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INTRODUÇÃO
Somos esse insulto
Durante muito tempo, quando alguém aludia àquele que é o meu trabalho há quinze anos, fazia-o usando o eufemismo da profissão «mais antiga», mas, para mim, o que a humanidade tem de mais antigo é a condenação das mulheres, das lésbicas, das travestis, das trans e das prostitutas que bem condenadas temos sido – e continuamos a ser – nesta sociedade machista e patriarcal.
Quando iniciei a minha militância na AMMAR, o sindicato dxs trabalhadorxs sexuais da Argentina, a primeira coisa em que reparei foi no peso dos preconceitos acerca do nosso trabalho. Os preconceitos nascem do desconhecimento. E acerca das putas, desconhecimento é o que mais há.
Por isso decidi escrever na primeira pessoa, para pôr a circular outras vozes, vozes caladas e silenciadas. As nossas vozes. Embora me sobrem motivos para pôr em palavras tantos anos de rua, ao mesmo tempo a minha raiva transvaza. Muitos reflectiram por nós e sobre nós e criaram-se políticas públicas nas quais a salvação e o resgate são as únicas intenções. E se quem diz querer melhorar o nosso destino nos consultasse e nos deixasse participar?
Os anos de activismo também me revelaram a incomodidade que gera o facto de querermos agarrar na batuta e recuperar a nossa voz. Espera-se que reforcemos discursos punitivos, que designemos as nossas salvadoras e exijamos trabalhos dignos. Nada mais distante de tudo o que temos para contribuir e para dizer.
Os discursos dominantes sobre a prostituição, que deram lugar à supressão das nossas decisões e vontades, são aqueles que nos vêem sempre como vítimas incapazes de pensar por si sós, que precisam de ajuda, que tentam sair de um inferno.
Como se nós, putas, não pensássemos.
Rejeito essas etiquetas impostas durante séculos sobre os nossos corpos.
Não suporto a ideia de sermos pensadas apenas como vítimas. Combato o nosso isolamento.
Ergo a voz para sermos ouvidas.
Porque mais importante do que a nossa foi sempre a palavra das especialistas: mulheres brancas que falam com uma terminologia muito técnica para estabelecerem um único discurso hegemónico na academia, no feminismo e até no Estado. A certos enquadramentos teóricos falta-lhes rua e classe operária, essa classe à qual nós, putas, orgulhosamente pertencemos.
Depois de tantos papers em que nos li num lugar secundário, hoje vim para a desforra. Se vão ler, deverão ler as putas; se vão estudar, será com a puta à frente do gravador e com os pés bem assentes na nossa zona. Se vão transcrever, serão os nossos sabe- res. Se vão escrever papers, incluam os nossos conhecimentos e a nossa experiência.
Passarmos de objecto de estudo a sujeito político.
Sim. Nós somos.
Somos aquelas que quiseram varrer para debaixo do tapete. Somos aquelas em quem depositaram todas as misérias. Somos esse insulto.
Somos essa palavra que causa pudor e vergonha.
Somos esse anúncio que arrancaste uma infinidade de vezes e atiraste ao chão.
Somos essas esquinas e esses bairros por onde tens medo de transitar, somos as excluídas que só têm licença para habitar as noites e os lugares onde a nossa putaria não dê tanto nas vistas. Somos o putedo incendiado, somos o que não imaginas e muito mais.
Somos trabalhadorxs, labutadorxs de carne e osso. Somos putas. Prostitutas. Alternadeiras.
Oxalá depois de leres estas páginas ponhas de lado os preconceitos de uma vez por todas.
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