"Perseverança", esta seria a palavra escolhida pelo pianista Rui Caetano para explicar o que leva um músico de jazz a continuar, a não desistir. Não é difícil perceber a resposta depois de uma pesquisa breve pelo seu nome no Google: os primeiros resultados levam-nos a uma área completamente diferente da música, o futebol, e ao extremo-esquerdo do Varzim, e ainda antes de chegar ao jazz surge o antigo deputado do PS à Assembleia da República com o mesmo nome. Isto diz muito de nós.
Numa longa conversa, Rui Caetano leva-nos pelo mundo do jazz em Portugal e também pelo ensino da música, que não vai nada bem. Infelizmente. "Dar aulas a miúdos é uma coisa que me diz imenso, os miúdos têm aquela energia sã tão valiosa e estar exposto a essa energia e poder moldá-la ou contribuir para a sua formação num momento tão genuíno é rejuvenescedor, é um dia ganho", afirma. E é na educação musical que acredita que Portugal poderia dar um grande passo.
Licenciado em Jazz e Música Contemporânea pela New School University de Nova Iorque, foi professor no Hot Clube de Portugal, em Lisboa, e pertence atualmente ao corpo docente da Escola de Jazz da Fábrica Braço de Prata. É pianista da orquestra de jazz Lisbon Swingers Big Band, liderada pelo maestro Claus Nymark, e acompanhou cantores como Jacinta, Manuel João Vieira e Cláudia Franco.
O piano fez sempre parte da sua vida, primeiro quase como um brinquedo, uma diversão, depois como forma de expressão. Hoje, afirma, "a minha voz é o que faço no piano". E é à família, aos filhos, aos amigos que vai buscar inspiração. Como nos anos em que praticava vela de competição e usava o vento a seu favor, improvisando, o SAPO24 pediu-lhe que tocasse a família, um casal de enamorados, o sol ou um vestido azul às riscas. Arriscou isso e mais um pouco e presenteou-nos com uma peça que o leitor também poderá escutar agora, antecipando um pouco de "Output", o seu terceiro CD, que será lançado no próximo dia 22, no Auditório Camões, em Lisboa - e que poderá ouvir ao vivo no dia 25 de março, no Hot Clube Portugal.
Perguntaram a Zuza Homem de Mello [musicólogo e jornalista brasileiro, especialista na história da música popular brasileira] de que é feito o jazz. Respondeu: "De blues, improvisos e liberdade". Para si, de que é feito o jazz?
Está tudo muito nessa resposta. O blues faz parte da linguagem matriz do jazz, inicialmente como forma de expressão afro-americana, e aquilo que lhe permitiu transformar-se numa coisa à escala mundial foi exatamente a possibilidade de utilizarmos a liberdade na expressão musical. É o jazz que explora mais o discurso direto de um músico, porque nos outros estilos musicais cria-se um momento, uma peça, uma obra que se reproduz daquela forma, nalguns casos com pequenas alterações. No jazz, o discurso direto de todos os músicos, que se complementam em determinado momento, é um diálogo permanente. Essa liberdade vem do improviso, de saber usar a música ao ponto de poder improvisar esse discurso, como numa linguagem verbal. Com tudo o que isso permite. Claro que existem contextos jazzísticos com mais ou menos liberdade. Quando a liberdade é total, por vezes o resultado sonoro é mais complexo, menos compreensível, talvez, e quando existem demasiadas regras fica uma coisa um bocadinho insossa e demasiado previsível. Quando existe a combinação certa de regras e de liberdade para os músicos se exprimirem na sua individualidade, aí temos o jazz pleno, em que tudo funciona e em que tudo é compreendido. Porque um lado importante da música é a forma como é compreendida. Ou não.
Quando existe a combinação certa de regras e de liberdade para os músicos se exprimirem na sua individualidade, aí temos o jazz pleno, em que tudo funciona e em que tudo é compreendido
É mais difícil tocar solo ou acompanhado? Para tocar acompanhado imagino que tenha de haver uma sintonia perfeita entre músicos.
