RASHŌMON (1)
Era de noite, e um humilde servo sentou-se sob o Rashōmon, à espera de que a chuva terminasse.
Sob as amplas portas da cidade não havia mais ninguém, apenas um único gafanhoto agarrado a uma grande coluna vermelha, cuja laca começava a descascar aqui e ali. Situado numa rua tão importante como a Avenida Suzaku, o Rashōmon poderia ter abrigado pelo menos mais alguns da chuva — talvez uma mulher com um chapéu de palha lacada ou um cortesão com um gorro preto mole. Mas não havia ninguém, além daquele homem.
Isto porque Quioto tinha sido atingida por calamidades sucessivas nos últimos anos — terramotos, ciclones, incêndios, fome —, o que levou ao extraordinário declínio da capital. Registos antigos dizem-nos que as pessoas esmagavam estátuas budistas e outros objectos de devoção, empilhavam os bocados à beira da estrada com manchas de tinta e lâminas de folha de ouro e prata ainda agarradas e os vendiam como lenha. Com toda a cidade neste alvoroço, ninguém se lembrou de preservar o Rashōmon. Raposas e texugos vieram viver na estrutura delapidada das portas da muralha, e depressa tiveram a companhia de ladrões. Por fim, tornou-se habitual abandonar cadáveres não reclamados no piso superior do Rashōmon, o que tornou o bairro um sítio soturno que toda a gente evitava depois do pôr-do-sol.
Os corvos, por outro lado, chegavam em bandos, em grande número. Durante o dia crocitavam e voavam em redor dos altos ornamentos em forma de cauda de peixe no telhado. E quando, após o pôr-do-sol, o céu sobre as portas da cidade ficava vermelho, os corvos recortavam-se nele como sementes de sésamo espalhadas pelo ar. Vinham à câmara superior do Rashōmon para debicar a carne dos mortos. Hoje, no entanto, a esta hora tardia, não havia corvos à vista. O único indício da sua presença consistia nas fezes brancas nos degraus periclitantes do Rashōmon, onde ervas altas rebentavam nas fendas das pedras. Na sua túnica azul-esbatida, o homem tinha-se instalado no último de sete degraus e, preocupado com um grande furúnculo que se tinha formado na face direita, fixou o olhar vazio na chuva que caía.
Já fizemos notar que o servo estava «à espera de que a chuva terminasse», mas de facto o homem não tinha ideia alguma do que faria quando isso acontecesse. É claro que, normalmente, ele teria regressado a casa do seu senhor, mas tinha sido dispensado do serviço alguns dias antes, e (tal como também foi previamente notado) Quioto estava num invulgar estado de declínio. Ter sido dispensado por um senhor que tinha servi- do durante muitos anos era uma pequena consequência desse declínio. Em vez de dizer que o servo estava «à espera de que a chuva terminasse», teria sido mais apropriado escrever que um «humilde servo retido pela chuva não tinha lugar algum para onde ir e ideia alguma sobre o que fazer». Também o tempo contribuía para o sentimentalisme deste servo do período Heian. A chuva caía desde o fim da tarde e não dava sinais de terminar. Continuou a ouvir distraidamente a chuva enquanto esta se abatia na Avenida Suzaku. Estava decidido a encontrar uma forma de se manter vivo por mais um dia — isto é, uma forma de fazer algo acerca de uma situação para a qual não havia nada a fazer.
A chuva trazia um batalhão de sons ensurdecedores, vindos de longe, que iam envolvendo o Rashōmon. A escuridão nocturna carregou ainda mais o céu até o telhado das portas da cidade suster nuvens pesadas e escuras na aresta das telhas salientes.
Para fazer qualquer coisa quando não havia nada a fazer, ele teria de estar preparado para fazer fosse o que fosse. Se hesitasse, acabaria por morrer de fome encostado a uma parede de barro ou caído sobre o pó à beira da estrada. Então, seria simplesmente levado de volta para as portas da cidade e abandonado no piso superior, como um cão. Mas se estivesse disposto a tudo...
Os seus pensamentos vagueavam uma e outra vez pelo mes- mo caminho, chegando sempre ao mesmo destino. Mas, independentemente do tempo que passasse, o «se» continuava a ser um «se». Mesmo quando dizia a si próprio que estava preparado para fazer o que quer que fosse, não conseguia reunir coragem para a conclusão óbvia daquele «se»: Tudo o que posso fazer é tornar-me um ladrão.
O homem espirrou com força e levantou-se com esforço. O frio nocturno de Quioto era suficientemente severo para o fazer ansiar por um braseiro cheio de pedaços de carvão quente. A noite caiu, e o vento soprou impiedoso através das colunas do Rashōmon. Agora, até o grilo deixara o seu poleiro na coluna lacada de vermelho.
Debaixo da túnica azul e da camisola amarela, o homem encolheu os ombros e puxou a cabeça para baixo enquanto perscrutava a área em redor das portas da cidade. Se ao menos houvesse um sítio abrigado do vento e da chuva, sem receio de olhos curiosos, onde eu pudesse dormir sem ser incomodado, ficaria nesse lugar até ao nascer do Sol, pensou. Foi então que entreviu uma larga escadaria — também lacada a vermelho — que conduzia ao piso superior do Rashōmon. Quem quer que ali esteja, está morto. Desembainhando cuidadosamente a espada, com o seu punho de madeira nu, o homem pousou a sandália de palha que lhe calçava o pé sobre o primeiro degrau.
