Tim Bernardes é filho de Maurício Pereira, cantor, compositor e saxofonista brasileiro que em 1996 transmitiu o primeiro espetáculo ao vivo via Internet no país do samba. Foi com ele que formou o duo Pereirão e Pereirinha e com quem, mais tarde, dividiu a autoria de metade dos temas do primeiro disco da banda O Terno.

E é impossível falar de Tim Bernardes sem falar de O Terno. É, também, impossível falar com Tim Bernardes sem ele deixar de mencionar O Terno. Banda de indie rock que aos 17 anos formou com Guilherme D'Almeida e Victor Chaves [substituído em 2015 por Gabriel Basile], e com quem já editou três discos. Assim foi, ao longo de pouco mais de meia hora de uma conversa que se alongou ao Brasil de hoje, o da mentalidade das hashtags, e que, obrigatoriamente passou por "Recomeçar" — o seu primeiro trabalho a solo, editado em outubro de 2017, é composto por treze canções, que mais do que amor, são de busca. E não tendo sido compostas para lançar, foram guardadas numa gaveta que não trancou. E ainda bem.

O músico está em Lisboa para o Super Bock em Stock onde atuará, este sábado, no Teatro Tivoli BBVA.

Como lidas com o título "revelação da música brasileira"? Essa etiqueta traz algum tipo de responsabilidade?

Não sei. Porque quando você começa trabalhar nisto [na música], a fazer shows e a conversar com a imprensa, você entende que isso pode depender de quem o escreve. Eu sempre me pauto mais pelo que o público sente. Quando o projeto O Terno surgiu, a gente era bem nova, também teve essa coisa de ser a banda revelação. Então parece uma revelação se revelando. Depois veio aquela coisa do 'se consolida'. Mas eu gosto. Independentemente do título, gosto de ser colocado nessa linha do tempo da música brasileira. Isto porque os anos 60 foram muito férteis; já os anos 80 e 90 foram muito voltados para a indústria, no Brasil e no mundo todo. É legal uma coisa fora da gravadora [de edição independente], que é o caso e d'O Terno, conseguir chegar a essa linha do tempo.

Alguma vez sentiste o peso de "ser filho de"?

O primeiro disco d'O Terno é quase como se fosse um EP. Tem cinco músicas nossas e cinco com o meu pai. Naquele momento isso era uma coisa natural, não tínhamos receio de estar associados a ele. Até porque eu sentia que as semelhanças e as diferenças eram mais ou menos claras para quem ouvisse. A partir do segundo disco d'O Terno ["O Terno", 2014] comecei a buscar essa emancipação, a gente se afastou artisticamente. A minha busca tem muito a ver com a minha época. Uma busca por tentar perceber o que é o indie hoje, o que é o indie no Brasil; o que é a música popular brasileira hoje e como ela se mistura. Comprar a função de abrir um caminho; um caminho num terreno que ainda não tinha sido explorado. Os anos 90 foram assim uma espécie de ruína da música de indústria no Brasil e O Terno surge num momento que começa a ficar fértil de novo por um outro meio, que é a Internet. Depois do segundo disco essa [associação ao meu pai] já não era sequer uma questão; O Terno cresceu com um público mais jovem que com o público do meu pai.

"Quando O Terno surgiu também teve essa coisa de ser a banda revelação. Então meio que parece uma revelação se revelando"

"Recomeçar", editado em 2017, surge cinquenta anos depois do início do Tropicalismo. Está ele também inscrito num recomeçar com uma nova geração de músicos, ouvintes e até da própria indústria brasileira?

Nunca tinha pensado nisso assim e [o Tropicalismo] é uma das coisas que mais ouvi. Faz sentido porque enxergo o "Recomeçar" quase como um disco onde me formei. Aprendi muitas coisas nos discos de O Terno e fazer esse disco [a solo], depois três [com a banda]... Tem muito a ver com uma fase de mudança para a vida adulta... E com o que aprendi com os meus pais, na escola, com a música brasileira, com o Tropicalismo, com os Beatles... Fui explorando isso tudo e no "Recomeçar" já estou sem medo de me mostrar. Criei o meu próprio caminho. Por isso, de alguma forma, é um recomeço para mim, mas que sincroniza com o que você disse. 

