Diário de um pai em casa. Dia 37
Tenho que reconhecer que o meu filme diário não acompanha, por vezes, o ritmo vertiginoso do mundo lá fora. Estou fechado em casa, mas não estou sem fazer nada. Faço até muito mais do que alguma vez pensava ou sonhava. Mas, não consigo ir a todas. Desculpem, antecipadamente, este reconhecimento de fragilidade humana.
Nessa linha, sem pressas, agarro-me ao privilégio de tentar acertar o ponteiro dos acontecimentos ao sabor do meu timeline.
No autoinfligido desvio cronológico do curso da História, há duas matérias nas quais, mais que outras, sintonizo religiosamente a ação com o tempo. A primeira, acompanhar as aulas de quatro filhos, uns mais que outros, é certo. Faço-o, em silêncio. A segunda, dedicar-me ao meu trabalho, quase sempre na companhia de música, em dias que não distingo a segunda feira de um domingo. Quase só distingo um álbum de outro.
Aulas e trabalho vivem, obrigatoriamente, do real time. Não posso pegar no comando e voltar atrás. Tudo o resto, na medida do possível, tento apanhar a carruagem em andamento. Como por exemplo, a telescola que se estreou hoje. Dois dos meus filhos assistiram, em horas diferentes, mas eu, sem o dom da ubiquidade, não disse presente em direto. Amanhã, é outro dia.
Neste intermitente recuo de acontecimentos, escutei, com horas de atraso, o concerto “One World: Together At Home”. Sem surpresas, desfilei pelo propósito de muitos dos artistas em recuperarem um reportório, que grande parte dele serviu outros propósitos. Como um “Live Aid”, que acompanhei, na altura, em direto, ou lutas contra o racismo.
Convém recordar que muito deste caminho que se faz caminhando tendo-o feito, como disse atrás, na companhia de música. Muita dela, primariamente de forma intimista e egoísta. De headphones colados.
Mais que uma companheira de viagem, tem sido uma âncora. Através dela contenho alguma raiva interior. Frustração e apreensão. Serve também de tampão ao vai e vem de crianças, de um lado para o outro, descoordenadas nos horários escolares.
Através da música. Recuo no tempo. Recupero pessoas e espaços. Recordo-me de concertos de vida. De saídas noturnas. Atrevo-me a dar, através dela, alguns passos de dança com a minha mulher, embora não passe de um pé de chumbo. Falta-me o jeito, outras das minhas fragilidades, ao que acrescento a voz que não serve nem para um refrão. Danço e canto, por vezes, sem som, só com o som na minha cabeça. Na cozinha, na sala, à janela, pela casa ou nas escadas nas traseiras do prédio.
Inabilidades que em nada me importam ou afetam. Nem mesmo se vizinhos reparam ou se os filhos ficam especados a olhar, a rir, enquanto o pai projeta a cabeça de um lado para outro numa dança desconexa, acompanhada de pronúncia inglesa sem timbre certo. Provavelmente encontram uma estranha anormalidade nos comportamentos. Mas, também normalidade é algo que não estamos a viver.
Tenho saudades de ir a um concerto. De sair. De beber, dançar e cantar. De fazer o mesmo que faço em casa ao som dos comentários “não tens jeitinho nenhum”.
Partilho aqui cinco álbuns escutados hoje. Com direito a cançonetas e bailados. Se procura surpresas, não vai encontrar. Não houve filtro. Foi tudo aleatório à medida que pesquisava uma música e o spotify abria portas à compilação musical. Divirtam-se cada qual à sua maneira. Sem medos, nem vergonhas.
Playlist:
Stones Roses – "I wanna be adored "
U2 – "Joshua Tree remixed"
Radiohead – "Ok Computer"
The Verve - "Urban Hymns"
Kings of Convenience – "Riot on empty street"
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