Durante a Revolução de Outubro de 1917, os bolcheviques derrubaram o governo provisório de Kerensky, que se formou durante a Revolução de Março do mesmo ano. Substituíram-no, então, com um governo soviético, liderando o nascimento da União Soviética.
Cem anos depois, o que sobra da Revolução Russa? Há muitas teorias. Há muitas ideias. A certeza é que nada ficou igual.
O SAPO24 falou com D. Manuel Clemente, Fernando Rosas, Francisco Louçã, Arcadiy Kulchinskiy e Nuno Garoupa.
D. Manuel Clemente, atual Cardeal-Patriarca de Lisboa.
As revoluções acontecem quando as situações são insustentáveis. Assim foi na Rússia em 1917, assolada pela guerra e a fome, com uma população maioritariamente pobre e pobríssima e com um regime anacrónico e insensível.
O grupo determinado que tomou conta do país veiculava uma ideologia de base marxista, tentando implanta-la no último país em que Marx a poderia prever. Com pouca e frágil burguesia e uma industrialização incipiente.
Fosse como fosse, o sistema impôs-se de forma radical e sem contemplações para qualquer resistência que aparecesse. E perdurou depois, cada vez mais drástico durante o estalinismo, especialmente para com os próprios dissidentes. A vitória compartilhada sobre a Alemanha em 1945 reforçou-o na cena mundial. Fora da Rússia, o ideário igualitário que propalava atraía e mobilizava opositores - assalariados, jovens, intelectuais... - de outros regimes, ditos burgueses e capitalistas, onde também não faltavam problemas sociais por resolver.
O que sobra de tal revolução é alguma coisa do ideal que empolgava muitos dos seus protagonistas. Também a desilusão quanto à forma que acabou por ter. E esperemos que o cuidado em fazer muito melhor no futuro, com mais respeito por cada pessoa humana, inultrapassável sempre.
Porque a religião era encarada como cobertura da situação existente, foi duramente fustigada na Rússia, tornando o país símbolo dos "sem Deus". Para os crentes e em especial os católicos, a manifestação sobrenatural de Fátima, nesse mesmo ano acontecida, tornou-se o polo espiritual oposto, e também o novo alento da resistência religiosa. E assim perdurou até ao fim dos anos oitenta.
Fernando Rosas é investigador do Instituto de História Contemporânea e professor catedrático jubilado da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa. É um dos coautores do livro A Revolução Russa 100 anos depois.
Revolução vem ao encontro das expectativas de paz, de pão, de terra existente na Rússia da altura, mas muito comuns ao mundo do trabalho, terrivelmente sacrificado pela Guerra Mundial e, nesse sentido, abre uma grande expectativa, abre uma corrente de revoluções por toda a Europa, com grande impacto também nos movimentos de libertação nacional na Ásia.
As conquistas imediatas mais importantes na Rússia bolchevista, na Rússia soviética, são a paz, apesar de isso ter um grande preço para o novo regime em termos de território e de riquezas naturais, que perderam com a paz de Brest-Litovsk.
Foi a terra, a reforma agrária, a divisão da terra da grande aristocracia fundiária pelo camponeses, e foi o pão, ou seja, a melhoria da situação de vida, os direitos dos trabalhadores, a liberdade de associação sindical e as conquistas que em termos de direitos sociais se obtiveram, mas que vão demorar tempo a se fazer sentir, porque, mal se toma o poder, a Rússia entra numa terrível e prolongada guerra civil, que dura de 1918 a 1922, só depois disso vai ser possível iniciar uma transformação social e económica profunda, que se vai traduzir na industrialização - ainda que isso, com o Estalinismo, tivesse um preço muito elevado, um preço em termos de política, em termos de sociedade - um preço que afasta o regime Estalinista daquilo que eram as esperanças iniciais da Revolução.
Para os privilegiados e da oligarquia perdeu-se muito, mas ganhou-se imenso para aquele que era o mundo dos camponeses, do trabalho, dos soldados, dos intelectuais. Ganhou-se um mundo novo e um mundo que nasceu com uma grande esperança.
O que ficou por cumprir foi a esperança inicial da Revolução. Foi a democracia de tipo novo que ela prometia, o poder dos sovietes - o soviete era a representação genuína das massas populares.
Esse poder com o Estalinismo é que degenerou num poder autocrático, num poder ditatorial, num poder sangrento. Portanto, apesar dos progressos materiais de grande importância que a União Soviética conhece, é uma sociedade ditatorial que em muito se afastou daquilo que eram as esperanças originais.