E quando é que quando os temas de "Recomeçar" começaram a surgir. Porque não nasceram todos no mesmo período...

A primeira música, a "Não", fiz ainda antes do primeiro disco de O Terno ["66", 2012]. Sabia que não fazia sentido incluí-la nele: por ser mais íntima, porque fazia mais sentido ser tocada a violão e voz e porque não fiz para lançar. Fiz para mim, quando estava a passar por algo. E ficou escondida, só alguns dos meus melhores amigos a conheciam. Abordar alguns temas mais pessoais era uma coisa que no começo de O Terno não era a minha vontade. Como a gente veio dessa cena muito saturada da canção de amor padronizada de gravadora dos anos 90, eu queria ir buscar mais a maluquice, coisa fora do padrão e a criatividade. O primeiro disco de O Terno é isso: um statement estético do que a gente não é. 

Mas a grande maioria desses temas de "Recomeçar" nascem perto do segundo disco de O Terno. Muitas músicas são, mais do que um momento de término, um momento de solidão. São momentos de contacto comigo mesmo, a pensar o que eu quero fazer, quem eu virei e quem eu quero virar. É um disco de busca. Mais do que um disco de amor, é um disco de busca. É um disco bonito, de esperança. Embora ela não esteja logo no início do disco, mas no fim. "Recomeçar" é um limbo entre o fim e o começo.

Esses temas quando foram compostos, foram compostos para algum dia serem editados ou simplesmente para a gaveta?

A música "Não" não a quis lançar. As outras elas foram para a gaveta, mas já pensava que podiam ser para um disco a solo. Então elas foram para a gaveta, mas não tranquei à chave.

E quando é que chegou a vontade de as mostrar?

No tempo do disco "Melhor Do Que Parece", por volta de 2016, juntei todas as músicas que tinha e percebi que já estava ali um disco completo. Já formava ordens na minha cabeça, já imaginava onde é que entravam os arranjos. Tinha o disco arquitetado. Aí quando a gente gravou o "Melhor Do Que Parece" meti na cabeça que em alguma hora eu tinha de por a mão na massa, concretizar o "Recomeçar". Senti-me à vontade, confiante e com vontade de lançar. No fim de 2016 resolvi marcar o estúdio.

"O disco pegou um ano de ruína [no Brasil] e as pessoas entraram na fossa juntas."

Mais do que um ano passado deste o lançamento de "Recomeçar", que balanço fazes? Há arrependimento?

Não, só surpresas boas. Porque eu não tinha muito a noção de como ia ser recebido, n'é? Nunca tinha mostrado a maioria das músicas a ninguém. Mas não é como se estivesse completamente sem referências porque tinha público de O Terno. "Recomeçar" apanhou o embalo do nosso terceiro disco ["Melhor Do Que Parece"], mas ao mesmo tempo é mais universal e menos de nicho. Não é só um indie ou um hipster que se relaciona. Vejo isso no público dos shows. Tem gente mais velha e mais nova, nem todo o mundo é do mesmo estilo. O disco pegou um ano de ruína [no Brasil] e as pessoas entraram na fossa juntas.

A "Tanto Faz" foi composta quando?

Em 2016.

Mas parece que faz cada vez mais sentido no Brasil do momento. A letra adequa-se aos dias de hoje: "Tanto faz / Quem saiu, quem entrou / Tanto faz / De que lado ficou / Tanto faz / Eu vou sempre perder (...) E ninguém é capaz de opinar se ouvir só um lado". 

