Em 2001, os Strokes eram a única banda que importava. Esta frase não é escrita de ânimo leve. "Is This It", o seu álbum de estreia, entrou diretamente para o panteão dos grandes discos rock, alicerçado em temas tão cantaroláveis ou dançáveis como 'Last Nite' ou 'Hard To Explain'. Para além da música, havia a pinta, coisa importante quando se fala de rock n' roll: os Strokes como um gangue de rua, mesmo que não tenham saído das ruas e sim da classe média-alta nova-iorquina. E, ainda, a geopolítica a funcionar: no pós-11 de setembro, Nova Iorque precisou de se reerguer dos escombros e voltar a ser o centro do mundo ocidental. Para tal, precisava (também) da sua cultura. Os Strokes preencheram um vazio rock que já vinha dos tempos do velhinho CBGB's, que depois do punk de 1977 não mais voltou a viu nascer grandes bandas dignas desse rótulo. Foram eles quem impulsionou a movida posterior: The Rapture, LCD Soundsystem ou Interpol teriam naturalmente existido, mas não teriam tido a mesma atenção caso "Is This It" não tivesse sido apontado (sobretudo pela imprensa) como "a salvação".
Porém, após o lançamento desse disco (que ainda soa tão bem como da primeira vez), os Strokes nunca mais conseguiram acender a chama que os havia alimentado. As sessões de gravação de "Room On Fire", de 2003, não foram pacíficas, e Julian Casablancas não ficou de todo satisfeito com o resultado final (algumas destas histórias podem ser lidas em "Meet Me In The Bathroom", livro que reúne a história oral do rock nova-iorquino da primeira década do milénio). "First Impressions Of Earth", dois anos depois, parecia ser um regresso à boa forma, mas não teve o mesmo impacto que a estreia. "Angles", de 2011 e "Comedown Machine", de 2013, foram imediatamente esquecidos, até pela inclusão de motivos eletrónicos esdrúxulos. "The New Abnormal", editado durante a pandemia, até recebeu boas críticas, mas sejamos honestos: alguém consegue mencionar uma canção dali sem ir ao Google?
Pelo que o motivo principal para ir ver os Strokes em 2022 era procurar reviver, através da memória e da nostalgia (costumam estar interligadas), aquele frémito que sentimos ao escutar "Is This It" pela primeira vez - o rock garageiro, descomprometido, cheio de boas melodias e refrães orelhudos. Ou isso, ou testemunhar ao vivo um desastre. Como o foi o concerto que os Strokes deram no festival de Roskilde, na Dinamarca, antes de aterrarem em Portugal, que fez correr muita tinta (e inúmeros insultos nas redes sociais) e mereceu uma menção especial por parte do músico, no palco desta noite. Como foi este mesmo concerto no NOS Alive, em que depois de atrasarem a sua entrada em 20 minutos, ficaram realmente apresentados com esta tirada de Julian Casablancas, logo depois de se escutar 'Is This It' e deixar cair o microfone: «estou novamente alcoolizado»...
Descrever o espectáculo dos Strokes no Passeio Marítimo de Algés com recurso à dicotomia bom/mau seria incrivelmente redutor. Façamos assim: os fãs acérrimos - e vimo-los, com as suas t-shirts, ao longo do dia - adoraram poder ver de perto os seus ídolos, independentemente daquilo que ia saindo do PA e da boca de Casablancas. Os curiosos, abandonaram a meio, certamente incrédulos com o que se estava a passar. E há ainda um terceiro grupo, aquele que pára para ver um desastre de automóvel. Esta será talvez a melhor descrição do concerto: um acidente é horrível, mas o ser humano é igualmente mórbido, e muitas vezes é difícil não nos determos.
