Se a história nasce a partir dos atos e das palavras dos Homens, os testemunhos visuais e audiovisuais, as imagens, estáticas ou dinâmicas, jornais, fotografias, livros, jogos didáticos, aparelhos e todo o tipo de objetos podem ajudar a compreender e explicar o fio à meada dos acontecimentos num determinado arco temporal histórico.

É de olhos agarrado a objetos e imagens que carregam a história que navegamos por dois corredores em espaço aberto da exposição “Às Armas ou às Urnas - Povo, MFA e Forças Armadas: entre revolução e democracia (1974-1982)”, organizada pela Comissão Comemorativa dos 50 anos do 25 de Abril de 1974, patente no Museu Nacional de História Natural, em Lisboa, até 16 fevereiro de 2025.

À boleia da relação entre militares e civis, percorremos da Revolução dos Cravos à assinatura do contrato de adesão à então Comunidade Económica e Europeia (CEE).

Pelo meio, observamos a Constituinte, o “Verão Quente”, as eleições e alternância democrática, a extinção do Conselho da Revolução, eleição de Mário Soares como primeiro Presidente da República não militar e a Revisão Constitucional de 1982.

“Temos uma primeira parte (1974-1975) dedicada ao processo revolucionário nas suas diferentes dimensões e a segunda parte, período de 1976 a 1982, da constitucionalização da nova ordem até à extinção do Conselho da Revolução”, explica Maria Inácia Rezola, Comissária Executiva da Comissão dos 50 anos do 25 de Abril.

04-25-74

O SAPO24 juntou-se a uma visita guiada dos curadores e historiadores Bruno Cardoso Reis, David Castaño e Gonçalo Margato.

“A grande mais-valia da exposição é (mostrar) esta questão de alguns objetos originais que raramente são vistos”, avisa Bruno Cardoso Reis.

Os números garrafais 04-25-74, plasmados nas cores da bandeira nacional, verde, amarelo e encarnado, da autoria do artista António Viana, colocou-nos (e ao visitante) na casa de partida.

Tudo começa e dispara no 25 de Abril de 1974 e na obra Delacroix no 25 de Abril em Atenas, do artista Nikias Skapinakis, “que retrata a sua Grécia e Portugal”, conforme explica Maria Inácia Rezola, historiadora que vestiu a pele de cicerone da exposição.

À esquerda e à direita percorremos a história pendurada em painéis, retalhada em vitrines e visualizada nos dois videowalls que dividem os dois períodos cronológicos.

MFA: programa emendado à mão

Aos primeiros passos somos brindados com uma preciosidade histórica. “O (original) programa do MFA emendado à mão, as famosas emendas do próprio dia, nomeadamente do General Spínola que impõe uma série de alterações que têm a ver precisamente com a questão do Ultramar”, frisou Bruno Cardoso Reis.

Segundo o curador, “havia uma tendência que acaba por prevalecer de negociações e independência rápidas, mas o general Spínola representa uma tendência que defende um processo mais controlado e continua a sonhar com uma federação o que implicaria a continuação do esforço de guerra”.

No caminho percorrido entre “a demissão de Spínola até às eleições de Abril de 1975”, Gonçalo Margato chama a primeiro plano “a atualização dos cadernos eleitorais e o recenseamento, as famosas campanhas de dinamização cultural e sessões de esclarecimento”. Em resultado desta dinâmica, destaca “uma das fotografias mais icónicas das eleições, a fila para uma das urnas de voto em abril de 1975”, indica.

Por falar em fotografias, das muitas coladas nos painéis, Maria Inácia Rezola fixou-se num contraste entre duas. “Entre o 1 de Maio de 1974 e o 1 de Maio de 1975. Na primeira, temos o destaque dado aos dois líderes políticos recém-regressados no exílio, Mário Soares e Álvaro Cunhal. Na segunda, em 1975, Mário Soares, vencedor das eleições poucos dias antes, foi impedido de falar na tribuna, onde está o Presidente da República, o Primeiro-Ministro e o Chefe de Estado-Maior da Armada e isso prova que as coisas mudaram entre o 1 de Maio de 1974 e de 1975”, conclui.

Gonçalo Margato salta ainda entre “o guia prático das eleições, um panfleto dirigido aos imigrantes”, o “direito à habitação”, as “publicações do Boletim Informativo, principal órgão de comunicação da 5ª Divisão do MFA, responsável pelo patrocínio da iconografia que associamos ao processo revolucionário, os cartoons do João Abel Manda, o Vespeira e este cravo muito conhecido como símbolo do MFA”, e a divulgação da revolução “em bandas desenhadas” porque “muitos do público-alvo não conseguiam ler”, recorda ao legendar as imagens coladas nos painéis.

Cara de Soares e Cunhal em jogo e o tic tac das reuniões do Conselho de Revolução

O triângulo criado pelos curadores, MFA, partidos e povo, ganha vida nos corredores.