O triste é que a canção é de 2016 mas encaixa exatamente em 2018 ou em 1501. No Brasil a grande separação sempre esteve entre os poucos que concentram o dinheiro e o poder e os muitos sem dinheiro e sem poder. Essa é a questão crucial do Brasil. Um país que se formou com uma mentalidade escravocrata e que tem uma desigualdade social crónica. Isso desenrola para tudo o que vimos na história do Brasil e nesse momento especialmente efervescente. De uma certa forma, claro que não é 'tanto faz', n'é? Se você olhar para o [contexto] micro, cada candidato ali [nas eleições de outubro] podia enveredar para um lado, mas num [contexto] macro, pensando que o Brasil precisa mesmo de distribuição de renda, isso não aconteceu quando a direita ou a esquerda estavam no poder. Nem quando os militares estavam no poder, nem quando tinha um rei. Essa é que é a desilusão grande do "Tanto Faz". A situação hoje é outro assunto. Na minha vida é inédita, porque nos anos 90 a coisa estava mais ou menos estabilizada. De 2013 para cá a polarização chegou a níveis muito irracionais. Vejo isso numa mentalidade de hashtags, não tem muita profundidade.

"No Brasil a grande separação sempre esteve entre os poucos que concentram o dinheiro e o poder e os muitos sem dinheiro e sem poder"

Indo outra vez atrás, aos anos do Tropicalismo. Tal como a geração do Caetano Veloso, do Gilberto Gil ou do Tom Zé se manifestou politicamente através da música, a tua deve também tomar partido? E como pode intervir?

Depende de como as coisas se desenrolarem. Por exemplo, não imaginava que um dia ia compor um tema como a "Tanto Faz" — que nem é sobre esse momento específico — mas a política ela está interferindo na nossa vida quotidiana. O que ficou conhecido como a música de resistência no Brasil já era uma resposta à ditadura militar. A gente agora tem canções, que já começam a aparecer, contra a mentalidade fascista que o Bolsonaro traz. Mas ainda que muito fraca e frágil, ainda vivemos numa democracia no Brasil.

créditos: Rita Sousa Vieira | MadreMedia

No recente período quem vemos tomar a dianteira das manifestações públicas são os mesmos dessa geração que referia. Durante o período eleitoral, nas redes sociais, vocês fizeram uma publicação, o Cícero e o Rubel também o fizeram, entre muitos outros. Mas na rua quem vimos foi o Chico ou o Caetano. 

É muito difícil compreender o que está a acontecer e como se portar no meio disto tudo. Numa época onde o diálogo na rede social é muito raso. Nesse momento, tanto O Terno como eu, a gente pensou na situação específica: estava acontecendo uma eleição; no segundo turno, um dos candidatos falava absurdos e coisas que violam os direitos humanos, o outro candidato foi um prefeito [autarca] bom, em São Paulo, e que sempre pareceu um cara muito estudado, honesto e que faz parte de um partido, o PT, que desiludiu muita gente por ter entrado no jogo da corrupção, não sendo o único como muita gente tenta pintar. Diante de uma situação específica como essa, se fosse só o caso da direita contra a esquerda, como em outras ocasiões, acho que não me ia manifestar publicamente.

"Bora votar pela Democracia", foi o que vocês escreveram nas redes sociais.

Sentimos que era uma situação excecional, atípica. Eu, meus amigos, muita gente que pensa como eu — sei lá, 40 % do Brasil —, sente receio do que possa acontecer e o que pode o governo do Bolsonaro fazer com a democracia, com os direitos humanos, com a liberdade de expressão e de imprensa. Porque embora ele não tenha tomado nenhuma medida em relação a isso, ou muita vez quando fala se desculpa e diz que não é assim, tem falas dele claramente ditatoriais. Neste caso a gente falou assim: não é uma questão de que se gostar do PT ou não gostar do PT. Se tivesse qualquer outro, poderia ser um candidato direita, essa publicação valeria na mesma. É um post só contra o Bolsonaro. Basicamente é isso. As manifestações... a gente também não pode se apressar, se afobar [ficar ansioso]. É uma eleição e o cara ganhou. Quando Dilma ganhou e as pessoas que votaram no Aécio se começaram a rebelar, falei que a Dilma ganhou democraticamente e tínhamos que o aceitar. Agora temos de aceitar que esse cara [Bolsonaro] ganhou democraticamente, só que a gente tem de ficar de olho. E se ele cruzar as linhas da democracia, aí sim, a gente tem de se posicionar e se manifestar. Ele foi eleito. Não é um momento mais de ir para a rua gritar "Ele Não". Não é o momento de ir para a rua gritar contra uma ditadura. Porque ainda não é uma ditadura e tomara que não o seja. Por isso não tem que pensar já 'ai meu Deus, eu vou me exilar' ou 'agora eu vou não sei quê'. Temos de ter calma, atenção e tentar entender o que está a acontecer. Essa é a minha visão, sempre quero tento as coisas com calma e parcimónia e menos nesse ritmo hashtag.