Alguns minutos mais tarde, a meio da larga escadaria, acocorou-se como um gato, sustendo a respiração enquanto avaliava a câmara superior do Rashōmon. Uma luz vinda do alto projectava um brilho débil sobre a face direita do homem — uma face inflamada com um furúnculo repleto de pus entre os pêlos de uma barba curta. O servo não tinha considerado a possibilidade de alguém, excepto os mortos, poder estar ali em cima, mas, após subir dois ou três degraus, apercebeu-se não só de que alguém mantinha uma luz acesa, como também de que essa pessoa a movia de um lado para o outro. Viu o brilho amarelo e pálido tremeluzir contra o tecto, onde teias de aranha pendiam dos cantos. Uma pessoa normal não manteria uma luz acesa, aqui no Rashōmon, numa noite chuvosa como esta.
Com a dissimulação de um lagarto, o servo arrastou-se até ao último degrau da íngreme escadaria. Em seguida, agachando-se e esticando o pescoço o mais que podia, espreitou, receoso, para a divisão superior.
Ali viu uma quantidade de cadáveres negligentemente abandonados, como afirmavam os boatos, mas não conseguiu avaliar quantos eram, pois a área iluminada era muito mais pequena do que pensara. Tudo o que conseguiu ver sob aquela luz débil foi que alguns dos cadáveres estavam nus enquanto outros estavam vestidos. Homens e mulheres pareciam estar emaranhados uns nos outros. Era difícil acreditar que todos tinham sido um dia seres humanos vivos, de tanto que se pareciam com bonecos de barro, ali estendidos com os braços muito abertos e as bocas escancaradas e eternamente mudas. Ombros, peitos e outras partes igualmente proeminentes colhiam a luz débil, projectando sombras ainda mais profundas nas partes mais abaixo.
O cheiro fétido dos cadáveres em putrefacção atingiu-o, e a sua mão voou para cima, cobrindo o nariz. Pouco depois, porém, a mão pareceu esquecer essa tarefa quando uma poderosa emoção quase obliterou completamente o olfacto do homem.
Pois agora os olhos do servo repararam numa pessoa viva acocorada entre os cadáveres. Ali, envergando um vestido preto desbotado, estava uma velha esquelética, com cabelos brancos e modos primatas. Segurava um ramo de pinheiro em chamas na mão direita, enquanto olhava fixamente para o rosto de um cadáver. A julgar pelo cabelo comprido, o corpo era provavelmente de uma mulher.
Movido por seis partes de terror e quatro partes de curiosidade, o servo esqueceu-se momentaneamente de respirar. Tomando de empréstimo a frase de um antigo escritor (2), o homem sentiu-se como se «os seus cabelos estivessem a engrossar». Depois, a velha cravou a tocha de pinheiro entre duas tábuas do soalho e pôs ambas as mãos na cabeça do cadáver que tinha estado a examinar. Como um macaco a catar pulgas na sua cria, começou a arrancar os compridos cabelos do cadáver, um fio de cada vez. Um cabelo parecia escorregar facilmente do escalpe a cada movimento da sua mão.
De cada vez que um cabelo cedia, um pouco do medo do homem desaparecia para ser substituído por uma violenta e crescente aversão pela velha. Não, isto poderia induzir em erro: ele não sentia tanto uma aversão como uma repulsa por todas as coisas más — uma emoção cuja força crescia a cada minuto que passava. Se alguém voltasse agora a apresentar a este pobre su- jeito a escolha em que ele tinha estado a matutar sob o Rashōmon — morrer de fome ou tornar-se ladrão —, ele teria provavelmente escolhido a fome sem o menor arrependimento, tal a força com que se tinha inflamado o ódio do homem pelo mal, como a tocha de pinheiro que a velha tinha espetado entre as tábuas do soalho.
O servo não fazia a mínima ideia do motivo por que estava a velha a arrancar os cabelos da pessoa morta e, portanto, não podia classificar racionalmente esse feito como bom ou mau. Mas, para ele, o próprio acto de arrancar cabelos de um cadáver nesta noite chuvosa, aqui, no Rashōmon era, em si, um mal imperdoável. Já não se lembrava, naturalmente, de que, apenas alguns minutos antes, ele próprio planeara tornar-se um ladrão.
Então, o servo, com um forte impulso, saltou da escadaria e, agarrando na sua espada pelo punho nu, avançou a passos largos e vigorosos até onde a mulher estava acocorada. Aterrorizada por o ver, a velha ergueu-se num salto, como se tivesse sido lançada por uma catapulta.
— Onde pensas que vais? — gritou ele, bloqueando-lhe o caminho.
Acometida pelo pânico, a mulher tropeçou em cadáveres, na tentativa de fugir. Debateu-se para passar por ele, e o servo empurrou-a para trás. Durante algum tempo, os dois bateram-se em silêncio entre os cadáveres, mas o resultado da luta nunca esteve em dúvida. O servo agarrou no braço da velha — apenas pele e osso, como a pata de uma galinha — e fê-la torcer-se até ao chão.
