A peça abre a edição deste ano do Festival Alkantara, teve estreia mundial no ano passado no Festival de Avignon, em França, e a sua apresentação na Culturgest constitui a primeira presença da criadora brasileira nos palcos portugueses.
“É uma conversa muito difícil e muito complicada, sobre a violência sexual e como existe desde há séculos. É quase um ponto inicial da historia humana, e de como prolifera e continua a existir”, disse a artista, em entrevista à agência Lusa.
A Noiva faz referência direta à 'performer' italiana Pippa Bacca (1974-2008), violada e assassinada durante um percurso que fazia parte de uma atuação internacional no âmbito de um movimento pela paz mundial no Médio Oriente.
“Boa Noite Cinderela” é a designação, no Brasil, da droga “rape drink” (“bebida da violação”), um cocktail de sedativos, colocado dissimuladamente nas bebidas da mulheres, com o objetivo de as violar.
O espetáculo, apresentado pelo coletivo Cara de Cavalo formado em São Paulo, no Brasil, com o qual a autora trabalha desde 2015/2016, terá ainda apresentações no Teatro Municipal do Porto, em 22 e 23 de novembro, onde finaliza a sua digressão.
“Estou especialmente feliz por poder apresentar o espetáculo a um público que fala a mesma língua”, comentou a artista à agência Lusa, lembrando que realizou uma residência no Porto, em 2021, no âmbito do projeto desta trilogia, “Cadela Força”, cujo primeiro capítulo é a “A Noiva e o Boa noite Cinderela”.
Questionada sobre a urgência da sociedade abordar a violência sexual sobre as mulheres e o feminicídio, Carolina Bianchi disse não se considerar uma artista que se define a tentar fazer um trabalho de denúncia.
“Eu estou bastante obcecada com aquilo que está na sombra, e com os assuntos complexos como a violência social. Quando penso nas sombras, há um lugar muito grande do nosso imaginário que se conecta com esses assuntos complexos, delicados”, apontou.
A peça “A Noiva e o Boa noite Cinderela” define-se, antes, por uma ligação muito forte com a arte: “O meu ponto de partida tem muito mais a ver com uma questão artística, de como as linguagens artísticas ao longo da história, como a performance, o teatro, a literatura, conseguem dar contornos, ou não, para sustentar uma conversa sobre violência sexual”.
Foi durante a pandemia, quando Carolina Bianchi e o seu grupo de artistas ficaram sem perspetivas de trabalho, que decidiu fazer um mestrado sobre teatro em Amesterdão, e ali começou a investigar e a levantar perguntas globais sobre o propósito do seu projeto.
Dessa pesquisa sobre o seu trabalho em cena, os textos usados, a performance, a violência sexual e a vida de artistas mulheres, surgiu a ideia da trilogia sobre a questão da violação e a relação com as linguagens artísticas.
O ponto de partida do espetáculo é a história de Giuseppina Pasqualino di Marineo, conhecida como Pippa Bacca, uma artista italiana que, juntamente com uma colega, viajou de boleia a partir de Milão com intenção de chegar ao Médio Oriente, numa ação simbólica de apoio à paz mundial, usando um vestido de casamento durante a caminhada.
Pippa Bacca acabaria por desaparecer em Gebze, na Turquia, em março de 2008, e o seu corpo violado foi descoberto na mesma cidade depois de a polícia capturar o homicida.
A artista fazia parte de um movimento pela paz mundial conhecido como "Noivas on Tour", que passou pela Eslovénia, Croácia, Bósnia e Herzegovina, Sérvia e Bulgária, chegando à Turquia, onde planearam viajar à boleia para Síria, Líbano e, finalmente, para os territórios palestinianos e Israel, com Jerusalém como destino final.
“Embora tenha escolhido Pippa Bacca como vítima simbólica, neste espetáculo eu não estou a escolher as artistas como vítimas de violência sexual. Estou a falar de artistas que traziam essa questão para o seu trabalho. As histórias que levo ao palco são sobre mulheres não artistas e como a história da arte retratou essa violência”, descreveu a dramaturga e 'performer' brasileira.
No objetivo do espetáculo não está nem a denúncia de uma realidade violenta sobre as mulheres, nem a necessidade de provocar certos sentimentos no público, esclareceu Carolina Bianchi.
“Não espero que o público sinta ou tenha esta ou outra reflexão sobre a violência sexual. Não sei o que vai acontecer. Não sei se o público vai fazer uma reflexão, se vai negar. Há algo no teatro que eu amo, que é abrir um caminho para um labirinto onde cada pessoa vai fazer ali a sua viagem, vai construir a sua jornada”, disse a artista.
O papel do teatro é “propor a coletivização daquele problema, que deixa de ser pessoal, individual, e passa a ser coletivizado naquele encontro, e também no plano do imaginário, não só no plano documental, não só para contar histórias terríveis e as pessoas chorarem”, apontou.
“Também não é para depois as pessoas se sentirem melhor. Não há essa catarse, isso não é verdade, o espetáculo não propõe uma cura. A violência sexual é uma ferida que não sara. O que estamos a fazer é perguntas, não é oferecer respostas. Apresentar as respostas às grandes questões não é o trabalho dos artistas. É antes mergulhar nos assuntos e questionar”, defende a criadora de trabalhos como “O Tremor Magnífico” (2020) e “Lobo” (2018).
Carolina Bianchi diz rejeitar totalmente qualquer responsabilidade dos artistas em darem respostas, ou dizerem o que a sociedade deve fazer.
“Os tempos estão a mudar, e há coisas maravilhosas que estamos a poder nomear. O que chamamos de liberdade de criação e como a exercemos? O que se cria, como se faz, e para quem? São, todas estas, as questões mais importantes”, acrescentou.
Questionada pela Lusa se está prevista a apresentação do espetáculo no Brasil, o seu país de origem, Bianchi disse ter essa intenção, que “seria importante”, mas lamentou a falta de apoio.
“No Brasil, o trabalho que eu fazia com o meu coletivo, há muitos anos, não encontrou um suporte institucional para existir. As peças foram sempre feitas com empréstimos, financiamento coletivo. E isso tem um limite, porque eu queria trabalhar com um grupo grande. Percebi que não era possível melhorar as condições, a passar de um trabalho para o outro”, recordou.
Nessa altura o coletivo foi obrigado a tomar uma decisão: “Havia um constante esforço de criar espetáculos, 'workshops', laboratórios, mas estávamos sempre no limite de sobrevivência e chega a um ponto que não dá mais”.
Depois, no final do mestrado em Amesterdão, surgiu “a surpresa” de instituições europeias se interessarem pelo seu trabalho.
Em maio de 2025, Carolina Bianchi e o coletivo Cara de cavalo vão estrear a segunda parte da trilogia "Cadela Força", em Bruxelas, na qual já estão a trabalhar, e que terá como título “The Brotherhood” ("A irmandade", em tradução livre), revelou à Lusa.
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