Foi uma revolução muito popular no movimento operário português, que era anarquista, anarcossindicalista, o que faz com que a criação de um partido comunista inspirado na revolução soviética e fomentado pela Internacional Comunista, que se cria em 1919, não venha, como na maioria dos países Europa, de cisões de esquerda nos partidos socialistas ou social-democratas, mas de uma cisão do próprio movimento anarquista, criando-se em 1919 a Federação Maximalista, era a tradução do bolchevista e eles traduziam como a revolução levada ao máximo, a Federação Maximalista, em 19, que tinha um jornal, o 'Bandeira Vermelha', e depois a criação do Partido Comunista Português em 1921.
Sobra essa grande esperança, essa grande mensagem de uma sociedade que possa criar uma democracia nova, que possa criar justiça social, que possa preencher os grandes objetivos emancipatórios que foram os objetivos da classe trabalhadora há 100 anos.
Francisco Louçã, professor de Economia do ISEG da Universidade de Lisboa. Foi coordenador do Bloco de Esquerda durante sete anos. É um dos coautores do livro A Revolução Russa 100 anos depois.
Com a Revolução terminou o império czarista e iniciou-se uma vaga de mobilização e de esperança das classes trabalhadoras no mundo inteiro.
As grandes conquistas foram o fim da guerra e o impacto internacional, que abalou as grandes potências económicas e políticas (levando à fracassada invasão da Rússia pela Inglaterra, França, Estados Unidos e Japão).
Todavia, ficou por cumprir a participação dos trabalhadores na gestão pública e a democratização da decisão política.
Em Portugal, teve um grande impacto. Houve a greve geral de 1918 e a formação do PCP em 1921.
O que sobra? A revolução foi destruída pelo estalinismo ao longo dos anos seguintes, culminando com a grande repressão dos anos 1930.
Arcadiy Kulchinskiy é russo e está em Portugal desde os 11 anos (tem 28). Mestre em Ciências da Comunicação pela Universidade Nova de Lisboa, é atualmente o responsável pelas funções de comunicação visual e design na Ordem dos Psicólogos.
A Revolução de Outubro teve um grande impacto na história não apenas russa, mas também de todo o mundo. A criação de um estado socialista numa altura de monarquias e elitismos, que colocasse no centro a classe operária e pusesse como o principal objetivo a visão marxista, serviu como o exemplo de que era possível criar um estado que valorizasse as pessoas, e deu forças a que nos outros países também surgissem, numa altura posterior, as revoluções, como é exemplo a revolução dos cravos em Portugal.
A Revolução de Outubro exemplificou a força que o povo unido tem para decidir e mudar o rumo da sua própria nação quando é motivado por uma ideologia que o eleva e valoriza. Isso traz todos os valores associados, como é exemplo o acesso à educação, os direitos enquanto cidadão e um progresso associado, pois um povo motivado e patriota da sua nação consegue fazer virtualmente tudo. Penso que esta é a sua principal conquista.
Por outro lado, quando se trata de política, as ideologias têm a tendência para denegrir e apagar o que não estiver de acordo com as visões que promovem, o que resulta no desaparecimento parcial ou na desvalorização da história de um país anterior à ideologia em vigor. Isso acontece constantemente, mas quando um regime dura 74 anos, o impacto é o maior. Isso reflete-se neste caso, na maneira como os países e as pessoas de leste, são vistas hoje por outras nações, ou seja, soviéticos. Podemos observar este fenómeno em Portugal com a ponte construída a mandato de António de Oliveira Salazar e que recebeu o seu nome, sendo posteriormente alterado.
Penso que a questão central aqui não é o que se perdeu, mas o que não se ganhou.
No caso da União Soviética, o que ficou por cumprir é a implementação do comunismo. Quando se trata da União Soviética, costuma-se dizer erradamente que era um país comunista, o que não é verdade. Até agora, ainda não houve comunismo em nenhum país. A União Soviética era uma união de países socialistas pró-comunistas, isto significa que o regime estava a caminhar para a ideologia marxista mas para isso acontecer, deviam passar, teoricamente, algumas gerações para formar uma mentalidade comunista, o que não se viu possível devido ao fator e à natureza humana.
Como tenho dito acima, a Revolução de Outubro teve impacto na história mundial, pois exemplificou o poder que o povo unido pode ter. Em Portugal, o impacto resultou na revolução de 25 de Abril, que fez sentido na altura em que aconteceu e que trouxe as características ao país e ao seu povo, positivas ou negativas (depende do ponto de vista), mas que formaram a sociedade em que vivemos hoje.
Sobra um legado que se propagou e ainda se propaga por todo o mundo, como um eco de uma mensagem da união e da coragem das pessoas que confrontaram e lutaram pelos seus direitos.
