Depois do golo que Éder marcou à França na final do Euro2016, naquela que foi a primeira vitória de Portugal em campeonatos europeus de futebol, o jogador atribuiu esse feito à sua mentora Susana Torres. Seria este o momento em que o coaching entraria na esfera mediática em Portugal. Desde então, começaram a surgir novos profissionais (coaches) que prometem fórmulas para o sucesso, quer no desempenho profissional ou de alto rendimento, como no intelectual.
A oferta cresce online com sessões que prometem mudar a vida, ultrapassar obstáculos e atingir metas profissionais. O menu é variado, as sessões podem ser presenciais, mas as que mais se encontram - depois de uma pesquisa no Google -, são sessões online de life coaching com pacotes que prometem “melhorar a sua imagem”, ajudar a encontrar “a carreira de sucesso”, a “perder peso” ou a “ter relacionamentos estáveis”.
Na internet, têm surgido programas para quase todos os problemas do dia a dia das pessoas, cada um com a sua especialidade: mental coaching, coaching de alto rendimento (de desempenho), coaching empresarial ou executivo, coaching de vida (life coaching). Um número infindável de variantes oferecido por um número crescente de “coaches” ( treinadores ou mentores).
Ao mesmo tempo que a oferta cresce, crescem também as queixas e os casos de fraude. Alguns desses casos chegaram ao tribunal, contudo há falta de organizações que regulem a atividade. As queixas, muitas delas, vão parar à Ordem dos Psicólogos.
Segundo os especialistas com quem o SAPO24 falou, há muita "farsa" e um "vazio legal" que deixa os profissionais de coaching no limbo entre o bom e o mau profissional, entre o trabalho honesto e o fraudulento e entre quem está devidamente habilitado para exercer a atividade e quem não está.
Quem pode exercer a atividade?
Nos últimos anos observou-se a tendência de muitos profissionais de sucesso se terem transformado em coaches nas suas áreas. Muitos são tão populares que têm milhares de seguidores nas redes sociais acabando por se tornar influencers, e, por isso, conseguem encher pavilhões com palestras onde tantas vezes prometem atingir o mesmo sucesso que eles (em cima do palco). Só que não será bem assim.
O SAPO24 conversou com o presidente do Conselho de Especialidade da Psicologia do Trabalho Social e das Organizações da Ordem dos Psicólogos. Especialista em coaching psicológico, o psicoterapeuta Jaime Ferreira da Silva não poupa críticas àqueles a que chama de “aprendizes de feiticeiro”.
“As pessoas que dizem que fazem coaching, sem terem um background em psicologia, são como eu costumo dizer 'aprendizes de feiticeiro', muitas vezes têm atração pelo palco, têm atrevimento e nalguns casos uma grande ausência de escrúpulos”, atira Jaime Ferreira da Silva. “Eu também posso dizer que sou médico da medicina mágica”, ironiza.
Quem oferece serviços de coach, sem estar devidamente habilitado, pode entrar em campos que não domina e causar danos maiores que a emenda. A barreira entre um e outro é bastante ténue.
Mas, para Maria Duarte Bello, coach de executivos há mais de 20 anos, a premissa está bem presente e separa as águas: “a grande diferença é que um psicólogo faz um diagnóstico e o coach não faz”, responde.
“Por exemplo, é muito comum as pessoas de uma certa idade dizerem ‘estou farto do meu trabalho e quero mudar de vida, mas não sei bem o que é que hei-de escolher’. Isto não é um problema de saúde mental”, assegura, “é uma questão de querer iniciar um novo projeto”, explica.
“Como é que nós ajudamos? A ver as muitas alternativas e até a criá-las, porque a pessoa precisa de estrutura, de orientação, de suporte, de ter um lugar de retaguarda”, descreve.
“Ou seja, o coaching é uma questão de orientação, não tem nada a ver com um diagnóstico de depressão ou de burnout. Pode haver, no conjunto. Mas aí, o coach deve imediatamente dizer à pessoa que não é do seu âmbito profissional e que deve procurar um profissional de saúde”, sublinha.
Jaime Ferreira da Silva discorda. “Como é que alguém, sendo contabilista ou programador informático, faz um curso de fim de semana, e é coach? Como é que diferencia que a pessoa está ansiosa, deprimida ou tem uma doença bipolar? Como é que alguém sabe se a pessoa é uma empreendedora dinâmica ou é uma pessoa com doença bipolar numa fase maníaca?”, questiona.
“O risco é esse, são pessoas que não têm qualquer background em psicologia, não estudaram neurofisiologia, não estudaram psicopatologia, não sabem. É a olho”, reage o psicólogo a completar 40 anos na área do coaching psicológico.
“Isto trata-se, efetivamente, de uma usurpação da profissão”, prossegue.