Perfeita ou não. Por vezes o imperfeito cria espaços que permitem uma exploração que o perfeito não tem. Primeiro, de aperfeiçoamento de cada um na sua área, depois, de aperfeiçoamento dessa arte que é saber tocar com outros. São precisos muitos quilómetros de palco, de experiência e de formação para se conseguir atingir uma certa maturidade nessas competências e nesse universo. O que é mais difícil? Ambos os campos são difíceis, por razões diferentes, mas está-se mais apoiado quando existem outros músicos, isso ajuda a que nem tudo dependa de um só instrumentista, de um só momento. Por estes motivos, talvez respondesse que é mais difícil tocar sozinho, atingir o pleno sozinho.
Este é o seu terceiro CD, depois de "Reflexos" e "Invisível". Porquê "Output"?
"Output" é um termo automaticamente associado a tudo o que é aparelho reprodutor de som. Juntando isso àquilo que é a minha música, que é trazer cá para fora as minhas emoções, a minha criatividade e as minhas experiências, traduzidas em música, "Output" pareceu-me fazer sentido, tanto na perspetiva musical, como na perspetiva pessoal.
O que pode dizer sobre este CD, o que traz de novo em relação aos anteriores?
Este CD traz mais maturidade. O segundo CD já foi gravado há uns anos, as coisas evoluem. Penso que o meu discurso musical ficou mais definido, com uma identidade musical mais forte, que acredito que existia antes, mas agora está mais aperfeiçoada. Inevitavelmente, o facto de estar com estes dois músicos extraordinários [Carlos Barreto (contrabaixo) e Alexandre Frazão (bateria] faz com que tudo isso seja potenciado. O CD, em termos estéticos, é um pouco a continuação do meu trabalho de músico em trio, que é a minha música - não tento chegar a nenhum estilo específico, faço as minhas músicas, exploro os meus universos e é o que é: tem jazz, tem muito jazz, que é a minha formação e a linguagem musical que permite fazer música em discurso direto. Se é só jazz, penso que não, tem muitas outras influências, todas a nossas influências lusas...
Quais são as suas influências em particular?
No meu caso, salientaria a solenidade e o sentimento do canto da enorme Amália, que desde miúdo ouvia muito lá por casa e que continuei a ouvir mais tarde, sempre me impressionou. Inevitavelmente moldou a minha musicalidade, bem como a sonoridade da guitarra portuguesa associada aos improvisos constantes que caracterizam o fado. E claro, as influências multiculturais em geral que advêm da presença de várias culturas na Península Ibérica, que se manifestam em hábitos e tradições que todos vivenciamos e adquirimos, tornando-se parte da nossa identidade individual. Tenho essas e, depois, todas as geracionais. Tenho influências de todos os géneros musicais: ouvi muito rock, muita música clássica, muito jazz - muito mesmo. Acabamos por ser investigadores de música, ouvir música não é só ficar sentado a ouvir música, é um processo de exploração permanente e um território que estamos sempre a investigar.
Acabamos por ser investigadores de música, ouvir música não é só ficar sentado a ouvir música, é um processo de exploração permanente e um território que estamos sempre a investigar
Quem são, para si, os grandes nomes do jazz?
Ao nível mundial há nomes icónicos incontornáveis, entre eles está Miles Davis, John Coltrane... Mas em termos pianísticos, e de forma muito importante, tenho presentes Oscar Peterson, numa primeira fase, Bill Evans, o grande transformador do piano no jazz, a partir dos anos 1960. Dessa escola surgiram pianistas como Keith Jarrett, que é o supra-sumo musical do século, diria, e Herbie Hancock, que é uma referência a todos os níveis, esteve em todas as áreas, em todos os grandes grupos, em todos os processos, e como músico de jazz atingiu o topo com Miles Davies. Agora, existem centenas de músicos, e ainda há os nacionais.
Nessa altura, estava a começar, sempre vi no Mário o horizonte, a demonstração de que é possível fazer aquilo que me propunha fazer, estando eu ainda muito longe daquilo
Ia perguntar-lhe por esses.