«Vocês cantam muito bem!», afirmou o vocalista, certamente ciente de que estava a fazê-lo com o nariz. Ao longo de pouco mais de uma hora, foi igualmente arrastando cada palavra em frases absurdas (algumas: «isto é tudo tão lindo, meu!», «não vou falar mais ou meto-me em sarilhos...», «tenham uma boa noite, vejo-vos na discoteca!»), desafinando a rodos e deixando boa parte da audiência a pensar porque paguei eu para ver isto?. 'New York City Cops', a melhor canção anti-autoridade desde os N.W.A., soou extraordinariamente fora de tempo; 'Bad Decisions' ainda salvou alguma honra, puxando-nos para o seu centro de gravidade; 'Hard To Explain', camada de ruído atrás de camada de ruído, estava mais irreconhecível que na famosa mashup com 'Genie In A Bottle', de Christina Aguilera; e ainda houve uma "versão" de Clairo (que teve de cancelar o seu concerto no Palco Heineken devido a problemas com o voo), com autotune, sendo que com autotune a voz de Casablancas conseguiu soar ainda pior.
No encore, uma 'Juicebox' a rebentar por todos os lados colocou um ponto final neste happening. Dependendo da perspetiva, Julian Casablancas terá sido, esta noite, ou o gajo menos profissional do mundo ou o mais rock n' roll. A verdade é que tanto um ponto de vista como o outro serão válidos: por um lado o concerto dos Strokes foi arruinado pelo seu frontman, por outro não há como não respeitar alguém que, vinte anos depois de se ter tornado famoso, decide cuspir no seu próprio currículo, sabendo perfeitamente que amanhã, depois da ressaca, será um novo dia e nada disto importa grande coisa. Excepto para quem queria ter visto, realmente, um bom espectáculo.
Devido a «circunstâncias», conforme afirmou o guitarrista e vocalista Isaac Brook, os Modest Mouse alteraram o horário do seu concerto para umas respeitáveis 20h00, quando estavam marcados para a 1h da madrugada. Em causa esteve o cancelamento forçado de Clairo, e é possível que os norte-americanos tenham ficado igualmente a perder: o Palco Heineken, a meia casa, dava a entender que muitos não souberam da troca. Pena, já que estamos a falar daquele que era um dos grandes motivos para entrar este ano no NOS Alive, a estreia em Portugal de uma das mais cultuadas bandas indie rock, a celebrar o seu 30º aniversário. Alguns problemas com o som de palco, e uma postura que deu a entender algum descontentamento, não ajudaram.
Claro que bastou ouvir os primeiros acordes de 'Dramamine' para que os fanáticos - e quem gosta de Modest Mouse, gosta a sério - se perdessem naquelas guitarras que parecem lacrimejar, naquele grito que vai até ao osso. Os Modest Mouse são uma instituição. Do indie, do emo do Midwest americano, do punk que não se cinge a três acordes: discos como “Good News For People Who Love Bad News” fazem parte das coleções de muito boa gente, canções como 'Lampshades Of Fire' (esta mais dançável, e uma inclusão agradável no alinhamento de hoje) são decoradas até à exaustão. Nem causa qualquer tipo de mossa o facto de Johnny Marr (sim, esse mesmo) já não fazer parte do grupo desde 2008, depois de ter gravado o excelente "We Were Dead Before the Ship Even Sank".
Durante cerca de uma hora, este foi o concerto para uma certa franja de melómanos cuja juventude se fez ao som daquele ruído e daqueles versos. 'Bukowski', por exemplo, que é tocada por Isaac com um banjo e que vai buscar o seu nome (como é óbvio) ao escritor: Who'd want to be such an asshole?. Chamamos-lhes "melómanos" quando poderíamos dizer "verdadeiros", saudar os rostos que se iluminaram assim que os Modest Mouse se atiram a 'Float On', o sorriso estampado quando o vocalista canta na direção das seis cordas, tudo em nome do rock. Fosse à hora marcada, teria tido certamente mais gente. Independentemente da hora, foi especial.