— O que é que estavas a fazer aqui? — perguntou ele. — Diz-mo já, ou levas com isto.
Empurrando-a para longe, desembainhou a espada e lançou o aço branco à frente dos olhos. A velha não disse nada. Com os braços trémulos, os ombros arquejantes e os olhos arregalados a saírem das órbitas, manteve o seu silêncio teimoso e esforçou-se por recuperar o fôlego. Ao ver isto, o servo apercebeu-se de que a vida ou a morte desta velha dependiam inteiramente da sua própria vontade. Esta nova consciência arrefeceu de súbito o ódio que ardera tão violentamente dentro de si. Tudo o que sentia agora era a satisfação e o orgulho tranquilo de um trabalho bem feito. Olhou-a de cima a baixo e falou-lhe num outro tom, mais doce.
— Não te preocupes, eu não pertenço à Secção Judicial. Sou apenas um viajante que por acaso estava a passar pelo Rashōmon. Não te vou amarrar nem prender. Só quero que me digas o que tens estado aqui a fazer, com um tempo destes.
A velha arregalou ainda mais os olhos esbugalhados e cravou o olhar no servo. Os olhos tingidos de vermelho tinham a agudeza dos olhos de uma ave de rapina. Então, como se mastigasse algo, começou a mover os lábios, que pareciam estar unidos ao nariz por todas as suas profundas rugas. O servo conseguia ver a ponta da maçã-de-adão da velha a mover-se no pescoço esquelético e, por entre as arfadas, o som que a sua garganta emitiu chegou aos ouvidos daquele como o crocitar de um corvo.
— Eu... eu estava a puxar... eu estava a arrancar cabelos para fazer uma peruca.
O servo ficou surpreendido e desapontado com a banalidade da resposta da mulher. Mas, juntamente com o desapontamento, o ódio anterior e um desprezo frio voltaram a preencher o seu coração. A mulher parecia sentir o que ele sentia. Ainda a segurar numa mão os longos cabelos que tinha roubado do cadáver, murmurou e coaxou como um sapo, oferecendo a seguinte explicação:
— Eu sei, eu sei, pode não ser correcto arrancar cabelos de cadáveres. Mas estas pessoas que aqui estão merecem o que têm. Olhe para esta mulher, esta à qual eu estava a arrancar o cabelo: ela costumava cortar cobras em bocados de 10 centímetros, e secá-los e vendê-los como peixe seco na guarita do palácio. Se não tivesse morrido com a epidemia, ainda estaria por aí a vender a sua mercadoria. Os guardas adoravam o «peixe» dela e compravam-lho para todas as refeições. Não penso que ela estivesse errada ao fazê-lo. Fazia-o para não morrer de fome, não podia evitá-lo. E também não penso que aquilo que estou a fazer esteja errado. É a mesma coisa: não posso evitá-lo. Se não o fizer, morrerei de fome. Esta mulher sabia o que era fazer aquilo que é necessário. Penso que ela entenderia o que lhe estou a fazer.
O servo voltou a embainhar a espada e, pousando a mão esquerda no respectivo punho, ouviu friamente a história dela. Entretanto, a mão direita brincava com o furúnculo purulento na face. Enquanto ouvia, um novo tipo de coragem começou a germinar no seu coração — uma coragem que lhe tinha faltado anteriormente, sob as portas da cidade, e que se movia na direcção oposta à da coragem que o tinha impelido a agarrar a velha. Já não estava indeciso entre morrer à fome ou tornar-se um ladrão. No seu actual estado de espírito, a própria ideia de morrer à fome tinha sido quase tão banida da sua consciência que se tornara praticamente impensável.
— Tens a certeza de que entenderia, é? — pressionou-a o servo, com voz trocista.
Em seguida, avançando na sua direcção, lançou repentinamente a mão do furúnculo para a nuca dela. Enquanto a agarrava, as suas palavras quase lhe mordiam a carne:
— Então, não me vais culpar se eu ficar com as tuas roupas. Isso é o que eu tenho de fazer para não morrer à fome.
Despiu a velha e, quando esta tentou agarrar-lhe os tornozelos, deu-lhe um pontapé que a deixou estatelada no meio dos cadáveres. Cinco passos rápidos levaram-no até à abertura no topo das escadas. Enfiando o vestido dela debaixo do braço, desceu pela íngreme escadaria e mergulhou na profundidade nocturna.
Não demorou muito tempo até a velha, que tinha estado ali deitada como se estivesse morta, erguer o corpo nu entre os cadáveres. Resmungando e gemendo, rastejou até ao cimo da escadaria, à luz da tocha que ainda ardia. O seu cabelo branco curto pendia para a frente enquanto ela espreitava para baixo, para o fundo das portas da cidade. Viu apenas o negrume cavernoso da noite.
Aquilo que aconteceu ao humilde servo, ninguém sabe.
