Num país que conquistou como uma das bases culturais e políticas a liberdade religiosa é estranho ver-se à porta de uma Sinagoga polícias fardados, por mais amistosa que seja a recepção. Mas talvez esse seja um sinal do motivo que levou a Comunidade Israelita de Lisboa (CIL), em parceria com o Instituto Irwin Cotler para a Democracia, Direitos Humanos e Justiça (Universidade de Tel Aviv), a organizar uma conferência subordinada ao tema: “Antissemitismo: um combate sem tréguas e fronteiras que a todos convoca”.
Numa sala cheia, no fim da tarde de quarta-feira, o ponto de partida foi o de perceber como se pode combater o anti-semitismo. Os deputados Alexandre Poço (PSD), Pedro Delgado Alves (PS), Pedro Frazão (CH) e Rodrigo Saraiva (IL) concordaram que este é um tema crescente e os quatro, não sendo judeus, partilharam que já foram vítimas deste crime. Seja por participarem em eventos ligados ao estado de Israel, seja por se terem manifestado contra os ataques de 7 de outubro, ou por qualquer outro motivo. Independentemente da raíz o resultado é sempre o mesmo: desde insultos nas redes sociais, a serem chamados de “judeus” com o tom de quem profere um insulto.
Rodrigo Saraiva é o primeiro a falar da memória e da importância que essa tem para que a história não se repita. Lembra que o “Holocausto é algo impossível de romantizar” e assegura que essa história deve ser partilhada com as gerações mais novas “sem paninhos quentes”.
E se o crudescimento do anti-semitismo é um problema europeu, é-o também um problema português. E, segundo os deputados, a falta de memória e desinformação da história do judaísmo no país fazem com que fenómenos deste género encontrem caminho fértil para crescer. Rodrigo Saraiva acredita, por isso, que se devem “explicar as asneiras que Portugal fez com judeus. Explicar o que Portugal perdeu socialmente, culturalmente e, até, economicamente ao expulsar os judeus”.
Até porque o liberal tem uma certeza: “Quem fala de forma transparente tem sempre mais possibilidade de ganhar o combate da verdade.”
E, nesta realidade, a verdade - ou a falta dela - é essencial para se contar uma história e se perceber como se vive a história, e o futuro. A título de exemplo recorreu à manifestação pró-Palestina na celebração da fundação de Israel, à porta do Cinema São Jorge, em maio. E salientou que os manifestantes erguiam orgulhosos cartazes que diziam “from the River to the Sea”, frase que refere é "dita por extremistas dos dois lados. Não é boa para nenhum dos lados”
Também o deputado do PS, Pedro Delgado Alves, acredita na importância de “cultivar os lugares da memória da inquisição”. Que deixou raízes profundas na sociedade portuguesa até aos dias de hoje, mesmo sendo o judaísmo "a religião radicada há mais tempo em Portugal". Como exemplo lembrou a impossibilidade do Museu Judaico de Lisboa ter sido erigido na judiaria de Lisboa, “que era muito mais interessante do ponto de vista da memória”.
Resumindo que “ao fim do dia, o mais importante tem a ver com memória e educação. Estes dois eixos é que são de longo prazo e servem de armadura aos espaços de toxicidade de desinformação.”
Política vs Religião
A desinformação e a confusão entre temas políticos e religiosos foi um ponto partilhado pelos deputados do IL, PS e PSD como gatilho para o anti-semitismo.
Pedro Delgado Alves referiu-se a um “dos mais antigos e dos mais complexos fenómenos de sofisticação e exclusão. Da extrema direita à extrema esquerda.” E numa nota mais pessimista não vê soluções rápidas ou fáceis, uma vez que, por um lado o “debate público está envenenado pela falta de capacidade de nos darmos como seres humanos”. Por outro, pela falta de bases factuais para esse debate, onde se funde, e se confunde, “anti-sionismo e anti semitismo”. Com a idiossincrasia, refere, de o anti-semitismo viver “tanto no medo da inferioridade, como da superioridade”
Segundo o socialista, as confusões políticas e religiosas numa sociedade desinformada resultaram num fenómeno único. Ao contrário do que aconteceu com outros ataques terroristas nas últimas duas décadas, a seguir a 7 de outubro a condenação não foi una e veemente, mas sim “à boleia do conflito israelo-árabe” substituída imediatamente por um “sim, mas”.
Delgado Alves é peremptório, “podemos depois discutir se a reposta de Israel foi adequada. O combate ao anti-semitismo não tem nada a ver com o questionamento do estado de Israel.”
E insiste, “a compartimentalizaçao do debate é essencial”. Acrescentando que dizer-se que os terroristas de 7 de outubro faziam um movimento de auto-determinação é insultuoso para os ativistas e envenena a luta pela Palestina.