Ao longo das respostas eu tenho repetido que a revolução e a ideologia fez sentido na altura em que aconteceu. Eu vivo em Portugal há 16 anos e apenas posso refletir sobre realidade que aqui vivo e a imagem que tenho do meu país de origem, baseando-se na minha visão subjetiva do estado sóciopolítico atual.
A revolução de hoje deveria basear-se numa ideologia nova desagregada das visões de há mais de 100 anos, tanto socialista ou comunista, como capitalista ou democrata. Penso que ainda não foi criada uma ideologia do século XXI que pudesse incentivar nas pessoas uma razão de lutar para mudar o paradigma atual.
Hoje vivemos numa sociedade em que a ideologia marxista, pelo menos como é retratada, não faz sentido e não se consegue aplicar. Uma revolução de hoje em dia, antes de ser política, deveria de ser uma revolução de valores ético morais. A procura de hoje reflete na oferta de amanhã, isto é, as pessoas de hoje retratam a política no futuro e a sociedade lentamente caminha para um abismo de decadência ético moral.
Aquilo que preocupa hoje as pessoas será o programa político de partidos de amanhã. É impressionante por vezes ter uma conversa de cinco minutos com uma pessoa sobre temas que saiam da bolha de "conversas ocasionais", que se preocupa com os pseudo-liberalismos, e outro pó que se atira aos olhos que elevam o sentimento e instintos em vez de se preocupar com os factos. É assustador presenciar um fascismo psicológico em que uma pessoa tem mente aberta e é livre de opiniões e questionamento, mas apenas enquanto estas forem ao encontro do padrão de opiniões promovido.
No século XXI a política continua ser uma política de polos (amenizados, mas polos) com os padrões e ideais de há mais de 100 anos, em que quase que não existe um partido do centro que consiga ter uma estratégia que equilibre o benefício da sociedade e do capital. Continuamos a presenciar um espectáculo dialético constante, cujo único objetivo é sair seco da água ao atirar a responsabilidade dos problemas para os oponentes políticos.
Na política e na sociedade, as pessoas têm de trabalhar juntas, independentemente das ideologias, para um progresso social e político sóbrio e racional. Por isso é que defendo uma revolução ético moral que posteriormente dará origem à uma política positiva.
Nuno Garoupa é professor de Direito na Universidade do Texas A&M, nos Estados Unidos da América, desde 2015, e foi Presidente da Fundação Francisco Manuel dos Santos (2014-2016).
A Revolução introduziu um regime totalitário que subjugou uma parte da Humanidade durante quase 80 anos e ainda hoje escraviza países como a Coreia do Norte. Tal como o nazismo, o comunismo mudou a História da Humanidade, matando milhões de pessoas em nome de uma ideologia errada e desumana.
Conquista não houve nenhuma, pelo contrário. A revolução de 1917 substituiu um regime autoritário caduco (próprio do século XVIII) por uma ditadura totalitária e desumana (infelizmente própria do pensamento iliberal do século XX). Perdeu-se a chance, na Rússia e depois em muitos pontos do globo, de fazer a evolução do autoritarismo para a democracia liberal e capitalista com menos sofrimento, menos dor, menos mortos. Como fizemos em Portugal, por exemplo.
A ditadura comunista pensava que seria eterna. A última fase da evolução humana. Não foi. Fracassou, pois, no seu objetivo final.
Impactou Portugal porque o PCP teve uma influência importante desde a sua criação em 1921, quer no combate ao Estado Novo, quer na tentativa de implantar uma ditadura soviética em 1975, quer na vida democrática dos últimos 40 anos. Sem a revolução de 1917, provavelmente não haveria PCP, pelo menos nos moldes que conhecemos, uma vez que se tratou durante décadas do partido comunista mais amigo do estalinismo e da ortodoxia soviética na Europa Ocidental. Também, e principalmente por isso, a gerigonça só aconteceu em 2015, e não antes (como em França, Itália ou Espanha em 2004).
Sobram estados autoritários pelo mundo fora e principalmente na área geográfica da antiga URSS. Poucas repúblicas soviéticas vivem hoje em democracia plena.
Tal como o fascismo ou o nazismo, o comunismo hoje vive assombrado pelos milhões de pessoas que a sua ideologia matou. Nunca uma revolução hoje poderia ser como em 1917 porque sabemos agora os crimes contra a Humanidade cometidos pelo comunismo. Haverá uma pequena minoria que insiste em negar o passado, mas não passam de pequenos partidos, como no caso português.
Hoje, inevitavelmente, uma revolução como a de 1917 teria uma agenda muito mais próxima das preocupações do Bloco (questões de género, bem estar social, discriminação, etc) do que a agenda do PC ou de partidos maoistas precisamente porque o comunismo russo ou chinês têm uma pesada herança que lhes retirou grande parte da credibilidade a nível global.
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