O despacho de acusação, a que a Lusa teve acesso, considera indiciado nos autos do inquérito que "o governo do GES foi assumido de forma autocrática pelo arguido Ricardo Salgado" e que o banqueiro "associou a marca Espírito Santo ao seu ativo mais relevante, o BES, confundindo-a com este ao longo de anos no modo como publicamente apresentou esta realidade, para cuja imagem o próprio contribuiu determinantemente".

"Com esta realidade, Ricardo Salgado logrou apropriar-se de património de terceiros no âmbito do negócio financeiro do Grupo, onde fez circular dívida das entidades não financeiras, independentemente da legitimidade para o exercício dessa atividade, ou das condições patrimoniais destas empresas", acusam os procuradores do Departamento Central de Investigação e Ação Penal (DCIAP).

O MP imputa que o ex-presidente do BES Ricardo Salgado foi "o responsável por uma estrutura de governo da parte financeira do GES assente em conflito de interesses, em que o seu prevaleceu, e com organismos de controlo inoperantes, quer externos quer internos, a quem sonegou informação elementar sobre o modo como organizou o negócio bancário, e nele recrutou, a soldo, um conjunto de funcionários que foram posicionados para os seus desígnios criminosos".

Segundo a acusação, o GES apresentou-se publicamente imune às sucessivas crises financeiras, globais e nacionais, usando as suas entidades bancárias, e o negócio destas com os seus clientes, como fonte incessante e crescente de liquidez.

"Na realidade, pelo menos desde 2009, a holding de topo do GES, para o ramo financeiro e não financeiro, a ESI (Espírito Santo International), estava insolvente, como foi do conhecimento de um núcleo muito restrito de pessoas. Apurou-se, pelo menos, que José Castella, Francisco Machado da Cruz e elementos da empresa de contabilidade do GES domiciliada na Suíça sabiam os reais contornos da dimensão do problema, em valores de várias centenas de milhões de euros, e que em dezembro de 2013 era superior a 2,7 mil milhões de euros de capitais próprios negativos", diz a investigação.

Os autos indiciam, adianta o MP, que Ricardo Salgado arbitrou esta realidade com a "produção sistemática e sucessiva de demonstrações financeiras falsas", que foram divulgadas a acionistas, credores, auditores de empresas do GES, supervisores, nacionais e estrangeiros", em vez de suscitar a intervenção judicial para resolver a questão, que por essa via seria tornada pública.

"Assim, Ricardo Salgado conseguiu continuar a encontrar interessados em investir na ESI e assegurar o governo da área financeira do GES, onde aquela holding tinha posições de controlo", refere o MP, notando, em contraponto, que, nos termos da informação pública, a ESI apresentava capitais próprios positivos, sempre na ordem das centenas de milhões de euros.

No entender dos procuradores, o GES financeiro foi sendo "crescentemente contaminado com a venda de papel comercial e obtenção de empréstimos sem adesão ao valor cobrado nas transações, quer com clientes - que foram atraídos para estes investimentos pelo juro que lhes era prometido (cada vez menos comportável para as emitentes, como era do desconhecimento público), e porque confiavam na normalidade da atividade bancária", bem como na atuação de auditores e de supervisores, tudo associado a uma segurança forjada do nome Espírito Santo.

Entre outros pontos, o MP revela que Ricardo Salgado construiu na sua visão do GES, também, um ramo de atividade cuja pertença ocultou, na Suíça, que nomeou de EUROFIN e que logrou credenciar como gestora de ativos e como corretora.

"Conjuntamente com Amílcar Pires, com o departamento financeiro do BES (DFME) e com funcionários que posicionou na EUROFIN, Ricardo Salgado criou sob a administração da EUROFIN um conjunto de veículos cuja existência e atividade foi ocultada ao mercado, auditores e supervisores, que foram responsáveis por desviar dinheiro do negócio do BES – numa operativa ruinosa para o banco, na venda de dívida própria aos seus clientes – e destinado aos fins por si pretendidos: cobertura de perdas irrecuperáveis, manutenção de negócios inviáveis, e distribuição de dinheiro pelos que o coadjuvavam nos atos criminosos que eram praticados no seio do GES financeiro", diz o MP.

Os investigadores observam que o esquema de financiamento oculto da EUROFIN com o prejuízo do BES, aquando do pedido de auxílio externo de Portugal em 2011, assumiu "proporções ruinosas pela alteração das condições financeiras e escassez de liquidez no mercado, tornando cada vez mais oneroso o desvio inicial de verbas que, para não ser detetado, exigiu sucessivas emissões de dívida para serem colocadas no circuito fraudulento de captação de recursos do BES".

"No final de julho de 2014 esta prática havia causado prejuízos ao BES em valores que atingiram praticamente os 3.000 milhões de euros. Em 2013, pretendendo capturar liquidez fora do GES, designadamente no Grupo SEMAPA, liderado por Pedro Queiroz Pereira, numa tentativa de assumir controlo parcial deste Grupo, Ricardo Salgado originou um conflito que daria conhecimento ao líder de outra instituição financeira portuguesa, Fernando Ulrich, dos problemas de solvabilidade do GES", lembra o MP.

Segundo a acusação, a proporção dos problemas criados por Ricardo Salgado, mais do que um impacto na estrutura do capital do GES financeiro, teve consequências reputacionais com danos irresolúveis a nível da liquidez necessária ao exercício da atividade bancária, como aliás se demonstrou em julho de 2014.

"Recusando-se a assumir as consequências dos seus atos, Ricardo Salgado implementou um processo de ilusão a auditores e supervisores, fazendo crer a possibilidade de injeção de capital nas holdings de topo do Grupo não financeiro, o que não era verídico", diz o MP, alegando que Ricardo Salgado "minou todo o discurso com informação falsa, quer sobre os factos pretéritos que contribuíam para o estado do GES, quer sobre a implementação das decisões impostas para resolver ou minimizar os impactos dessa realidade".

Ricardo Salgado foi na terça-feira acusado de 65 crimes, incluindo associação criminosa, corrupção ativa no setor privado, burla qualificada, branqueamento de capitais e fraude fiscal, no processo BES/GES.

O ex-presidente do BES foi acusado de um crime de associação criminosa, em coautoria com outros 11 arguidos, incluindo os antigos administradores do BES Amílcar Pires e Isabel Almeida. Foi ainda acusado de infidelidade, manipulação de mercado, sete crimes de branqueamento de capitais e oito de falsificação.

O processo principal BES/GES agrega 242 inquéritos, abrangendo queixas de mais de 300 pessoas residentes em Portugal e no estrangeiro, e que teve por objeto a investigação de dados patrimoniais de um conjunto de empresas daquele grupo financeiro.