“Nos terrenos do local conhecido pela Gândara, entre finais de 1919 e maio de 1923, desbravam-se terras, abrem-se acessos, liga-se um ramal de caminho de ferro privativo à estação de Martingança, constroem-se edifícios com tijolos e telhas produzidas numa fábrica de cerâmica instalada exclusivamente para a construção da fábrica de cimento (...) Em 4 de Julho de 1920 foi lançada a primeira pedra, “a pedra angular”, tal como se encontra no cunhal do edifício dos cabos aéreos e da britagem dos calcários e das margas  (...)”

Imaginem estas palavras lidas em voz alta, preferencialmente com tom solene de quem anuncia que uma nova era está a chegar. As palavras, na verdade, não foram lidas, mas escritas por Gil Braz de Oliveira no livro que lhe foi encomendado pela Cimpor, em 1991, e que tem o título de “Evocação de José de Osório da Rocha e Mello”, um nome que dirá pouco ao comum dos portugueses, mas que é decisivo na história da maior cimenteira portuguesa, hoje propriedade da Semapa.

O livro está exposto no Museu da Fábrica de Cimento Maceira-Liz, em Leiria, que se tornou o epicentro da produção industrial de cimento a partir da segunda década do século XX. É o que nos conta Ricardo Batista, historiador de ciência e responsável pelas visitas neste espaço, que nos conduz por uma viagem de quase um século até aos dias de hoje.

Fábrica de Cimento Maceira-Lis
créditos: Paulo Rascão | MadreMedia

Entre calcário e marga, há uma pedreira que quase 100 anos depois - em 2023 completa-se o centenário da inauguração da cimenteira – continua a ser perfurada para dali sair a pedra que vai ao forno como se de um bolo se tratasse. Duas horas depois, sai cimento. Parece simples, mas é complexo. Há conhecimento de química, de engenharia e mais recentemente de impacto ambiental.

O fabuloso destino de José Osório da Rocha e Mello

“Talvez poucos conhecerão as verdadeiras razões que determinaram o nascimento do cimento Portland em Portugal, na antiga povoação de Maceiras. Tudo começou com o cruzamento feliz das trajetórias de dois homens de craveira superior, Henrique de Sommer e Rocha e Mello”. Somos guiados pela narrativa de Gil Braz de Oliveira, que conheceu pessoalmente as pessoas que retrata. “Na história da  humanidade há destinos singulares que se realizam na vida sob o destino da perfeição – na medida em que esta existe no plano humano. Nesses raros casos, o Homem, o lugar, o tempo, tudo parece harmoniosamente reunido, porque se o acaso pode contribuir para os grandes destinos históricos, são eles próprios que desbravam os caminhos que outros hão-de percorrer”. Gil Braz de Oliveira usa as palavras do professor José V. de Pina Martins para ilustrar como vê o destino único de José Osório da Rocha e Mello.

O que juntou “dois homens de craveira superior, Henrique de Sommer e Rocha e Mello” foi um produto revolucionário à época e uma visão ainda mais revolucionária da importância que esse produto teria no futuro, nomeadamente na forma como se iriam construir os novos edifícios, casas, empresas, comércio. O produto era um novo tipo de cimento – chamado Portland, descoberto em 1824 por Joseph Aspdin, um oleiro de Manchester. As fábricas de cimento começam a ser criadas em Inglaterra, França, Alemanha e Estados Unidos ao longo do século XIX, mas em Portugal, segundo nos conta António Pedro Pombo, no seu trabalho “A’Indústria Social’ da fábrica de Maceira-Liz: Política social e operariado na indústria do cimento”, “o desenvolvimento desta indústria, na sua fase inicial ou 'pré-Portland', havia passado por uma sucessão atribulada de experiências que, regra geral, resultaram num produto de deficiente qualidade e incapaz de concorrer com os cimentos produzidos no estrangeiro”.

Tudo isso mudaria no final do século XIX, com a inauguração em 1892 da fábrica de cimentos de Alhandra onde é produzido pela primeira vez o cimento artificial Portland, ou o cimento “Tejo” como também lhe chamaram. Portugal era ainda uma monarquia e a nova indústria foi introduzida através da concessão pelo rei D. Carlos da patente de introdução do novo cimento no país por um período de dez anos [in “A’Indústria Social’ da fábrica de Maceira-Liz: Política social e operariado na indústria do cimento”].

