Cortam-se o Reino Unido e os Estados Unidos da equação, e o que nos sobra, no pódio dos maiores exportadores de música? O Brasil, pois claro, terra de samba e pandeiro, país do chorinho, do mangue beat, do funk carioca e, claro, da bossa nova, o género que, nos anos 50, partiu do Rio de Janeiro e conquistou todo um planeta, de Hollywood a elevadores de hotéis. Caetano Veloso cantou que a bossa nova é foda, Millôr Fernandes descreveu o Brasil como um filme pornô com trilha de bossa nova. Longe dessas declações ultrassexuais, artistas como João Gilberto fizeram do género um adolescente romântico, como só românticos sabem ser os adolescentes. E, no mais alto dos panteões, o género de panteões que só se reservam aos génios, estava António Carlos Jobim, um nome próprio, dois apelidos que mudaram para sempre a história da música gravada.

A bossa é nova e é nossa. A grande homenagem de Seu Jorge e Daniel Jobim na Altice Arena

António, Tom para os amigos e para o resto, foi a figura que se escolheu homenagear numa noite em que a Altice Arena recebeu o seu próprio neto, Daniel, ao lado de Jorge Mário da Silva, ou Seu Jorge (também para os amigos e para o resto). Talvez estas canções, por tanto gostarmos delas, por tanto as romantizarmos, por tanto as carregarmos de sexualidade, merecessem um espaço mais intimista que não uma sala com capacidade para 20 mil pessoas, mesmo com os balcões superiores suprimidos. Por outro lado, a música que colocou o Brasil no panorama pop mundial não pode senão encher grandes salas. É esse o seu destino, e continuará a sê-lo enquanto por todo o mundo milhares de pessoas aprenderem a tocar violão ao som de 'Chega de Saudade'.

Pela existência desses milhares, seria difícil àqueles quatro músicos (Daniel, Seu Jorge, um contrabaixista e um baterista) estragarem, de alguma forma, canções que todos conhecem de ginjeira. Mais difícil seria mantê-las frescas. Mas, ao longo de hora e meia, foi isso que conseguiram – em grande parte. O vozeirão grave e sujo (“sujo”, no rock n' roll, é elogio) de Seu Jorge não é de todo o que se pede num género como a bossa nova, banhado pela maresia, mas as suas reinterpretações mereceram nota positiva. Exceção feita a 'Retrato Em Branco E Preto', sendo que nunca ninguém conseguirá superar a versão de João Gilberto em Montreux. As pausas que fazia entre versos arruinaram toda a sofrência da canção... E o facto de o crítico ter tido o azar de se sentar ao lado do único grupo que não se calava numa Altice Arena completamente silenciosa também não ajudou.

O silêncio imperou, apesar dos vários pedidos, em palco, para que o público se juntasse aos músicos. O início, pouco para lá da hora marcada, deu-se com 'Wave', tema que empresta o título a um dos melhores discos de Tom Jobim. Sentado, Seu Jorge arrancou aplausos assim que soltou a voz, navegando por 'A Correnteza' e erguendo-se para os braços de 'Luísa', logo depois. Nas primeiras filas, o público assistia e escutava, compenetrado, como se o mínimo gesto fosse estragar a magia. O que faz da bossa nova um género tão resistente à passagem do tempo é isso mesmo: a ideia de ser tão frágil que é preciso pegar nele com os maiores cuidados possíveis, como a um neném que o é para sempre.

Daí que não tenha sido montado qualquer tipo de espetáculo cénico, exceção feita a um par de vezes em que a silhueta de Tom Jobim foi exibida no fundo de palco. O importante é a canção. Tão importante, que por vezes foi necessário contar a sua história: assim foi com o clássico 'Só Danço Samba', com Daniel, que tratou Seu Jorge como “irmão” e vice-versa, a fazer o papel de professor. Ele, mais que ninguém, conhece a bossa nova. Está-lhe no sangue e nas memórias. Sobre 'Chega de Saudade', lembrou que João Gilberto chegou a ter algumas dúvidas sobre o sucesso do tema, até receber de Tom Jobim a garantia: claro que vai dar certo!. Em 'Samba do Avião', resgatou a introdução de Dorival Caymni. Assim que Seu Jorge saiu momentaneamente do palco, recuperou 'Bonita', tema inédito de Vinicius de Moraes com o avô.

Esta “noite bonita”, numa “casa bonita”, como salientou o vocalista, acabou por ser sobretudo uma lição. Não podemos realmente entender música sem perceber de onde veio, que é meio caminho andado para perceber para onde irá. No caso, esta foi uma lição sobre bossa nova, mas podia ser uma lição sobre um Brasil onde as 'Águas de Março' fecham o verão (com direito a um 'solo' de Daniel), onde até num 'Desafinado' pode bater um coração. 'Eu Sei Que Vou Te Amar', dedicada aos presentes (e que mereceu o maior aplauso da noite), antecedeu um final com 'Água De Beber' (cantada pelo público após muita insistência) e a absolutamente soberba 'A Felicidade', terminando o espetáculo ao ritmo do samba-encore: 'Insensatez', 'Pra Machucar Meu Coração', 'Samba De Uma Nota Só' e – seriam vaiados se assim não fosse – a mais que obrigatória 'Garota De Ipanema'. Caetano tem razão mas sejamos mais politicamente corretos: a bossa nova é vida.