Setembro de 1915
Notas
1. Mon significa «portão». O Rashōmon (originalmente, Rajōmon: portão exterior do castelo), ou as portas da cidade, era a grande entrada principal a sul de Quioto durante a idade dourada da corte imperial, no período Heian. Grandes pilares sustinham uma câmara cavernosa, rematada por um telhado inclinado, com degraus de pedra que conduziam para dentro e para fora da sua imponente arcada. Nos seus tempos áureos, todas as superfícies de madeira estavam lacadas a vermelho. A larga Avenida Suzaku, que se dirigia para norte a partir do Rashōmon, conduzia directamente ao portão do palácio imperial, onde vivia a minúscula e esteticamente refinada fracção da população retratada no maior monumento literário do país, O Romance do Genji, de Murasaki Shikibu.
Baseado num conto do século XII, a história recontada por Akutagawa desenrola-se no fim decadente dessa era, quando grande parte do poder tinha mudado das mãos dos membros da corte para as dos senhores feudais que iriam dominar nos séculos seguintes, e grande parte da cidade — e as suas portas — estava em ruínas. Apesar do título, o celebrado filme de Akira Kurosawa, Rashōmon (1950), deve pouco a este conto — talvez o servo imundo, cuja visão cínica da natureza humana o filme acaba por rejeitar, e o pano de fundo à sombra das portas da cidade, onde as personagens de Kurosawa esperam pelo fim da chuva e contam a famosa história que reflecte os múltiplos ângulos da verdade (ver Num Bosque de Bambu). (N. do T.)
2. O narrador de Akutagawa usa uma expressão que se encontra em Konjaku monogatari (Contos de Tempos agora Passados), uma obra do século XII, para descrever a sensação dos cabelos em pé. (N. do T.)
NUM BOSQUE DE BAMBU (1)
O testemunho de um lenhador interrogado pelo magistrado
Isso é verdade, Meritíssimo. Fui eu que encontrei o corpo. Saí esta manhã, como habitualmente, para cortar cedros nas colinas que ficam atrás de minha casa. O corpo estava num bosque de bambu, no outro lado da montanha. A localização exacta? A algumas centenas de metros de distância da estrada da posta de Yamashina. Um lugar deserto, onde alguns arbustos de cedro se misturam com o bambu.
O homem estava deitado de costas com uma túnica azul-pálida, com as mangas arregaçadas e um daqueles chapéus negros e elegantes ao estilo de Quioto com os vincos marcados. Tinha apenas um ferimento de facada, mas era mesmo no meio do peito; as folhas de bambu em redor do corpo estavam ensopadas de sangue vermelho-escuro. Não, ele tinha parado de sangrar. A ferida parecia estar seca, e lembro-me de que tinha um moscardo enorme a sugá-la com tanta força que o bicho nem notou os meus passos.
Se vi uma espada ou algo do género? Não, senhor. Só um pedaço de corda perto do cedro, ao lado do corpo. E... oh, sim, também havia ali um pente. Só a corda e o pente, é tudo. Mas as ervas e as folhas de bambu no chão estavam bastante pisadas: deve ter dado muita luta antes de o matarem. Como, senhor — um cavalo? Não, um cavalo nunca poderia ter entrado naquele sítio. É tudo um matagal de bambu dali à estrada.
O testemunho de um sacerdote viajante interrogado pelo magistrado
Tenho a certeza de me ter cruzado ontem com o homem, Meritíssimo. Ontem às... por volta do meio-dia, diria eu. Perto da Colina do Posto de Controlo, a caminho de Yamashina. Ele dirigia-se para o posto de controlo com uma mulher na garupa. Ela trazia um chapéu de palha rígido com um véu comprido pendurado em redor da aba; não consegui ver a cara dela, só a túnica. Penso que tinha uma espécie de camada exterior vermelho-escura com uma orla azul-esverdeada. O cavalo era cinzento sarapintado com laivos vermelhos, e tenho quase a certeza de que tinha a crina aparada. Se era um cavalo grande? Eu diria que era alguns centímetros mais alto do que a maioria dos cavalos, mas afinal de contas sou um sacerdote. Não sei muito sobre cavalos. O homem? Não, senhor, ele tinha uma espada de tamanho considerável e estava equipado com um arco e flechas. Ainda consigo ver o seu alforge lacado a negro: devia ter vinte flechas lá dentro, talvez mais. Nunca imaginei que uma coisa do género pudesse acontecer a um homem destes. Ah, o que é a vida de um ser humano — uma gota de orvalho, um clarão de relâmpago? Isto é tão triste, tão triste. Que posso eu dizer?
O testemunho de um polícia interrogado pelo magistrado
O homem que eu capturei, Meritíssimo? Tenho a certeza de que é o famoso bandido Tajōmaru. É verdade, quando o apanhei, ele tinha caído do cavalo e estava a gemer e a queixar-se na ponte de pedra em Awataguchi. A que horas, senhor? Foi ontem à noite durante a primeira vigia (2). Vestia a mesma túnica azul-escura e trazia a mesma espada comprida que usou naquela ocasião em que quase o capturei. O senhor pode ver que ele agora tem um arco e flechas. Oh, ai sim, senhor? O morto, também? Então, não há dúvida: tenho a certeza de que esse sujeito, o Tajōmaru, é o assassino. Um arco embrulhado em couro, um alforge lacado a preto, dezassete flechas com penas de falcão — isso deve ter pertencido à vítima. E, sim, é como dizeis, senhor, o cavalo é cinzento sarapintado com laivos vermelhos e tem a crina aparada. É apenas um animal estúpido, mas deu àquele bandido aquilo que ele merecia, atirando-o ao chão daquela maneira. Fez um caminho curto para lá da ponte, arrastando as rédeas pelo chão e comendo erva pelo caminho. De todos os bandidos que rondam Quioto, este Tajōmaru é conhecido por ser um sujeito que gosta de mulheres. No Outono passado, as pessoas encontraram um par de devotos assassinados no templo de Toribe — uma mulher e uma criança —, na colina atrás da estátua de Binzuru (3). Toda a gente disse que devia ter sido o Tajōmaru que os matou. Se se vier a descobrir que ele matou o homem, não se pode imaginar o que é que pode ter feito à mulher que montava o cavalo. Não quero imiscuir-me, senhor, mas penso que devíeis interrogá-lo sobre isso.