Tive a sorte de estar perto do Mário Laginha desde o seu aparecimento ao processo que o levou onde chegou. Nessa altura, estava a começar, sempre vi no Mário o horizonte, a demonstração de que é possível fazer aquilo que me propunha fazer, estando eu ainda muito longe daquilo. Fui sempre acompanhando, portanto, Mário Laginha tem um papel muito importante no que para mim materializa ser músico de jazz. Claro que o Bernando Sassetti foi outra referência crucial, era o mágico de palco do momento, dominava o jazz e o piano de uma forma extraordinária. Não éramos próximos pessoalmente, mas assisti a todo o percurso e também me tocou, fazia parte da linha "um dia vou conseguir". Eram eles os dois. Existem outros músicos, mas este são os mais imediatos.
Como é tocar com dois nomes que faziam parte do trio Bernardo Sassetti e que o acompanharam durante anos?
Conhecemo-nos há muito tempo, até porque não somos muitos. Hoje somos bastantes mais, porque aconteceu uma coisa muito importante para os músicos de jazz, que foi o surgimento dos cursos superiores de jazz. Na minha geração não havia, alguns de nós foram lá fora e tiveram uma formação superavançada para aquilo que existia em Portugal. Com algumas exceções, as pessoas não tinham a noção da dinâmica e da exigência, não se conseguia passar isso. Indo lá fora anda-se 50 anos para a frente.
a grande diferença entre Portugal e os outros países é a educação das crianças
O que distingue outros países de Portugal no jazz, qual a grande diferença?
Penso que a grande diferença entre Portugal e os outros países é a educação das crianças. É fundamental dar às crianças bases musicais para que mais tarde saibam qualificar o que estão a ouvir. A música está ligada a uma série de coisas que todos os dias se passam à nossa volta, é muito sensorial. Há coisas mais imediatas e há outras que passam completamente ao lado de quem não está preparado para as descodificar. A educação musical é um aspeto fundamental. Nesse sentido, lá fora valoriza-se muito mais uma série de áreas comercialmente periféricas, mas que em termos musicais são mais interessantes. Há cinquenta anos que se ensina música improvisada nos conservatórios e nas escolas superiores em alguns países estrangeiros, França, Inglaterra, Holanda, enquanto em Portugal isso acontece desde 2003 numa escola, 2008 noutra e agora já há mais uma quantas. Lá fora isso acontece desde os anos 1960. Claro que Portugal tem um passado complicado nessas aberturas... Penso que a educação musical nas escolas públicas não é suficiente - até pelos resultados, que não melhoram em termos gerais. A música tem um papel completamente acessório, apesar de ser uma linguagem que permite evoluções em todas as outras áreas. As turmas grandes, mas esse não é um problema exclusivo da música, e também a formação dos professores, que talvez não seja a melhor para este desafio, que é muito grande, podem contribuir para esta situação. Dada a natureza da música, há certas coisas que podem ser transmitidas a todos ao mesmo tempo mas a partir de um certo ponto, tem de ser com grupos mais pequenos, com instrumentos, com orquestras, com projetos musicais de grupo, etc. E aí sim, é necessário um esforço de investimento em condições e instrumentos, bem como no desenvolvimento de uma orientação pedagógica para que tal seja bem implementado. Estamos, infelizmente, muito longe disso no Portugal público.
No entanto, a música democratizou-se, digamos assim. E podemos ver isso até pelo número de festivais.
É. Mas há uma grande discrepância entre aquilo que se ouve no dia-a-dia como produto acabado e o processo de aprendizagem musical. Ou seja, as crianças têm dificuldade em perceber a relação entre o que têm de aprender de uma forma elementar nas aulas de música, com aquilo que ouvem enquanto produto musical acabado. É preciso demonstrar que existe uma enorme utilidade na formação de um jovem em perceber e vivenciar através da música, que é necessário formar, estudar e desenvolver bases elementares para atingir os produtos acabados que os rodeiam, sejam eles em que áreas forem. E só quem tem muita vontade acaba por passar por isso. Mas, como dizia, fomos para fora, regressámos e contribuímos para este núcleo de professores e de músicos mais bem formados do pontos de vista académico - duas coisas diferentes, porque ser bom músico é diferente de ser bom professor e vice-versa. Criou-se essa estrutura, e hoje existem miúdos na casa dos 20 anos com uma formação muito completa, num momento crucial, que é entre os dez e os 20 anos, depois já não entra. E estão a surgir músicos extraordinários.
hoje existem miúdos na casa dos 20 anos com uma formação muito completa, num momento crucial, que é entre os dez e os 20 anos, depois já não entra. E estão a surgir músicos extraordinários.