"Não é um momento mais de ir para a rua gritar 'Ele Não'. Não é o momento de ir para a rua gritar contra uma ditadura. Porque ainda não é uma ditadura e tomara que não o seja."

Mudando de assunto, como foi ter a Gal Costa a cantar "Realmente lindo" no seu último disco?

Foi um máximo e fiquei muito emocionado. Sou muito fã da Gal. E era uma música que compus e que vai muito ao imaginário do que a Gal e o Caetano cantam, muito alegre e intimista. Ouvir a Gal cantando me dá um loop na cabeça, porque foi com ela que aprendi. Foi uma realização ter ela cantando um tema meu.

Quais foram os teus primeiros discos?

Tinha muitos vinis em casa, do meu pai. Então ouvia muita coisa. Ouvia Beatles desde pequeno. Quando tive idade para comprar um primeiro disco, devia ter uns doze anos, o que tocava na rádio era Red Hot Chill e Peppers ou Strokes. Era início de uma mentalidade indie. Mas eu fiquei muito apegado na década de sessenta e setenta, com o Caetano, o Gil, os Mutantes... Acho que os Mutantes e os Beatles foram o que mais me marcaram.

O psicadelismo...

Mas mais do que isso, são bandas de canções pop. E que conseguem colocar experimentalismo e psicadelismo sem parar de comunicar com quem ouve. Porque bandas simplesmente psicadélicas não me chamavam tanto à atenção como estas que tinham um sabor agridoce.

créditos: Rita Sousa Vieira | MadreMedia

Haverá novo disco a solo ou ficamos só pelo “Recomeçar”?

Acho que sim, ainda não é um plano próximo. Agora estamos preparando um de O Terno, a ser lançado no ano que vem, e que de alguma forma é um disco que está no meio do caminho entre o "Recomeçar" e o "Melhor Do Que Parece". Já tenho algumas músicas prontas, mas eu estou querendo espaçar um pouco mais as coisas porque em poucos anos fiz quatro discos. O processo de fazer um disco é muito intenso e quando acaba e você já está exausto começa a tournée.

Estás Portugal pela terceira vez, sendo que a primeira foi com O Terno e última para uma mini tour, já com "Recomeçar", que passou por Lisboa, Setúbal e Espinho sempre com sala esgotadíssima. Esperavas essa receção? 

Com O Terno estive duas vezes, uma oficial [2017] e outra, no começo de 2016, quando fomos ao Primavera Sound Barcelona e depois disso viemos para Lisboa fazer um show assim sem nada previamente marcado. [No regresso, a solo] fiquei bem impressionado. Porque normalmente um show fora não seguiria uma lógica semelhante a um show no Brasil. Eu sou de São Paulo e eu sei que aí o público me conhece. Quando eu vou para outra cidade, como para Recife, já espero que as pessoas conheçam mesmo que eu não conheça as pessoas. Mas, aqui, isso aconteceu como se fossem [essas cidades] partes do Brasil. Conversei com as pessoas, como faço lá; as pessoas sabiam as músicas. Foi ótimo. Surpreendente.

O que podemos esperar do concerto deste sábado no Super Bock em Stock?

Esse show, de alguma forma, é semelhante aos que fiz aqui, mas é mais no formato em que faço no Brasil. Com piano de cauda, com iluminação — a minha iluminadora veio do Brasil. Quando fiz o "Recomeçar" tinha tanta vontade de fazer o disco sozinho, com todos os arranjos gigantes que eu imaginava, quanto a vontade de fazer um show de compositor, sozinho, como se eu tivesse no meu quarto mostrando as músicas. Será um show íntimo com foco nas canções.