O testemunho de uma velha interrogada pelo magistrado
Sim, Meritíssimo, a minha filha era casada com o defunto. Porém, ele não era da capital. Era um samurai que servia no departamento da província de Wakasa. O nome dele era Kanasawa no Takehiro e tinha vinte e seis anos. Não, senhor, era um homem muito bondoso. Não acredito que alguém o odiasse o suficiente para lhe fazer isto.
A minha filha, senhor? O nome dela é Masago, e tem dezanove anos. É tão destemida como qualquer homem, mas o único homem que ela alguma vez conheceu foi o Takehiro. A tez dela é ligeiramente escura, e tem um sinal no canto exterior do olho esquerdo; mas o rosto é uma oval perfeita e pequena.
O Takehiro partiu ontem para Wakasa com a minha filha, mas que volta do destino pode ter levado a isto? Já não há nada que eu possa fazer pelo meu genro, mas o que poderá ter acontecido à minha filha? Estou preocupadíssima com ela. Oh, por favor, senhor, fazei tudo o que puderdes para a encontrar, não deixeis nenhuma pedra por levantar: eu vivi uma longa vida, mas nunca antes desejei nada com tanta força. Oh, como odeio esse bandido — esse, esse Tajōmaru! Não só o meu genro, também a minha filha... (Aqui a velha soçobrou e foi incapaz de continuar a falar.)
A confissão de Tajōmaru
Claro, eu matei o homem. Mas não matei a mulher. Então, para onde é que ela foi? Não sei mais sobre isso do que vós. Ora, esperai um minuto — podeis torturar-me tanto quanto quiserdes, mas não vos posso contar aquilo que não sei. E, além disso, agora que me haveis apanhado, não vou esconder nada. Não sou nenhum cobarde.
Encontrei o casal ontem, um pouco depois do meio-dia. Assim que me deparei com eles, um sopro de vento levantou-lhe o véu, e vi-a de relance. Só de relance: talvez tenha sido por isso que ela me pareceu tão perfeita — uma mulher que é um absoluto bodhisattva (4). Decidi desde logo que a tomaria para mim, ainda que tivesse de matar o homem.
Ora, vamos, matar um homem não é uma coisa tão importante como as pessoas como vós pareceis pensar. Se se vai tomar a mulher de alguém, um homem tem de morrer. Quando eu mato um homem, faço-o com a minha espada, mas as pessoas como vós não usam espadas. Vós matais com o vosso poder, com o vosso dinheiro e, por vezes, apenas com as vossas palavras: dizeis às pessoas que lhes estais a fazer um favor. É verdade, nenhum sangue flui, o homem ainda está vivo, mas vós havei-lo matado na mesma. Não sei qual dos pecados é maior — o vosso ou o meu. (Esboça um sorriso sarcástico.)
É claro, se conseguirmos ficar com a mulher sem matar o homem, tanto melhor. O que era exactamente aquilo que eu esperava fazer ontem. Teria sido impossível na estrada da posta de Yamashina, é claro, e, por isso, pensei numa maneira de os atrair para as colinas.
Foi fácil. Juntei-me a eles na estrada e inventei uma história. Contei-lhes que tinha encontrado uma velha mamoa (5) nas colinas e que, quando a abri, estava cheia de espadas, de espelhos e de outras coisas. Disse que tinha enterrado tudo num bosque de bambu do outro lado da montanha para evitar que alguém ficasse a saber daquilo e que o venderia a um preço barato ao comprador certo. Ele começou logo a ficar interessado. É assustador o que a cobiça pode fazer às pessoas, não concordais? Em menos de uma hora, eu estava a conduzir aquele casal e o seu cavalo por uma vereda, montanha acima.
Quando chegámos ao bosque, disse-lhes que o tesouro estava enterrado ali e que deveriam entrar comigo para o verem. Nessa altura, o homem já estava tão ávido por aquilo que não con- seguia recusar, mas a mulher disse que esperaria ali, a cavalo. Calculei que isso fosse acontecer — as árvores são muito densas. Eles caíram na minha armadilha. Deixámos a mulher sozinha e entrámos no bosque.
