rage já editaram um LP, homónimo (e há outro a caminho), um EP e um par de singles. Isto no que a originais diz respeito; em palco, o grupo vai buscar temas de cada uma das suas outras bandas, apoiando-se sobretudo nas canções dos RatM mas não esquecendo os Public Enemy, os Cypress Hill ou até mesmo os Audioslave. Isso mesmo confirmou-o o público português em Vilar de Mouros, onde a banda se estreou no passado mês de agosto.
“Estivemos todos em bandas que tentaram fazer a diferença, dizer a verdade, e é também isso que estamos a fazer hoje”
A ideia de “supergrupos” é sempre um tónico para os fãs, uma espécie de LEGO melómano: que poderá resultar da junção de algumas mentes e músicos brilhantes? Muitas vezes, a conclusão desaponta, mas com os Prophets of Rage temos exatamente aquilo que nos prometeram: uma manifestação feérica contra o atual estado de coisas. Perguntamos, tendo essa primeira ideia em mente, se este “supergrupo” é mais revolucionário que os RatM, os Public Enemy ou os Cypress Hill individualmente, e a resposta a isso é-nos dada por Chuck D: “sentimos que, com o estado atual de coisas, o que temos vindo a fazer nestes últimos três anos é mais necessário que nunca”. “Estivemos todos em bandas que tentaram fazer a diferença, dizer a verdade, e é também isso que estamos a fazer hoje”, completa Tim Commerford.
Curtos e concisos, exceto quando o assunto é Trump, o homem que levou os Prophets of Rage a juntarem-se e que continua a alimentar-lhes o espírito de luta contra o sistema. Mesmo que o sistema não tenha sido criado por Trump. “Havia muitos problemas antes dele, mas agora foram exacerbados porque ele é um maníaco”, atira B-Real. “Tivemos presidentes igualmente maus há anos. O sistema está todo lixado, precisa de ser arranjado independentemente de quem lá esteja – teria acontecido o mesmo com a Hillary Clinton”, continua, questionado sobre se a existência da banda continuará a fazer sentido após Trump sair da presidência.
“Tanto o Partido Republicano como o Partido Democrata estão lixados. E não são o único problema, são um entre vários problemas. Há os casos de violência com armas, os de pessoas sem-abrigo, todas estas coisas”, acrescenta. Trump é, por isso, um sintoma? “Sem dúvida. Quando tens essas coisas a acontecer, há muito para falar quer ele esteja lá ou não. O mesmo acontece por todo o mundo; a única diferença é que ninguém tem os mesmos problemas com as armas de fogo do que nós. Têm problemas com a imigração, com a violência policial, com os sem-abrigo, com os seus políticos... A lista continua”. E seria fácil, à humanidade, tornar-se cínica quando vê tanta tragédia a acontecer e uma sensação de impotência a instalar-se, mas Chuck D não mostra nenhum sinal de querer desmobilizar: “Queremos desfoder o mundo [referência a 'Unfuck the World', um dos seus primeiros singles], porque o mundo nos está a lixar a nós”.
“Os governos não gostam de grupos como nós"
A melhor forma de cumprir essa tarefa é levar as pessoas a votar, a não se resguardar em sondagens várias, como aconteceu com Trump e com o Brexit. Essa “preguiça”, argumenta Chuck D, não aconteceria hoje: “É diferente. As pessoas estão mais despertas”, garante. Bandas como os Prophets of Rage poderão ter um papel importante nisso. “Os governos não gostam de grupos como nós, não gostam da forma como os músicos viajam pelo mundo. Não temos que estar sob o teto dos Estados Unidos a toda a hora. E em todo o lado nos perguntam: que raio se passa com o sistema eleitoral norte-americano? Porque é que votaram neste tipo?”, diz.
