Esta é a primeira obra da autora editada em Portugal, pela Alfaguara, que lhe valeu o prémio Nueva Novela, em 2007, aos 85 anos, depois de ter publicado dezenas de livros de ficção e poesia.
Aurora Venturini, que publicou “As primas” sob o pseudónimo de Beatriz Portinari, compareceu à entrega do prémio “com uma atitude punk, o corpo magro, o rosto insólito, com uma expressão entre a troça e a candura – além do gume maldito dos olhos pequenos, escuros, perscrutadores -, e disse: ‘Por fim, um júri honesto’”, descreve a também escritora argentina Mariana Enriquez no prefácio da obra.
A história passa-se durante os anos de 1940, na cidade argentina de la Plata, e é narrada por Yuna, uma jovem com problemas cognitivos, mas a quem a autora se refere como “deficiente”, pois “jamais usaria um termo tão correto”, como nota Mariana Enriquez.
Neste seu monólogo – que não contém fúria, mas desassossego e muito nojo – Yuna evita usar pontuação, porque a “cansava” e não a sabia usar, mas não se coibe de recorrer à brutalidade na exposição das misérias das personagens e à falta de piedade para descrever uma família disfuncional, precária e destinada à desgraça.
Pela voz de Yuna, o leitor entra num universo tortuoso de mulheres abandonadas à sua sorte, a braços com a pobreza, a deficiência, o delírio fantasmagórico e a pressão social.
A sua irmã, Betina, anda em cadeira de rodas, é muda, tem uma deficiência física e mental profunda e precisa de ser seguida, às vezes, numa instituição especial, um “hospício”.
“Ela, mais cretina do que eu, sabia ler a esfera dos relógios, embora não soubesse ler em livros. Não éramos comuns, ou seja, não éramos normais”, descreve logo no início a narradora, acrescentando mais à frente: “Coitada da Betina. Erro da natureza. Coitada de mim, também um erro, e coitada ainda mais da minha mãe, que carregava o esquecimento e monstros”.
A mãe é professora, Yuna acaba por conseguir abandonar a casa porque tem talento e torna-se pintora, mas está para sempre unida aos corpos sofredores das mulheres da família: à irmã, à sua tia Nenê, à empregada Rufina, às primas Carina e Petra, esta última, uma jovem liliputiana que trabalha como prostituta desde a adolescência, sua aliada.
Juntas “tentam deter a cadeia de abusos que também sofreram, mas nada é suficiente neste romance pessimista e brutal, sem heroínas claras, um romance de mulheres extremas, doentes, obcecadas, maltratadas”, segundo as palavras de Mariana Enriquez.
Os homens da família estão ausentes e os que aparecem são abusadores e “rasgam os corpos destas mulheres vulneráveis com a indiferença dos vilões menores”.
Mas a par da crueldade e da monstruosidade, há neste romance um “humor negro” que “faz rir em voz alta diante das provocações e das decisões insólitas”.
Além da escassa pontuação, Yuna carece de vocabulário e narra os acontecimentos contra as convenções da escrita, como o que lhe resta de uma oralidade precária, mas faz um esforço de aperfeiçoamento com pesquisas no dicionário, que assinala entre parêntesis quando usa uma palavra mais rebuscada, recorrendo muitas vezes ao uso de “idem”, para assinalar que certa palavra foi tirada do dicionário.
Esse é outro aspeto particular deste livro, o evoluir da linguagem escrita à medida que a história avança, assinalando o progresso da protagonista.
Mariana Enriquez revela que quando acabou de ler os originais encadernados do Prémio Nueva Novela, para o qual trabalhou na pré-seleção, sentiu tal estranheza, confusão e admiração, como escreve, que ligou à editora Liliana Viola, que também estava a tratar da pré-seleção, para lhe falar das suas impressões.
“O romance era genial?”, interroga-se, “seria o risco do texto, a excentricidade, a sensação de que não se tinha publicado nada parecido, seria a voz vinda de um lugar desconhecido? Quem podia ser o autor ou a autora?”.
Liliana Viola “encontrava-se no mesmo estado, entre o fascínio e o desconcerto. Acho que ambas soubemos que, se o júri entendesse a radicalidade desta história e deste texto, ela podia ganhar. E ganhou”.
“Corpos no limite, escrita aos borbotões como se fosse de sangue. Com este livro conseguiu a notoriedade que procurara toda a vida, e desfrutou dela como sabia fazê-lo: mostrando as suas cicatrizes de mulher monstra que se criou a si própria com uma lucidez trocista”, acrescenta Mariana Enríquez.
Isto porque, segundo contou a própria Aurora Venturini, “As primas” é um romance autobiográfico.
“Eu não sou muito ligada à família, nunca fui, mas acabo sempre por escrever sobre a minha família, ou sobre famílias. Os meus seres são todos monstruosos. A minha família era muito monstruosa. É o que conheço. E eu não sou muito comum. Sou um ser estranho que só quer escrever. Não sou sociável. A única vez que me reúno com alguém é no dia 24 de dezembro”, explicava a autora.
Os mitos em torno de Aurora Venturini, que morreu em Buenos Aires em 2015, são muitos e acumulam-se: via fantasmas desde pequena; foi amiga de Victoria Ocampo e de Borges durante os 17 anos que viveu em Buenos Aires; era grafómana; teve aranhas como animais de estimação; quando caiu da cama e ficou internada, com os ossos partidos, visitou o Inferno e desde então tornara-se amiga de um padre exorcista.
A verdade e a mentira não tinham a menor importância, pois aí residia a certeza dos seus livros, a maior parte publicados em editoras independentes ou vencedores de prémios municipais, todos peculiares e obcecados pelo tema da família.
Aurora Venturini nasceu em La Plata, Argentina, em 1921. Foi escritora, tradutora e professora. Licenciou-se em Filosofia e Ciências da Educação. Trabalhou no Instituto de Psicología y Reeducación del Menor, onde se tornou amiga íntima de Eva Perón. Em 1948, recebeu das mãos de Jorge Luis Borges o Prémio Iniciación, pelo livro de poesia "El solitario".
Exilou-se em Paris após o golpe de Estado de 1955, e viveu nesta cidade cerca de vinte e cinco anos, privando com figuras como Jean-Paul Sartre, Simone de Beauvoir, Eugène Ionesco, Juliette Gréco e Albert Camus. Traduziu e escreveu sobre poetas franceses como Lautréamont e Rimbaud.
Garantia não saber estrelar um ovo nem limpar a casa, mas escrevia diariamente, sempre à máquina ou à mão, pois desconfiava de computadores.
É autora de mais de trinta livros, embora só no final da vida lhe tenha sido reconhecido um incontornável talento literário.
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