A princípio, era só bambu. Depois de percorridos cerca de 50 metros no bosque, abriu-se uma espécie de clareira de cedros — o lugar perfeito para aquilo que eu ia fazer. Abri caminho através do matagal e inventei um absurdo qualquer acerca de o tesouro estar enterrado debaixo de um dos cedros. Quando ouviu isso, o homem lançou-se em direcção a alguns cedros esqueléticos visíveis à nossa frente. O bambu tornou-se menos denso, e as árvores sobressaíam, enfileiradas. Assim que lá chegámos, agarrei nele e preguei-o ao chão. Dava para ver que era um homem forte — trazia uma espada —, mas apanhei-o de surpresa, e ele não pôde fazer nada. Amarrei-o rapidamente ao tronco de uma árvore. Onde é que eu tinha a corda? Bem, sou um ladrão, como sabeis — posso ter de subir um muro a qualquer instante —, pelo que trago sempre um bocado de corda atada ao cinto. Enchi-lhe a boca de folhas de bambu para o manter calado. Foi assim que tudo aconteceu.
Depois de ter terminado com o homem, fui ter com a mulher e disse-lhe que o marido se sentira mal de repente e que ela deveria vir comigo e dar-lhe uma olhadela. Isto foi também tiro e queda, é claro. Ela tirou o chapéu e deixou que a conduzisse pela mão até ao bosque. Assim que viu o homem amarrado à árvore, sacou de uma adaga do decote. Nunca vi uma mulher tão fogosa! Se estivesse desprevenido, ela ter-me-ia espetado aquilo nas tripas. E, da maneira como me atacou, teria acabado por me ferir, por muito que eu me esquivasse dela. Ainda assim, sou Tajōmaru. Seja como for, consegui tirar-lhe a faca da mão sem desembainhar a espada. Até a mulher mais audaz fica indefesa se não tem uma arma. E, assim, fui capaz de tomar a mulher para mim sem tirar a vida ao marido.
Sim, ouvistes-me: sem tirar a vida ao marido. Eu não tinha planeado matá-lo, ainda por cima. A mulher estava no chão, a chorar, e eu estava pronto para fugir do bosque e deixá-la ali quando, de repente, ela me agarrou no braço como uma louca. E então ouvi o que gritava entre soluços. Ela mal conseguia manter o fôlego: «Ou morreis vós ou o meu marido morre.
Um de vós tem de morrer. Para mim, pior do que a morte é ter dois homens a verem a minha vergonha. Quero ficar com aquele que sobreviver, seja ele ou vós.» Isso causou em mim um selvagem desejo de matar o marido. (Excitação sombria.)
Quando digo isto, pensais provavelmente que sou mais cruel do que vós. Mas isso é porque não vistes o olhar no rosto dela — e, em particular, nunca vistes a maneira como os seus olhos ardiam naquele momento. Quando aqueles olhos encontraram os meus, soube que queria fazer dela minha mulher. Que o deus do trovão me mate, eu faria dela minha mulher — era esse o único pensamento na minha cabeça. E não, não era só devido à luxúria. Eu sei que é nisso que os cavalheiros estão a pensar. Se luxúria fosse a única coisa que eu sentisse por ela, já tinha tratado disso. Poderia apenas tê-la derrubado com um pontapé e ido embora. E o homem não teria manchado a minha espada com o seu sangue. Mas, no momento em que os meus olhos fixaram os dela naquele bosque escuro, eu soube que não poderia sair dali sem o matar.
Ainda assim, não queria matá-lo de um modo cobarde. Soltei-o e desafiei-o para um combate à espada. (O bocado de corda que encontraram foi aquele que deitei fora nessa altura.) O homem parecia estar furioso quando sacou da grande espada e, sem uma palavra, saltou na minha direcção, num acesso de raiva. Não preciso de vos contar o resultado da luta. A minha espada penetrou o seu peito à vigésima terceira estocada. Só à vigésima terceira: quero que vos lembreis disto. Ainda o admiro por isso. Foi o único homem que durou até às vinte estocadas comigo. (Sorriso alegre.)
Quando ele caiu, baixei a espada ensanguentada e virei-me para a mulher. Mas ela desaparecera! Procurei-a por entre os cedros, mas as folhas de bambu, no chão, não mostravam sinais de que alguma vez tivesse lá estado. Apurei o ouvido para todos os tipos de sons, mas a única coisa que consegui ouvir foi o último estertor do homem.
Talvez ela tenha fugido através da vegetação rasteira para pedir ajuda quando o combate começou. Esse pensamento fez-me temer pela vida. Agarrei na espada do homem, no arco e nas flechas, e fui directamente para a estrada da montanha. O cavalo da mulher ainda ali estava, a ruminar erva. Qualquer outra coisa que pudesse contar-vos depois disto seria um desperdício de tempo. Mas livrei-me da espada dele antes de vir para Quioto.
Esta é, portanto, a minha confissão. Sempre soube que um dia acabaria pendurado naquela árvore que está no exterior da prisão, deixai-me sofrer a pena capital. (Atitude de desafio.)
A confissão penitente de uma mulher no Templo de Kiyomizu
Depois de me ter possuído, o homem da túnica azul-escura olhou para o meu marido, que estava amarrado, e insultou-o com uma gargalhada. Quão humilhado o meu marido se deve ter sentido! Agitou-se e torceu-se por entre as cordas que lhe cobriam o corpo, mas os nós vincavam-se mais profundamente na sua carne. Aos tropeções, corri para o seu lado. Não — tentei correr até ele, mas o homem deu-me instantaneamente um pontapé, atirando-me para o chão. E foi então que aconteceu: foi então que vi o clarão indescritível nos olhos do meu marido. Era ver- dadeiramente indescritível. Ainda agora a lembrança disso me faz tremer. O meu marido não podia dizer sequer uma palavra, e, no entanto, naquele momento, os seus olhos transmitiram-me todo o seu coração. Aquilo que ali vi a brilhar não era ira nem dor. Era o relâmpago frio do desprezo — desprezo por mim.