Mas sabe que se, por um lado o tema é muito mais premente, por outro “há muito maior dificuldade em abordá-lo do que havia no passado. Como é que conseguimos numa comunidade que não está informada trazer todas as nuances? Eu não tenho respostas mágicas.”
Alexandre Poço também interveio dizendo que não tinha a resposta única, ou a solução eficaz para o problema. Os deputados coincidem também na ideia de que o problema é complexo e de difícil resolução.
O deputado do PSD acredita que “provavelmente não estaríamos a ter esta discussão, nos moldes em que estamos a ter, se não fosse o conflito das últimas décadas.”. Conflito esse que trouxe a "confusão da divisão de fronteiras" a uma descriminação religiosa.
E se, tal como Rodrigo Saraiva, salienta a vantagem de se viver num país que não se pode dar ao luxo de “desbaratar a paz”, refere, à semelhança dos colegas de painel, os fenómenos de violência nas “redes sociais e na opinião publicada“.
E se, por um lado, “toda a gente tem muita pena do Holocausto”, por outro “assistimos - e bem - a um movimento de políticas de identidade de grupos que foram descriminados e sem expressão nos espaços públicos. Mas há uma identidade que nunca conta como minoria. Aqui há um combate a fazer. É uma minoria perseguida que não encontra espaço dentro de um movimento de identidade”, comentou referindo-se ao livro 'Os judeus não contam'.
A solução? Nenhuma magia, mas a palavra mágica parece ser “informação”. Para o social democrata a escola é “essencial”, numa altura em que é “difícil termos discussões no espaço público”. Principalmente, porque “temos que ter um sentido crítico do que é o anti-semitismo, anti-sionismo e saber separar isto do que pode ser uma crítica a um Estado, a um grupo político”.
E não terminou sem antes apresentar um mea culpa, “é mais fácil apontar os erros aqueles com quem não temos proximidade”. Referindo-se ao episódio com o carro onde seguiam os enviados especiais da RTP que foi alvejado por forças Israelitas ao entrar na cidade de Jenin. Este episódio fez com que o deputado, num discurso da AR, tenha dito que condenava o ataque depois do seu grupo parlamentar não ter votado a condenação.
Num debate onde a informação foi a palavra de ordem, este ponto deu origem a um momento quente com Pedro Frazão, do Chega, que interrompeu para dizer que o seu partido tinha retirado o voto de condenação por acreditar que os jornalistas da RTP não contavam a verdade. O deputado social democrata reiterou que não havia motivos para se acreditar nessa teoria.
Pedro Frazão trouxe a uma palestra com uma tónica apartidária a matriz do seu partido para justificar o seu anti-semitismo. “O Chega tem num lugar muito querido a questão de Israel. É o único partido que tem o apoio a Israel e a luta contra o anti-semitismo na sua matriz política”. Referiu-se a si como um órfão político para quem esta questão importou no momento de se juntar a um partido.
E justificou-o com uma questão pessoal, o facto da sua madrasta ser judia, descendente de refugiados polacos. Tendo aqui aderido também ao discurso da importância da memória, “eu cresci a ouvir a história do Holocausto”.
Como caminho de futuro Frazão refere - à semelhança do que os outros deputados também haviam feito - a adoção oficial do conceito anti-semitismo de acordo com a definição da Aliança Internacional para a Memória do Holocausto (IHRA).
E aproveitou para partilhar a questão que o seu partido fez ao Ministro dos Negócios Estrangeiros: porque é que Portugal está sem embaixador em Israel? E se tem noção da implicação que isso pode ter nas relações diplomáticas, mas também económicas, com Israel?
Pedro Delgado Alves respondeu, mais tarde, à ideia de único partido anti-semita na sua génese recorrendo a Hemingway.
“– Quem estará nas trincheiras ao teu lado?
– E isso importa?
– Mais do que a própria guerra.”
Acusou o Chega de falta de coerência. E referiu que um partido que se opõe por sistema ao fim do discurso de ódio, pratica a desinformação todos os dias, que é dúbio ou se mantém calado quando os colegas de partido proferem insultos anti-semitas não luta contra o anti-semitismo. E no que às trincheiras da batalha pela liberdade religiosa diz respeito, lembrou algumas posições do Chega.
Informação, informação, informação. Mas o que dizem os académicos?
O professor de estudos arábicos e islâmicos da Universidade de Tel Aviv, Uriya Shavit, que é também o presidente do Instituto Irwin Cotler, começou por referir que não obstante todos os problemas do mundo, “não antecipámos que em 2024 houvesse mais anti-semitismo do que em qualquer altura desde a Primeira Guerra”.