Num dia feito sobretudo de guitarras, coube ao belga Stromae encerrar o Palco NOS com uma música muitas vezes indecifrável e outras tantas dançável. Ali cabe um mundo: as guitarras do highlife ganês, as das mornas de Cabo Verde, teclados house, rap francófono. De facto, a dada altura pensa-se mesmo naquela bizarria toda e em como a sua junção de diferentes linguagens musicais tem, à partida, tudo para falhar - e acaba por resultar extraordinariamente bem. Estamos, no fim de contas, a falar de uma estrela pop, mesmo que o seja apenas no continente europeu. Pelo que nem o facto de já serem poucos os resistentes ("poucos", comparando com o tamanho total do recinto), nem a hora tardia do espectáculo (podia, e devia, ter tocado três horas antes; teria prendido melhor o público), nos pode levar a crer que aquele palco era demasiado grande para Stromae. De todo: ele merece-o, e provou-o.
Começou com um discurso em púlpito, como que anunciando uma candidatura ou a vinda de um novo Deus; passou pelo rap e pela batida Safri Duo; chegou a Mozart, ou a teclados que soavam como Mozart, enquanto um vídeo com crianças-soldado animadas ia passando em fundo. E estamos só a falar dos primeiros dez minutos. O que Stromae levou ao NOS Alive foi um belíssimo espectáculo pop, digno dos maiores entre os maiores. Que ainda não tenha "rebentado" nos Estados Unidos, condição sine qua non para se ocupar o topo, deve-se única e exclusivamente à língua (sendo que o belga, que se fez ouvir em francês e inglês, arranhou ainda umas palavras em português). Pelas canções não será de certeza: destacaram-se 'Papaoutai', lamento ao piano transformado em baile de aldeia, 'Senté', cuja dança específica foi-nos ensinada com recurso a um vídeo educativo, ao estilo de hospedeira em avião, e o encore (antes de um momento barbershop quartet, ou neste caso quintet) com o maior dos seus sucessos: 'Alors On Danse'. Merecia um estádio cheio.
Recebidos por uma verdadeira claque de futebol, com cânticos a condizer, os Fontaines D.C. passaram pelo Palco Heineken para mostrar o porquê de serem uma das mais badaladas bandas rock do século XXI. O pós-punk vive na sua música, o hardcore recente faz ali uma perninha: olhamos a figura endiabrada de Grian Chatten, encarregue do microfone, e não deixamos de pensar que está ali um puto que ouviu imenso os Iceage. Fora de comparações: ver os irlandeses ao vivo é uma experiência rock n' roll ímpar, é perceber que naquelas guitarras corre o sangue de milhares de becos mal iluminados, que sobre aquele majestoso ruído há um poeta (e todos os irlandeses têm costela de poetas) que ora declama, ora grita, ora puxa pela audiência para que esta puxe mais pela banda. Poucas bandas há, sobretudo nos dias que correm, das quais se possa dizer formarem um magnífico cocktail molotov de eletricidade pura. Os Fontaines D.C., que trouxeram 'Sha Sha Sha' e 'Big Shot', que por várias vezes reclamaram com os seus técnicos devido a alguns problemas de som, são uma delas. Is it too real for ya? Não, a verdade nunca é demais.
Como Stromae, oriundos da Bélgica, país que sempre soube fazer bom rock misturado com toques de eletrónica (os majestosos Soulwax à cabeça), os Balthazar apresentaram-se no Palco Heineken com um mui inglês Lisboa, how're you doin'? antes de se atirarem à dança, alicerçados numa secção rítmica impecável. Mas são igualmente um corpo estranho: mesmo que o ondular do baixo convide ao ondular dos corpos, as suas canções parecem de faca - sobretudo 'I Want You', onde o why don't you pick up your phone? gritado por um dos dois vocalistas assustou. Ali coube tudo: sintetizadores, trombone, violino, e os típicos baixo, guitarras e bateria (incluindo uma digital), num concerto que fez com que aqueles que não os conheciam ganhassem ali novos ídolos. Sobretudo pelo final kösmische de 'Fever', que os viu abandonar o palco, um por um, restando só a repetição. Fabuloso.
O NOS Alive prossegue esta quinta-feira, com concertos de Florence + The Machine, Jorja Smith, Celeste, Dino D'Santiago, Nilüfer Yanya, Seasick Steve, Pedro Mafama e Rita Vian, entre muitos outros.
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