“Senhor Bispo do Porto, São 4 da manhã. Ontem foi domingo de Páscoa e estou sem dormir depois de ler a sua entrevista em que afirma, com a maior das leviandades, que a Diocese do Porto não vai fazer nada em relação à pedofilia na Igreja, porque não é um assunto, comparando ao disparate que seria o Porto criar uma comissão para a queda de um meteorito. Não durmo depois de o ler, quando diz que até pode voltar a haver ‘asneiras’.”
É assim que começa a carta aberta que um homem vítima de violência sexual endereçou a D. Manuel Linda, na sequência da entrevista que o bispo do Porto deu à TSF no fim de semana de Páscoa.
Para o autor da carta, que respondeu ao SAPO24 por escrito por preferir manter-se no anonimato, as declarações do bispo do Porto demonstram que “apesar do trabalho meritório do Papa Francisco, continuam a existir pessoas com responsabilidades na hierarquia da Igreja que insistem em assobiar para o lado”.
Ângelo Fernandes, fundador e presidente da Quebrar o Silêncio, sublinha que o abuso sexual de crianças “não é uma asneira, é crime”. “Quando alguém classifica como asneiras esta violação grave dos Direitos Humanos está a desvalorizar e a minimizar o impacto que este trauma tem na vida das vítimas”, disse Ângelo Fernandes.
Confrontado com estas críticas, D. Manuel Linda explicou ao SAPO24, por escrito, que a “palavra é da linguagem coloquial” e que veio no seguimento do registo que se estava a usar na entrevista naquele momento.
Logo de seguida, o bispo afirmou, “para que não restem dúvidas”, que no seu ponto de vista “esses crimes são do mais indigno, baixo e abominável que existe, a negação dos sentimentos humanos e a queda no animalesco e, logicamente, a pura contradição com o que se diz acreditar no campo da fé”.
Ângelo Fernandes coloca a hipótese de ter sido “uma má escolha de palavras”, mas considera que, quando a preocupação com o tema existe, isso “deve ser visível no discurso” e que “a mensagem tem de ser clara”.
“Se acreditamos que violência sexual contra crianças é um crime e uma violação grave dos Direitos Humanos, então deve ser isso que dizemos”, reforça.
O silêncio e os processos de culpabilização
O presidente da Quebrar o Silêncio explica que as vítimas muitas vezes têm “crenças interiorizadas de que não merecem apoio ou de que há algo de errado com elas” e que “este tipo de posição [a entrevista do bispo do Porto] acaba por validar essas crenças”, ao desvalorizar os casos.
“Se já existe um contexto que é pouco recetivo às partilhas das vítimas, quando alguém reforça que são asneiras está a contribuir para este silêncio das vítimas”, acrescenta.
Ângelo Fernandes coloca a hipótese de que, por exemplo, “depois desta entrevista”, uma pessoa não sinta “segurança para se ir dirigir à diocese do Porto e partilhar que foi vítima de violência sexual”.
Entre as situações que a Quebrar o Silêncio acompanha, há homens que foram vítimas de violência sexual por membros da Igreja, e o presidente da organização conta que, nesses casos, a tendência é para que haja “um maior sentimento de culpa”.
Quando o abusador é visto como “uma pessoa de referência”, “que pratica o bem”, em quem a criança pode confiar, “existe por vezes esta transferência para a vítima de que foi culpada e que de alguma forma deturpou e seduziu um homem bom, honesto, casto”, explica.
O autor da carta aberta fala também das consequências “irreparáveis” do abuso que sofreu. Na carta, o autor revela que, aos 5 anos, num retiro para casais organizado pela Igreja, foi levado por um homem que o “despiu” e “violou”. Embora não saiba se o adulto era um elemento do clero, o autor da carta esclareceu ao SAPO24 que "era alguém em quem a Igreja confiou para estar com crianças naquele dia".
Para esta vítima, a vida tem sido marcada por “ansiedade, depressão, culpa, dificuldade de relação, necessidade de agradar os outros, medo”, para além de “viver com uma máscara constante”.
Os processos de culpabilização levam muitas vezes as vítimas a demorarem décadas até revelarem a situação de abuso que sofreram.
O bispo do Porto, na entrevista à TSF, refere que terá chegado à diocese um email com uma “insinuação” de um caso de abuso ocorrido há mais de 50 anos. D. Manuel Linda disse que pessoa foi convidada, por diversas vezes, a dirigir-se às instalações, no entanto esta nunca o chegou a fazer, pelo que concluíram que “deve ter sido fruto de uma imaginação”.
Ângelo Fernandes destaca a importância de garantir às vítimas “o direito de não dar a cara, de não dar o nome e de ter toda a confidencialidade”, uma vez que se trata de “situações complicadas, pessoais, íntimas, que são difíceis de gerir”.
“A própria Igreja tem de ter a capacidade de ouvir esses contributos nas condições de anonimato, especialmente numa primeira fase”, explica.
O Porto vai ou não avançar com a criação de uma comissão?
Sobre a necessidade de criação de uma comissão para proteção dos menores que sofreram abusos no contexto da Igreja, D. Manuel Linda afirmou na entrevista à TSF que tal “não se justifica” se for “para recolher queixas”, da mesma maneira que “ninguém cria uma comissão, por exemplo, para estudar os efeitos do impacto de um meteorito na cidade do Porto”.
A resposta é fundamentada pelo facto de “até ao momento”, para além do referido email, não ter existido nenhuma queixa no Porto, de acordo com o bispo.
No entanto, ao SAPO24, o bispo do Porto confirmou que “é óbvio que se criará” uma comissão, “se se chegar à conclusão de que pode ser útil” para fins de “prevenção e formação dos seminaristas e do clero”.
Já em Lisboa, o cardeal patriarca anunciou, no dia 12 de abril, a criação de uma Comissão para a Proteção de Menores, coordenada pelo bispo auxiliar do Patriarcado, D. Américo Aguiar, e na sua maioria composta por elementos que vêm de fora da Igreja.
Fazem parte da comissão o ex-procurador-geral da República José Souto de Moura, o ex-diretor nacional da PSP Francisco Maria Correia de Oliveira Pereira, o especialista em investigação criminal José Alberto Campos Braz, a psicóloga Rute Agulhas, o pedopsiquiatra Pedro Strecht Ribeiro, o ecónomo diocesano Álvaro Bizarro, o psiquiatra Vítor Viegas Cotovio e ainda Teresa Isabel de Almeida Figueiredo Canotilho.
Segundo uma notícia do Público do passado fim de semana, a diocese de Setúbal também vai avançar com a criação de uma comissão. Já Lamego, Santarém e o Funchal, à semelhança do Porto, dizem que não se justifica.
Outras seis dioceses ponderam criar comissões, mas a decisão só será tomada depois da assembleia plenária da Conferência Episcopal Portuguesa, que se realiza esta semana.
Os bispos estão reunidos em Fátima, entre segunda e quinta-feira, para discutir, entre outros assuntos, o encontro de fevereiro no Vaticano sobre a proteção de menores na Igreja, promovido pelo Papa Francisco.
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