As águas límpidas que Fernão de Magalhães encontrou quando aportou na Baía de Guanabara, em 13 de dezembro de 1519, aquando da sua viagem de circum-navegação ao serviço da coroa espanhola, deram lugar a águas atualmente poluídas, vítimas de más políticas praticadas ao longo dos últimos anos, explicou à agência Lusa Lise Sedrez, especialista em história ambiental.

"Esta é uma baía frágil neste momento. Anos de ocupação, mais concretamente no século XX, foram muito cruéis com a baía. Em termos de aterro, ela perdeu um terço do seu espelho de água. Ao longo do século XX ocorreram uma série de descargas de efluentes químicos, que tiveram impacto na sua biodiversidade", afirmou Lise, cuja tese de doutoramento teve como objeto precisamente a própria Baía de Guanabara.

"Além disso, uma falta de planeamento habitacional na Baía, no século XX, fez com que a população em seu redor não tenha tido, e não tenha hoje, sistemas de tratamento de esgoto. Então, uma boa parte do esgoto 'in natura' é ainda despejado diretamente na Baía", acrescentou a brasileira.

Alguns anos antes da paragem de Magalhães naquela baía oceânica, ela era descoberta pela expedição exploradora portuguesa, comandada pelo também navegador Gaspar de Lemos. Na ocasião, os lusitanos confundiram a baía com a foz de um grande rio, ao qual denominaram "Rio de Janeiro", por ter sido descoberto no mês de janeiro de 1502, e que hoje dá nome aquele estado brasileiro.

Porém, existe outra versão, também ela defendida por Lise Sedrez, que afirma que seria impossível que experientes marinheiros pudessem ter confundido as denominações dos lugares, e que na verdade, na época, não existia ainda a distinção entre a nomenclatura de rios e baías, sendo que os navegadores ao verem aquele grande corpo de água o denominaram de "Rio de Janeiro".

Quando Fernão de Magalhães aportou naquela reentrância costeira, poucos dias depois de ter atracado no Cabo de Santo Agostinho, no nordeste brasileiro, ela era habitada por indígenas, e o local pouco tinha a oferecer ao navegador português, segundo declarou Lise.

"Depois que Gaspar de Lemos passa pela Baía, ela não é muito procurada pelos portugueses, que tinham, à época, um maior interesse pelo nordeste do Brasil, e no agora estado da Bahia (...)Aqui, na Baía de Guanabara, havia uma população indígena muito grande, que ocupava aquilo a que se chama hoje "Ilha do Governador" -localizada no lado ocidental do interior da Baía",disse.

Aliás, Guanabara foi o nome atribuído àquela baía pelos povos nativos, que significava "o seio do mar", porque lhes dava sustento para viver, "como uma mãe", detalhou a historiadora.

"Então, Fernão de Magalhães passa por aqui, como passa numa série de outros lugares, mas aqui não tinha realmente nada, nem mesmo uma grande vila. É simplesmente um lugar de aguada, ou seja, um lugar para ele se abastecer, proteger a armada das intempéries, e talvez trocar algum mastro ou fazer alguma reparação nas naves, porque não há grandes coisas aqui", acrescentou a também professora.

A cidade do Rio Janeiro só seria fundada cerca de 50 anos depois da chegada dos portugueses, com uma colónia francesa denominada 'France Antarctique', e liderada pelo almirante Nicolas Villegaignon a invadir a Baía de Guanabara, e a ser vista como uma ameaça ao domínio português na região.

Em 1565, os lusitanos iniciam o processo de expulsão dos franceses, e fundam a vila de São Sebastião do Rio de Janeiro, atual padroeiro daquela cidade brasileira.

Contudo, e apesar de Fernão de Magalhães e a sua tripulação terem colocado a Baía de Guanabara, e o próprio Rio de Janeiro, no mapa da histórica viagem de circum-navegação, que celebra este mês 500 anos, a cidade brasileira que acolheu o navegador não terá eventos a celebrar o episódio, situação que Lise lamenta.

"Nesse caso Fernão de Magalhães teve muito azar. Nós estamos num momento peculiar, no mínimo, da história brasileira, e particularmente das universidades. Temos, neste momento, um novo governo da cidade do Rio de Janeiro que não é muito apegado a noções de história, e um Governo federal que está em aberto conflito com as universidades brasileiras", criticou Lise, referindo-se ao prefeito, Marcelo Crivella, e ao chefe de Estado, Jair Bolsonaro.

"Não estou informada de nenhuma celebração em particular (dos 500 anos da viagem de circum-navegação), como aconteceu com a celebração dos 450 anos da cidade, em 2015. Acho que se Fernão de Magalhães tivesse esperado mais uns quatro anos, seria mais celebrado o aniversário da sua viagem", ironizou a brasileira, acrescentando que lamenta que não haja celebrações dedicadas à efeméride.

Lise Sedrez, que tem doutoramento em História da América Latina pela Universidade norte-americana de 'Stanford' e leciona na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), acredita que o facto de os atuais Governos brasileiros - federal, estadual e municipal - não celebrarem determinados marcos históricos, mostra "desinteresse em pensar num Brasil grande".

"Acho que a falta de olhar para o passado, e de querer entender o que é o Brasil, e o que representam essas datas, é já um sinal de como os Governos estão a olhar para as Universidades e para a produção de conhecimento. A efemérides não são só meras celebrações, são oportunidades para a população pensar sobre a sua identidade, sobre os projetos de país que estamos a propor", defendeu.

"Quando essas efemérides passam sem serem notadas, mostram um definitivo desinteresse por esse pensar num Brasil grande. Acho que é um problema", frisou a professora em entrevista à agência Lusa, no alto do Morro Dona Marta, no Rio de Janeiro, com vista para a Baía de Guanabara.