Continua, referindo que esse aumento já vinha a acontecer um pouco por todo o mundo mesmo antes dos acontecimentos de 7 de outubro, com algumas manifestações “dramáticas”. Contudo, salientou, Portugal é “exceção onde a comunidade judaica se sente segura”.
Justifica o crescimento deste ódio como sendo um fenómeno político. Com o fortalecimento da esquerda e da direita radicais, e a diminuição daquilo a que chamou a a oferta de “ismos” convencionais. Fazendo, por isso, com que haja “menos espaço para as pessoas desiludidas se encaixarem. Indo assim para os extremos”. Contudo, continuou, “não significa que todos os comunistas são anti-semitas, ou que todos os fascistas são anti-semitas. Mas eles sentem-se mais confortáveis ali”
Por outro lado, regressou ao tema central da noite: a desinformação.
Referindo os conspiracionistas, que “estão muito disponíveis para acreditar em explicações paralelas”. E segundo o que disse, o anti-semitismo é o arquétipo das teorias da conspiração. “Oferece uma explicação muito profunda acerca do que está mal no mundo” culpando os judeus por tudo.
E, por fim, apontou na direção das redes sociais onde a moderação e a responsabilização não existem. O grande “troféu dos anti-semitas”, assegura. “Um mundo onde não há editores. Para quem é que os anti-semitas podiam falar há 40 anos? Se enviassem um artigo anti-semita para um jornal, o editor não publicava.” Com a agravante, acrescentou, de que o algoritmo funciona para entregar mais conteúdo anti-semita a quem o procura.
Também Carl Yonker, diretor académico do Instituto Irwin Cotler, lembrou que "o ódio online não está só a atacar os judeus, é importante não divorciar o anti-semitismo de todo o ódio online".
"Mas quando falamos de ódio online não é apenas uma reação individual, há uma reação na sociedade que mina as liberdades e individualiza um grupo e fá-lo sentir menos cidadão ou capaz de pertencer. E isto tem implicações nas democracias à volta do mundo."
De modo mais enfático, Uriya Shavit referiu que “há atualmente apenas um país no mundo, que é membro das Nações Unidas e cuja existência é posta em causa. Não a sua política, ou o seu território. A sua existência. E não é a Coreia do Norte, Rússia ou o Irão. É Israel”. Comentando que não cessa de se surpreender com a facilidade com que tantos perguntam se Israel deve continuar a existir.
“Há um grande número de pessoas que não quer que Israel tenha direito à existência. E algumas pessoas juntaram a agenda anti-semita a essa agenda para desumanizarem judeus. Nao devemos ignorar a pergunta porque alguns países no mundo têm um problema com a ideia de que os judeus têm uma palavra a dizer. Talvez usem uma forma política diferente de dizer isto. Mas este é o problema. “
O caminho? O mesmo que foi assinalado pelos deputados, “uma combinação de sensibilização, educação e aplicação da lei”.
Shavit termina indo mais uma vez ao encontro do painel anterior.
“Criticar Israel é legítimo. A única coisa que não é legitima é questionar o direito de existência de Israel, ou culpar os judeus por qualquer ressentimento que as pessoas tenham em relação a Israel “
Dos lamentos às críticas
O encerramento da conferência ficou a cargo de Fernando Soares Loja, em representação do Presidente da Comissão de Liberdade Religiosa. Uma inflexão mais solene marcou o tom com que havia de falar.
Lamentou os tempos que justificam o encontro, e referiu-se ao anti-semitismo como sendo “um fenómeno único. Nenhum ódio é tão universal, nem nenhum ódio é tão profundo, os primeiros registos de anti-semitismo têm 3400 anos”.
E, num tom grave, lembrou que “houve judeus que não sabiam que eram judeus, mas os anti-semitismos descobriram-nos e mataram-nos”.
No fim de uma palestra que ficou marcada pela distinção entre as questões políticas e anti-semitismo, Soares Loja aproveitou o discurso para criticar Guterres e as Nações Unidas. O primeiro por ter afirmado que os ataques de 7 de outubro não tinham vindo do nada, e a instituição por considerar não ser “isenta ou credível”. A censura foi ainda alargada aos meios de comunicação social portugueses, por acreditar que espalham mentiras.
Também Portugal não escapou às críticas. O país “não se tem mostrado amigo de Israel nas Nações Unidas”, por ter votado a favor da resolução da ONU que segue o parecer do Tribunal Internacional de Justiça (TIJ) de julho, e que considerou que "a continuação da presença" israelita nesses territórios "é ilegal" e que Israel tem "obrigação de pôr fim a isso [...] o mais rápido possível".
Num discurso apaixonado terminou pedindo que os não judeus se unam aos judeus a denunciar ataques anti-semitas, "porque o anti-semitismo é um problema de todos".
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