Assiste-se então ao primeiro boom da indústria cimenteira em Portugal, mas os níveis de produção deixavam muito a desejar quando comparados com outros países ou sobretudo com o diferencial de produção face ao consumo: a produção nacional rondava as 15 mil toneladas por ano e o volume de importação era de cerca de 45 mil toneladas anuais.

Uma brevíssima história do cimento

A palavra cimento tem origem no latim caementum  numa alusão, segundo vários registos, a Roma que era construída com pedra natural de rochedos e sentadas com argamassa e aditivos especiais. É difícil ser rigoroso sobre a primeira construção que utilizou o cimento como elemento de ligação, mas há referências segundo as quais as primeiras construções egípcias terão sido feitas de tijolos confecionados com lama do rio Nilo, com ou sem adição de fibras vegetais. Esses tijolos eram secos ao Sol, e posteriormente, ligados entre si por camadas da mesma lama formando, portanto, uma peça sólida de tijolo e argila.

O cimento precisaria, todavia, de muitos mais séculos até se tornar o principal material de construção usado como aglomerante com resistência mecânica. O salto em frente acontece no século XVIII com a invenção do cimento artificial através da mistura de componentes argilosos e calcários. Em 1824, o construtor inglês Joseph Aspdin queimou conjuntamente pedras calcárias e argila, transformando-as num pó fino, e percebeu que obtinha uma mistura que, após seca, tornava-se tão resistente quanto as pedras utilizadas nas construções. Não se dissolvia em água e foi patenteada pelo construtor com o nome de cimento Portland por apresentar cor e propriedades de durabilidade e solidez semelhantes às rochas da ilha britânica de Portland.

O clínquer é o principal componente dos cimentos Portland, contendo compostos que imprimem a característica de ligante hidráulico e estão diretamente relacionados com a resistência mecânica do material após a hidratação. A sua produção é fulcral no processo de fabricação de cimento, sendo a etapa mais complexa em termos de qualidade e custo.

No processo de fabricação do cimento Portland, o clínquer de cimento Portland sai do forno a cerca de 80°C, indo diretamente à moagem onde é adicionado ao gesso e imediatamente ensacado em sacos de papel kraft, podendo chegar aos depósitos de distribuição ainda quente.

É aqui que a Empreza de Cimentos de Leiria, projeto que junta José Osório da Rocha e Mello e Henrique Sommer vem mudar as regras do jogo e o futuro de toda uma indústria no país.

Localizada na freguesia de Maceira, a Fábrica de Cimento Maceira-Liz apresentou desde os primeiros anos um volume de produção que mais que triplicava o total da produção nacional, ou seja, em torno das 50 mil toneladas. O que é que fez a diferença? A inovação nos processos de produção é apontada como a primeira razão. Foi aqui que se construiu o primeiro forno rotativo da indústria cimenteira portuguesa, em 1920, e foi também aqui que se instalou o primeiro laboratório de controlo de materiais. “O grau de modernização tecnológica introduzido por esta fábrica, na dianteira da capacidade então instalada nesta indústria no país, obrigaria as suas congéneres (as unidades de Alhandra e da Rasca/Outão) a proceder a sucessivas inovações qualitativas, de modo a garantir a concorrência com o cimento “Liz””, escreve António Pedro Pombo.

Os dois fundadores do projeto têm papéis distintos na história. Henrique Sommer traz o dinheiro, o jovem engenheiro civil José Osório da Rocha e Mello traz a ideia e o saber fazer, nomeadamente com o que tinha visto no país onde irá mais tarde buscar operários qualificados, a Alemanha. Mas o dinheiro e a ideia seriam apenas o princípio de uma empreitada que mudou a região, a sociedade local e, como se veria mais tarde, a economia do país.

Fábrica de Cimento Maceira-Lis
créditos: Paulo Rascão | MadreMedia

“Um arrabalde da utopia”

O projeto arranca nos anos que se seguem ao final da 1ª Guerra Mundial. Portugal, como outros países, está financeiramente frágil, o escudo desvaloriza face à subida vertiginosa da libra inglesa e a fortuna pessoal de Henrique Sommer (avaliada em cerca de 18 mil contos, segundo cálculos de 1920 – segundo lemos também no trabalho “A’Indústria Social’ da fábrica de Maceira-Liz: Política social e operariado na indústria do cimento”) mostrava-se curta para cobrir todas as despesas da construção da fábrica com as premissas de inovação tecnológica e laboral que trazia. Estavam previstos 500 trabalhadores para o arranque, o que associado ao custo das máquinas  e às obras de instalação elevava o patamar do investimento.