O jazz é um estilo democrático?
Acaba por ser elitista, porque é a exploração da música de uma forma complexa, e nem todos estão para isso. De certa maneira, só quem não se desinteressa, a elite de pessoas que se interessa, é que aprecia. Não penso que o jazz seja elitista de dentro para fora, mas sim de fora para dentro. Agora, claro que um músico de jazz faz jazz. Muita gente me pergunta: "Porque é que não fazes outros géneros musicais, outras músicas?" Porque eu não sou isso, e faço aquilo que sou.
Existe, também nesta área, uma discussão sobre o que é boa música e má música...
A boa música e a má música não têm a ver com o estilo musical. Existem estilos mais elementares e estilos mais complexos, e em todo esse espetro existe música bem feita e música menos bem feita. E também existe música mal feita.
Lembra-se do seu primeiro contacto com a música?
O piano sempre fez parte da minha vida; sou o mais novo de uma série de irmãos [oito], e o que acontecia é que tudo o que se passava ao piano eu tinha muita facilidade em reproduzir. Quando passava pelo piano fazia o que os outros faziam, porque os ouvia. Era-me fácil. Sempre tive esse reflexo e facilidade de compreensão musical, das distâncias dos sons - percebo isso hoje, porque é muito importante ter a noção exata das distâncias dos sons. Algumas pessoas têm, outras não, embora essa competência se desenvolva.
Para mim, na primeira infância, o piano era um brinquedo, a música era uma diversão
Quando percebeu que a música faria parte do seu futuro ou que o seu futuro passaria pela música?
Só mais tarde, porque enquanto miúdo a música foi uma diversão. Há pessoas que sabem desde a infância, são colocadas numa formação e cedo percebem que é aquilo. Para mim, na primeira infância, o piano era um brinquedo, a música era uma diversão, não tive formação desde os três, cinco ou seis anos, como outros. Aos dez anos fui para uma escola aprender música e aprender piano, e aí tive a minha evolução e percebi que a música ia ter um papel muito grande na minha vida, não só pelo que me permitia exprimir, que é o aspeto principal, aquilo que nos move, como por ser considerado, tinha imenso feedback positivo. E então comecei a perceber que podia fazer algo especial e diferente com a música. Mas só depois do liceu é que tive de tomar uma decisão mais concreta. Passei por várias fases, aos 17 anos deixei a música clássica, tive grupos de rock, toquei em bares, fiz todo esse circuito, passei por toda essa aventura musical. Até que o jazz começa a aparecer como opção, já pelos 20 anos. Aí percebi que tinha muito que estudar e que aprofundar, porque é um universo que não tem nada que ver com a música pop, a música ligeira.
Qual a diferença?
A música ligeira explora uma região simples da música. O jazz explora toda a complexidade da música, é preciso uma investigação brutal para se conseguir exprimir por essa via. Então, quando foi preciso escolher um curso e decidir, aí sim, a música era o que fazia sentido para mim. Mas a música fazia parte de mim, não era algo que eu pensasse ou sobre o que eu teorizasse.
Três CD em doze anos (podemos dizer só?). Porquê?
É muito difícil fazer um CD. Um CD é um processo complicado, são músicas minhas e a música não sai assim a jorros. É preciso ter as músicas, os músicos, compilá-las, tudo isso são processo complexos e morosos. Numa realidade como a nossa isso é ainda mais difícil. Há aqui um fator fundamental, que é a organização de concertos que permitem aos músicos rodar projetos, fazer música, estarem em permanente atividade. Isso, obviamente, acelera todo o processo que envolve fazer discos. Claro que depois também vêm as componentes de apoios para produzir discos, temos grande dificuldade em que as editoras com potencial financeiro tenham interesse.
Temos grande dificuldade em que as editoras com potencial financeiro tenham interesse
A música, pelo menos a tocada, tem a vantagem de ser universal, não precisa de traduções. Isso não abre mais o circuito comercial, é difícil vender lá fora?