Isto atingiu-me de um modo mais doloroso do que o pontapé do bandido. Soltei um grito e desmaiei ali mesmo.
Quando recobrei os sentidos, o homem vestido de azul tinha partido. A única pessoa que estava no bosque era o meu marido, ainda amarrado ao cedro. A muito custo consegui erguer-me do tapete de folhas de bambu mortas e olhar para o rosto dele. Os seus olhos estavam exactamente como antes, com o mesmo olhar de desprezo e de ódio. Como poderei descrever a emoção que preencheu, então, o meu coração? Vergonha... tristeza... ira... Dirigi-me, trôpega, para ele.
«Oh, esposo meu! Agora, que isto aconteceu, não posso continuar a viver convosco. Estou preparada para morrer, aqui e agora. Mas vós — sim, quero que vós morrais também. Haveis testemunhado a minha vergonha. Não vos posso deixar para trás com o conhecimento desse facto.»
Esforcei-me por dizer tudo aquilo que precisava de dizer, mas o meu marido continuou simplesmente a fitar-me com repulsa. Senti que o meu peito poderia explodir a qualquer momento, mas, refreando os meus sentimentos, comecei a procurar a sua espada no matagal de bambu. O bandido deve tê-la levado — não consegui encontrá-la em lado algum —, e o arco e as flechas do meu marido também tinham desaparecido. Porém, tive a boa sorte de encontrar a adaga aos meus pés. Brandi-a perante o meu marido e falei novamente com ele.
«Isto é, então, o fim. Por favor, sede bom ao ponto de me permitirdes tirar-vos a vida. Seguir-vos-ei rapidamente para a morte.»
Quando ouviu isto, o meu marido começou finalmente a mexer os lábios. É claro que a sua boca estava cheia de folhas de bambu, e, por isso, não conseguia emitir nenhum som, mas eu soube imediatamente o que ele estava a dizer. Com absoluto desprezo por mim, disse apenas: «Fá-lo.» Vagueando algures entre o sonho e a realidade, mergulhei a adaga no peito da sua túnica azul-clara.
Depois, voltei a perder os sentidos. Quando consegui, finalmente, olhar em meu redor, o meu marido, ainda amarrado à árvore, já não respirava. Na sua cara cinzenta brilhava um raio de luz do sol poente, filtrado através do bambu e dos cedros. Engolindo as lágrimas, desamarrei-o e desembaracei-me da corda. E, então... e, então, o que me aconteceu? Já não tenho forças para o contar. É evidente que não consegui suicidar-me. Tentei esfaquear-me na garganta. Atirei-me para um lago no sopé da montanha. Nada funcionou. Ainda aqui estou, de modo algum orgulhosa da minha incapacidade para morrer. (Sorriso desalentado.) Talvez até Kanzeon (6), bodhisattva da compaixão, me tenha voltado as costas por ser tão fraca. Mas agora — agora que matei o meu marido, agora que fui violentada por um bandido, que devo eu fazer? Dizei-me que devo eu... (Soluçar violento e repentino.)
O testemunho do espírito do homem morto prestado através de um médium
Depois de o bandido se ter servido da minha mulher, sentou-se ali no chão, a tentar confortá-la. Eu não conseguia dizer nada, é claro, e estava amarrado ao cedro. Mas continuei a tentar dizer à minha mulher com os meus olhos: Não acredites em nada do que ele te diz. O que quer que ele diga, está a mentir. Tentei transmitir-lhe isto, mas ela limitou-se a ficar ali, servil, sobre as folhas de bambu caídas, fixando os joelhos dele. E, sabeis, eu podia ver que ela o escutava. Contorci-me de ciúmes, mas o bandido continuou com as suas falinhas-mansas do princípio ao fim. «Agora que a tua carne foi conspurcada, as coisas nunca mais serão as mesmas com o teu marido. Não fiques com ele — vem, e sê minha mulher! É por te amar tanto que fui tão selvagem contigo.» O bandido teve o descaramento de falar assim com ela!
Quando a minha mulher ergueu o rosto para lhe responder, quase me pareceu enfeitiçada. Nunca a tinha visto tão bonita quanto ela me pareceu naquele momento. E que pensais vós que esta minha belíssima mulher disse ao bandido na minha presença — na presença do seu marido, com as mãos e os pés amarrados? O meu espírito pode agora vaguear entre esta vida e a próxima, mas, sempre que me lembro da sua resposta, fervo de indignação. «Está bem» disse ela, «leva-me para onde quiseres.» (Silêncio prolongado.)