No MFA, “temos um gravador utilizado na Assembleia de Tancos, determinante no fim do Verão Quente”, gravador que “tinha pertencido a Supico Pinto e ao Movimento Nacional Feminino, utilizado durante o ano de 1975 nestas assembleias”, relata a Comissária Executiva das celebrações dos 50 anos do 25 de Abril.

Segundo elemento: os partidos. “Um jogo, teoricamente infantil, cubos tão populares à época, com imagens de Arnaldo de Matos, Mário Soares, Álvaro Cunhal e Isabel do Carmo, para as crianças se politizarem”, continua.

Finalmente, o povo. “Uma réplica da célebre moca de Rio Maior”, que simboliza os confrontos (físicos) do Verão Quente e que culminam no 25 de Novembro, “entre os defensores de uma legitimidade revolucionária e o lado mais conversador (agricultores de Rio Maior)”, cita David Castaño.

Um relógio utilizado para cronometrar as “enormes” intervenções nas reuniões do Conselho da Revolução é outros dos objetos-estrela.

“A partir de 76, instaurou-se uma nova regra, com a entrada de Ramalho Eanes como Presidente do Conselho da Revolução, a limitação do tempo de intervenção de cada conselheiro”, realça David Castaño.

“Este cronómetro era manobrado, entre outros, por Marco Júnior, o mais jovem membro do Conselho da Revolução, que controlava o tempo de cada intervenção para que as reuniões não fossem intermináveis”, recorda Maria Inácia Rezola.

Os acontecimentos sociais e políticos prosseguem em capítulos, mas seria os episódios de uma telenovela a ter a capacidade de congelar, por momentos, a ação política.

Gabriela, Cravo e Canela, a telenovela que parou o país e o parlamento

Um exemplar do livro Gabriela, Cravo e Canela, “remete para o enorme impacto de uma telenovela, a primeira grande telenovela brasileira que se torna popular na televisão portuguesa”, conta Cardoso Reis.

Um impacto que levou “à suspensão dos trabalhos da Assembleia para assistir ao último episódio e conta-se também que uma reunião entre Mário Soares e Álvaro Cunhal, em São Bento, estava toda a gente muito preocupada porque nunca mais acabava, alguém se atreveu a bater à porta e, na verdade, já tinha acabado e eles estavam a ver um episódio da telenovela”.

Dois enormes plasmas com imagens a preto e branco, de um lado, e a cores, do outro, fazem a passagem entre os dois grandes períodos, 1974-1975 e 1976-1982.

“São imagens de arquivos RTP, bastante conhecidas, mas para as gerações mais novas terem uma noção mais concreta do que era a maneira de vestir, toda essa dimensão estética também é importante”, atesta David Castaño.

O historiador destaca ainda a alternância de partidos no poder. “Procurámos valorizar esta questão da primeira alternância democrática, em 79 há umas eleições intercalares e quem vai vencer é a AD, depois com uma maioria absoluta e reconfirmada em 80. E, portanto, é um marco importantíssimo de que a democracia estava a funcionar, que o modelo desenhado em 76 estava a ter aplicação prática”.

A democracia está a funcionar e começa a abrir-se ao mundo, conforme nos apercebemos à medida que caminhamos para a saída da exposição e onde podemos observar a cara do presidente norte-americano, Jimmy Carter ao lado de figuras históricas portuguesas, como Francisco Sá Carneiro ou General Ramalho Eanes.

Presente ao longo dos painéis, é inevitável não falar de Descolonização. Um tema que “não é o foco”, mas “não pode ser ignorado”, diz Cardoso Reis ao chamar a atenção para um painel final, “a fotografia icónica, junto ao Padrão dos Descobrimentos (de Alfredo Cunha) das poucas coisas que as pessoas conseguiam trazer, mas que, apesar de tudo acumulado, tinha ali uma floresta de caixas, não é de caixotes”, particulariza.

Mário Soares e a CEE para o fim 

“O desafio dos curadores Bruno Cardoso Reis, David Castaño e Gonçalo Margados era pôr-nos perante a narrativa histórica do período de 74-82, mas é muito curioso ver as duas imagens que escolheram para encerrar esta história”, avisa Maria Inácia Rezola.

“Por um lado, 1985 a assinatura do Tratado de Adesão de Portugal à Comunidade Económica Europeia que vai permitir a abertura do novo ciclo. E depois, a tomada de posse de Mário Soares, o primeiro Presidente da República Civil desde os anos 20”, apontou. “Temos uma nova história que começa aqui e que eventualmente poderemos ter outra exposição sobre o tema”, antecipa.

De entrada gratuita, quem pretender uma visita guiada pelos curadores pode já marcar na sua agenda: 20 de outubro, 15 de dezembro, 12 de janeiro e 9 de fevereiro de 2025. A morar em Lisboa, está preparada para poder circular facilmente por todo o país e, portanto, a partir deste momento, estamos abertos a pedidos e propostas de escolas, autarquias, associações que tenham interesse em acolher esta exposição”, anunciou. “Daí a opção de serem painéis”, finalizou Maria Inácia Rezola.