É. É difícil vender lá fora, mais pela dificuldade de chegar aos canais do que pela música em si.
Qual é o circuito habitual?
Pois, é uma boa pergunta. É muito difícil, é preciso conhecer as pessoas. Fazem-se alguns intercâmbios com músicos estrangeiros, mas o que é difícil é ter uma permanência europeia. Estamos muito longe. Ou então vamos viver para fora, também há quem vá. Mas a nível internacional é um mercado muito grande, com muita gente. Existe uma barreira geográfica e a barreira de Portugal ser pequeno e não ganhar expressão, relevância a nível mundial. O trabalho, se não é conhecido, não pode ser reconhecido. E voltamos à questão da importância da educação, as pessoas não reconhecem ou não sabem qual o envolvimento dos músicos para fazerem aquilo que se vai produzindo. Penso que há um défice muito grande de reconhecimento dos músicos de jazz, que normalmente estão associados a música ambiente.
Existe uma barreira geográfica e a barreira de Portugal ser pequeno e não ganhar expressão, relevância a nível mundial. O trabalho, se não é conhecido, não pode ser reconhecido
Falou na Internet. É um pau e dois bicos: ajuda na produção e divulgação, mas penaliza nas cópias pirata?
Claro. Nas cópias de CD é evidente, aliás, o CD passou à história. Se vir, os automóveis já não têm leitores de CD, os computadores não têm leitores de CD. O CD é um objeto para algumas pessoas que gostam de o ter ou um cartão de visita para os músicos. Nos concertos também se vendem alguns CD, mas se não houver uma máquina de promoção muito grande por trás não é possível, a venda de CD passou a ser simbólica relativamente ao passado. Hoje, o que se passa na Internet é o que conta. Mas está-se a fazer um esforço para se reconhecer os direitos de autor, embora tenha havido uma quebra enorme nas receitas que viriam por essa via. É algo com que temos de lidar.
Ser músico não dá para viver?
Depende do tipo de música que se faz. Tem de se complementar com várias atividades, como a de professor, que é o que a maior parte dos músicos acaba por fazer, uns com menos outros com mais gosto - que é o meu caso, porque alguns dispensariam. E isso tem implicações na forma como os alunos vão percecionar a música.
É do poder autárquico que depende a variedade cultural que passa pelo país, que devia ser muito mais abrangente relativamente aos músicos portugueses
O que tem de em Portugal para que o panorama que descreveu se altere também?
Era preciso haver um investimento grande na educação musical, não só financeiro, mas investimento ideológico, que mostrasse que a música é, de facto, importante. Só vejo vantagens na aprendizagem da música, não no sentido de ser músico, mas no de captar todas as competências integradas que a música espoleta nas pessoas. Sei disto por experiência própria enquanto professor. Vejo nas crianças, nos jovens e nos adultos a quem dou aulas os estímulos e as competências que a música obriga a explorar e os benefícios que isso traz a essas pessoas em toda a corrente social, em todos os desafios. Esse seria um fator muito importante e prioritário. Além disso, a atenção dos media em geral é muito pouca e isso tem também de mudar. Nas televisões fala-se de tanta coisa tão desinteressante, abusa-se de certos temas e não se fala e acompanham tantas outras coisas/pessoas/percursos interessantes, nomeadamente no campo da criação artística genuína, cuja exposição em tanto poderia beneficiar a sociedade em geral. Outro aspeto é que lá fora existem incentivos do Estado, nas várias taxas e fiscais, para quem tenha a iniciativa de ter música ao vivo. Isso faz toda a diferença. Cá são sobrecarregados com despesas inibidoras. Por outro lado, a nível do poder local, podia haver um esforço maior e a noção da importância da variedade cultural - mas, lá está, isso depende da educação dos decisores: se não estão sensibilizados para isso ou se não faz parte do seu universo, é difícil convencê-los. É do poder autárquico que depende a variedade cultural que passa pelo país, que devia ser muito mais abrangente relativamente aos músicos portugueses. Uma das áreas onde existem mais músicos portugueses especializados é o jazz. Há hoje gente com muita qualidade, muito bem formada, a fazer coisas muito interessantes, que combinam uma série de influências e eras, mas que não têm onde tocar. Uma coisa que temos bastante são os festivais internacionais, que trazem os grandes nomes da cena internacional. Uma das coisas que temos de menos, são os festivais nacionais.