A resposta a essa última pergunta, comenta B-Real, está nas redes sociais. “As pessoas dessenssibilizaram-se em relação à treta”, afirma. “Há 5 ou 10 anos, se um tipo que se estivesse a candidatar à presidência dissesse algo como 'as mulheres adoram-me, pego-lhes pela vagina', era um homem morto. Mas já ninguém tem sensibilidade em relação às loucuras que se dizem. Quando tens todas estas plataformas que dão uma voz às pessoas, e elas percebem que se disserem as coisas mais bizarras terão 'gostos', visualizações, seguidores... As pessoas tornam-se trolls populares, como o nosso presidente. Hoje em dia vês alguém a ser espancado no meio da rua e ninguém vai ajudar, estão com o telemóvel a filmar. Isso é parte do problema. Quando isso acontece, não é inacreditável que um idiota como Trump se possa tornar presidente”.
A pouco mais de um ano de novas eleições presidenciais nos EUA, há já vários candidatos do lado Democrata dispostos a tirar Trump do poder. Os Prophets of Rage não apontam ou apoiam nomes específicos – “é difícil dizer” quem poderá vencer Trump, remata B-Real – mas concordam que o sistema eleitoral, naquele país, tem que ser alterado. “Ainda tens de contar com os votos do colégio eleitoral. Se quiserem guiar os resultados da próxima eleição, podem fazê-lo, independentemente do voto popular. Isso já foi provado. Logo, ele tem que dar um tiro no próprio pé”, lamenta. Tim Commerford concorda, mas não rejeita o voto: “Por duas vezes ao longo da minha vida, um presidente ganhou a eleição sem a maioria do voto popular. Na Califórnia, ou em Nova Iorque, sabes que ganham os Democratas. É mais fácil ficar-se acomodado e não ir votar. Mas eu gosto de ver maiorias, de 10 milhões, de 50 milhões de votos. É aí que percebemos que não somos um país dividido e que as pessoas querem mudança”.
"O que temos vindo a fazer nestes últimos três anos é mais necessário que nunca”
Uma mudança que poderá ser alimentada pelos Prophets of Rage, que afiançam estar já a trabalhar em música nova. O processo de composição não poderia ser mais comunitário. “O Tom, o Tim e o Brad compõem, e o Chuck e eu arranjamos uma ideia de base para o tema”, explica B-Real. “Mas estamos sempre abertos às ideias e sugestões de todos. Se todos tiverem uma mente aberta, isso torna o processo de gravação mais fácil. Trabalhamos como equipa”. Uma fórmula diferente daquela que se vê, em tantos e tantos casos hoje em dia. “As pessoas trabalham em projetos. 'Vou enviar-te o instrumental', 'vou enviar-te as vozes', 'vou enviar-te os arranjos do DJ'... Isso é um projeto. Não é uma banda. Nós juntamo-nos, e criamos estas ideias como uma equipa. Ninguém envia nada a ninguém”.
Tendo em conta que os Public Enemy e os Cypress Hill se mantêm no ativo, como é que estes dois Mcs arranjam tempo para o fazer? “Isto é importante para nós”, atira B-Real. “Todas as nossas bandas são importantes para nós, mas isto também o é. Sentimos a necessidade de arranjar tempo para sermos uma banda, porque é isso que as bandas a sério fazem”. E Chuck D acrescenta: “Não queremos que se fiquem pela canção. Há um dever enorme, o de fazer com que estas coisas ganhem vida. Tens de lhes dar vida e de as tornar vivas. Isso pode ser um desafio. Temos de dar tudo, de forma a arrancar uma resposta” do público, sem preocupações de tabelas de vendas ou algo do género.
No meio da revolução, há também espaço para lembrar soldados perdidos. Como Chris Cornell, voz eterna dos Soundgarden e os Audioslave, que se suicidou em 2017. Os Prophets of Rage, nos seus concertos, dedicam-lhe 'Cochise', primeiro single dos Audioslave e que não é interpretado por nenhum dos Mcs em palco; a banda prefere deixar que o público cante, se assim quiser. Cada um desses momentos, em cada um dos concertos dos Prophets of Rage, é um tributo à vida e à alma de Cornell, cuja morte Tim Commerford diz ainda não ter superado. “Nunca tive ninguém a morrer-me dessa forma”, conta. “Ainda estou a lidar com isso. É algo contra o qual luto ainda hoje. Nunca ouvirei essa música da mesma maneira, e nunca a tocarei da mesma maneira. Quando tocamos essas canções, só consigo pensar nele”. À semelhança de todos os fãs.
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