Esse não foi o único crime que ela perpetrou contra mim. Se ela só tivesse feito isso, eu não estaria a sofrer tanto aqui, na escuridão. Conduzida por ele pela mão, ela abandonava o matagal de bambu como num sonho, quando, de repente, a cor se desvaneceu do seu rosto, e ela voltou a fitar-me. «Mata-o!», gritou ela. «Mata-o! Não posso estar contigo enquanto ele estiver vivo!» Gritou e voltou a gritar, como se tivesse perdido a cabeça, «Mata-o!» Ainda agora o furacão das suas palavras ameaça mergulhar-me de cabeça nas profundezas mais escuras. Alguma vez palavras repletas de tanto ódio terão saído da boca de um ser humano? Terão tais amaldiçoadas palavras alguma vez alcançado os ouvidos de um ser humano? Terão tais... (Uma explosão de riso desdenhoso.) Até o bandido empalideceu quando a ouviu. Ela agarrou-se ao braço dele e voltou a gritar: «Mata-o!» O bandido fixou-a, sem dizer se me iria matar ou não. Logo a seguir, no entanto, deu um pontapé na minha mulher, que caiu estatelada nas folhas de bambu. (Outra explosão de riso desdenhoso.) O bandido cruzou calmamente os braços e voltou-se para olhar para mim.
«O que quereis que faça com ela?», perguntou ele. «Mato-a ou deixo-a ir embora? Basta que aceneis para responder. Mato-a?» Não preciso de mais para perdoar o bandido pelos seus crimes. (Segundo silêncio prolongado.)
Quando hesitei na resposta, a minha mulher soltou um grito e correu disparada para as profundezas do matagal de bambu. Ele correu, num salto, atrás dela, mas não creio que tenha conseguido sequer pousar uma mão na manga dela. Assisti a este espectáculo como se fosse uma espécie de visão.
Depois de a minha mulher fugir, o bandido agarrou na minha espada, no meu arco e nas minhas flechas, e cortou as cordas num sítio. «Agora é a minha vez de fugir», lembro-me de o ouvir murmurar, enquanto ele desaparecia no matagal. Depois toda a área ficou em silêncio. Não — conseguia ouvir alguém chorar. Enquanto me desamarrava, ouvi aquele som, até me aperceber — até me aperceber de que era eu quem chorava. (Outro silêncio prolongado.)
Exausto, ergui-me finalmente do sopé da árvore. Pousada ali, perante mim, estava a adaga que a minha mulher tinha deixado cair. Agarrei nela e cravei-a no meu peito. Uma espécie de massa sangrenta subiu até à minha boca, mas não senti qualquer dor. O meu peito arrefeceu e depois tudo se afundou na imobilidade. Que silêncio perfeito! Nos céus que cobriam aquele bosque, na encosta escondida da montanha, nem um único pássaro veio cantar. O brilho solitário do Sol demorou-se entre os altos ramos de cedro e de bambu. O Sol... mas até ele começou, ainda que gradualmente, a esmorecer e com ele os cedros e o bambu. Jazi ali, envolto num profundo silêncio.
Então, passos furtivos chegaram até mim. Tentei ver quem era, mas a escuridão tinha-me envolvido totalmente. Alguém — alguém tirou com cuidado a adaga do meu peito com uma mão invisível. Uma onda de sangue encheu de novo a minha boca, e afundei-me, então, para sempre na escuridão entre as vidas.
Dezembro de 1921
Notas
1. O Rashōmon de Kurosawa baseia-se principalmente nesta história, que se insere na parte final do período Heian. O Rashōmon de Akutagawa pouco mais contribuiu para o filme do que com o enquadramento (ver nota 1 do conto anterior). Embora esta história se baseie num conto do século XII, os nomes dos locais são verdadeiros e, na sua maioria, referem-se às íngremes colinas que delimitam o flanco oriental da antiga capital, Quioto. Yamashina, agora uma freguesia oriental da cidade, era uma aldeia sita logo após essas colinas. Situada no sopé das colinas, aquém das mesmas, o templo de Toribe estava ligado a um cemitério, mais a sul. Situado um pouco mais a norte nesse mesmo sopé, o templo de Kiyomizu é ainda um importante local de devoção popular. Awataguchi era um conhecido ponto de entrada a nordeste para quem vinha das colinas. A província de Wakasa estaria a vários dias de caminho a nordeste de Quioto. O «Magistrado» (Kebiishi, literalmente «Examinador de Delitos», também traduzível por «Comissário da Polícia») com o qual as personagens falam era um funcionário da cidade de Quioto que exercia simultaneamente autori- dade judicial e policial. No conto original, o salteador não tem nome. (N. do T.)
2. Às 20 horas. (N. do T.)
3. Versão japonesa do nome sânscrito Pindola-bharadvaja. Um dos discípulos mais importante de Buda e objecto de devoção popular. (N. do T.)
4. No budismo mahayana, a maior das duas principais tradições budistas existentes de hoje, sendo a outra a Escola Theravada, um bodhisattva é um ser iluminado que adia compassivamente o ingresso no Nirvana para ajudar os outros a atingirem a iluminação. Por extensão, uma mulher absolutamente perfeita. (N. do T.)
5. Os aristocratas pré-históricos japoneses eram frequentemente sepultados em montículos tumulares que continham jóias, armas e outros objectos de valor. (N. do T.)
6. Também conhecido por Kannon. Ver também «O Nariz», nota 2. (N. do T.)
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