A tudo isso somava-se a inexistência de infraestruturas de transporte – estamos nos anos 20, do século XX, numa povoação do distrito de Leiria, afastada de qualquer centro nevrálgico do país e a linha ferroviária não chega ali, ao lugar da Gândara, de onde teriam de ser transportadas as toneladas de cimento produzidas. Os dois sócios tomam uma nova decisão, a de construção de um ramal ferroviário privativo com cinco quilómetros a ligar a fábrica à rede nacional de caminhos-de-ferro.

Sobrava ainda outro desafio: o das pessoas. Foi preciso recrutar e as gentes da terra não eram suficientes nem em número nem em qualificações. Assim, contratou-se por todo o país e trouxeram-se técnicos alemães para completar as necessidades. Nascia uma nova comunidade ao redor da fábrica de cimentos e com ela começou a ser construída uma espécie de “cidade do cimento” com casas, escola, posto médico, igreja, clube desportivo, parque infantil e outros equipamentos pensados para servir de suporte aos trabalhadores da fábrica e das suas famílias. O Bairro da Empreza de Cimentos tornou-se uma verdadeira cidade operária ou, nas palavras de Agostinho de Campos, em 1936, “um arrabalde da utopia”.

O investimento nesta “cidade” revelou-se decisivo ao sucesso da fábrica, quer pela motivação de quem lá trabalhava, quer na atenuação de hostilidades do país rural que envolvida a área onde tinha sido instalada a empresa.

A cimenteira prospera, não sem vários obstáculos de percurso e um período particularmente difícil da 2ª Guerra Mundial. A Henrique Sommer sucede o seu sobrinho, esse sim um nome bem conhecido da generalidade dos portugueses - António de Sommer Champalimaud, então com apenas 26 anos de idade.

É um Champalimaud jovem, mas já fiel ao que todos reconheceriam ao longo dos anos como o seu estilo de liderança que toma várias decisões com impacto no futuro da empresa e do setor. É por causa dele que a Fábrica de Cimento Maceira-Lis estagna durante alguns anos - houve despedimentos e congelamento de investimentos – para que os esforços fossem concentrados na construção do que seria o seu futuro “império”, nomeadamente com a instalação de cimenteiras em Angola e Moçambique para onde exportou o know-how adquirido na Maceira. A Empreza de Cimentos de Leiria (ECL) orienta-se então para uma estratégia expansionista privilegiando os territórios em África.

Em 1944, a ECL adquire ao Banco Nacional Ultramarino, a Fábrica de Matola em Moçambique, seguindo-se em 1945 a fundação da Companhia dos Cimentos de Moçambique. Em 1951 e 1963 foram construídas a Fábrica Nova-Maceira e a Fábrica Nacala. Fundou ainda em Angola, em 1946, a Companhia dos Cimentos de Angola e em 1952 construiu a Fábrica do Lobito. Em todo este processo, a Fábrica de Cimento Maceira-Liz foi o motor da expansão mesmo que à custa de uma pausa no seu desenvolvimento, retomado com a montagem do forno nº4 em 1957.

A fábrica da Maceira-Liz, inaugurada em 1923, e a fábrica Cibra-Pataias, fundada em 1950, estão na origem da CMP – Cimentos Maceira e Pataias, hoje 100% detida pela Semapa.

O 25 de Abril e o processo de nacionalizações em 1975 voltam a mudar a face do setor dos cimentos. A 26 de março de 1976, com a nacionalização de sete cimenteiras portuguesas, é constituída formalmente a empresa pública CIMPOR – Cimentos de Portugal, que contou desde o início com as três fábricas de cimento - Alhandra, Loulé e Souselas, bem como, a Fábrica de Cal Hidráulica do Cabo Mondego e as fábricas da Maceira-Liz e Pataias.  Na década de 90, as reprivatizações devolvem aos privados o controlo do negócio e, em 1994, a Semapa, compra 51% do capital da Secil e 100% da CMP – Cimentos Maceira e Pataias.

É toda esta história que pode ser percorrida na visita à Fábrica de Cimento Maceira-Liz e ao seu museu. Se chegou até aqui, é porque a visita lhe é muito recomendada.

Roteiros do Património Industrial

As visitas no âmbito dos roteiros de património industrial têm dias e horários agendados e podem ser marcadas diretamente nas empresas ou através da Câmara Municipal da Marinha Grande.