Não há festivais de jazz? Estou a lembrar-me do EDP Cool Jazz, em Cascais, que vai na 17.º edição.
Existem alguns festivais, existem algumas iniciativas, mas é muito pouco, não permite que se esteja um ano inteiro a aparecer aqui e ali, a fazer os projetos rodar. Em Guimarães acontece um festival extremamente importante, que traz nomes e estilos muito sólidos e representativos do que se faz no mundo. Existe um festival completamente experimentalista, que é o da Gulbenkian, uma tendência muito avant-garde, com uma forte componente de improvisação livre, mas que deixa de fora uma série de outras áreas interessantíssimas de improvisação menos livre. É um dos maiores, pelos meios que envolve e pela duração, mas só tem uma pontinha de nomes nacionais. O EDP Cool Jazz traz grande nomes, e depois dá uns cantinhos a uns artistas nacionais nas primeiras partes. Penso que os organizadores dos festivais podiam dar muito mais espaço à comunidade jazzística portuguesa e, regra geral, não dão. Existe também a Festa do Jazz do São Luiz, um festival organizado especificamente para o jazz nacional, coma presença de escolas, um pequeno concurso entre escolas e grupos. Isso era uma coisa que podia acontecer em vários locais a nível nacional, mas para isso a primeira coisa que é preciso é dar importância àqueles músicos, para depois desbloquear os meios.
Penso que os organizadores dos festivais podiam dar muito mais espaço à comunidade jazzística portuguesa e, regra geral, não dão
Ainda assim, fez não há muito tempo uma tournée relativamente longa...
Toquei durante uns anos com a cantora Jacinta, que é, que eu me lembre, a única figura do jazz que conseguiu ter 20 ou 30 concertos num ano em palcos portugueses. É uma figura com grande visibilidade, surgiu na televisão [programa "Chuva de Estrelas, onde interpretou Ella Fitzgerald], conquistou o carinho das pessoas e muita gente ia ver os concertos por essa via, não é que gostassem mais ou menos de jazz, iam ver a Jacinta. Isso permitiu fazer esse circuito, mas não me lembro de outro nome que tenha mantido esse ritmo. Mas, e a propósito do "só" três CD, existe outro fator, que foi a crise. O país faliu, esteve falido durante cinco ou seis anos, e isso desintegrou uma série de mecanismos, designadamente autárquicos ou ligados às autarquias. As iniciativas de quem organizava pequenos festivais ou concertos desapareceram. Foram anos muito complicados para fazer coisas e avançar com projetos. Lancei o meu segundo CD no início desse período [2010] e depois veio um vazio. Isso também tem implicações grandes num músico e naquilo que é preciso fazer para estar à altura de uma performance exigente.
Apesar disso, de todos os problemas, não parou.
Em 2015 investi num projeto com a cantora Cláudia Franco, com voz, e que refletia a nossa transformação, a nossa identidade.
A minha voz é o que eu faço no piano
A voz é importante, o público português não está tão preparado para...
O instrumental? Penso que isso é universal. A primeira coisa que ouvimos é a voz, inevitavelmente. Está connosco desde o início e isso tem um papel fundamental, é o nosso veículo de expressão e, claro, através da voz são passadas coisas que através de um instrumento é mais difícil chegar lá. A minha voz é o que eu faço no piano. A minha mensagem passa por aí.
E qual é a sua mensagem, o seu universo?
O meu universo são as influências da minha vida, os sítios onde estive e que são importantes para mim, as reflexões, as experiências emocionais. Tudo isso, quando me sento ao piano e começo a desenvolver uma ideia, ou ela surge ou deixo surgir, vem desses momentos, não é só imaginação musical, é emoção.
O que é que ainda gostaria de fazer?
Fazer música para cinema ou para documentários é algo que adorava fazer, porque moldar a imagem é um desafio extraordinário. E gostava de andar pelo mundo a fazer os meus concertos e a tocar a minha música.
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