Vazio Legal
“Há um vazio legal” na atividade, diz o psicólogo. "Neste momento, qualquer pessoa pode afirmar-se como coach em Portugal sem estar devidamente habilitado. Eu não posso dizer que sou cardiologista sem ser médico, mas posso dizer que fiz um curso de medicina espiritual dos Andes. Não há legislação que impeça que eu me autodenomine assim”, compara Jaime Ferreira da Silva.
Contudo, o psicólogo lembra que já há legislação que impede que um coach, que não seja psicólogo, possa dizer que faz coaching psicológico. "Quando alguém escreve [no seu perfil] coaching psicológico, o utente sabe que essa pessoa tem um background em psicologia”, e acrescenta que “o life coaching [uma das práticas que tem recebido muitas queixas] é um rebranding fraudulento de uma prática que tem mais de 100 anos chamada psicoterapia”, nota o psicólogo.
A diferença entre coaching psicológico e coaching profissional
De acordo com Jaime Ferreira da Silva, “o coaching é um ato psicológico assente em teorias e modelos psicológicos. Está regulado desde os anos 1940 do século passado, pela APA - Associação Americana de Psicologia. Na altura chamava-se counseling: foi, digamos, o pai do coaching”, explica.
“É um ato psicológico, porque vai trabalhar com comportamentos, atitudes e mudança de comportamentos com comossões e emoções, isso é um core da psicologia”, enfatiza. "Portanto, o coaching é uma especialidade avançada da psicologia", acrescenta o psicoterapeuta.
"O coaching psicológico tem depois diferentes declinações. Pode ter uma declinação mais empresarial, que está direcionada para o treino de competências e ou o coaching direcionado para questões da vida das pessoas, que ajuda a tomada de decisões, ajuda a algum equilibiro nas relações familiares, treino de competências de planeamento, de tomada de decisão, de negociação. Isto é no que se refere a comportamentos, diz o especialista em coaching psicológico.
"Quando a pessoa começa a ter queixa clínica, não lhe apetece levantar-se de manhã, não tem energia, começa a ter ideação suícida, quando a pessoa não está na plena posse dos seus recursos, o ato psicológico tem que ganhar músculo, as teorias de suporte e os modelos são similares e então passamos do coaching psicológico para a psicoterapia", define o presidente do Conselho de Especialidade da Psicologia do Trabalho Social e das Organizações da Ordem dos Psicólogos. "A intervenção em coaching é tendencialmente mais breve, a psicoterapia é uma intervenção mais longa, mais clínica e por vezes nós, psicólogos, temos de trabalhar com psiquiatras", conclui.
Já Maria Duarte Bello advoga que “coaching significa treino. Ou seja, o coach (treinador ou mentor) procura desenvolver as pessoas para alcançar os seus objetivos”, afirma a especialista em coaching executivo.
“Quando fazemos coaching a uma pessoa, seja ela quem for, ela tem um objetivo a alcançar”, diz a mentora, acrescentando que “o coach não resolve problemas pontuais, mas ajuda a criar um futuro melhor para aquilo que a pessoa quer”, sublinha a coach que também é docente universitária na área do direito da comunicação.
Questionada se o coaching executivo faz consultoria, a especialista responde que o coach não faz consultoria, “porque não diz o que deve fazer. A consultoria diz”.
O coach “nunca deve dizer o que a pessoa há de fazer, porque a responsabilidade é sempre do cliente (coachee). O coach oferece perspetivas e caminhos diferentes, mas quem escolhe é o cliente. Cabe ao coachee a responsabilidade final pelas suas decisões e acções”, explica.
“Muitas vezes há coaches que também são mentores, como é o meu caso, e dada a experiência, podemos, neste caso, encaminhar. Isto é quando o coaching se alia ao mentoring", diz a especialista considerando a mentoria como a "transmissão de conhecimentos técnicos da experiência profissional" do mentor a outra pessoa (nova na carreira ou a precisar de orientação de alguém com mais experiência). "O coaching, por sua vez, é mais focado numa tarefa, numa mudança de atitude, com metas e ações precisas, contribuindo para o objetivo pretendido pelo indivíduo", explica.
Um dos maiores erros, diz a mentora, é alguém apresentar-se como coach desportivo ou business coach. "Coaching é coaching. O processo é sempre o mesmo", sublinha. "Até porque um coach profissional pode ser muito eficaz sem necessitar de conhecer o setor de atividade do cliente. No coaching há sempre um objetivo, uma meta final para atingir. Seja ela qual for. Se começar o coaching sem ter muito bem claro qual é o objetivo daquele processo é um grande erro”, alerta Maria Duarte Bello.
“Por isso é que não tem nada a ver com terapia, nada a ver. O coaching não tem nada a ver com isso, não tem nada a ver com psicologia, no sentido da Saúde Mental. Porque nós não tratamos a pessoa do ponto de vista clínico”, defende a mentora, que reconhece que nos últimos anos o coaching se tenha banalizado.
“Essa palavra começou a ser utilizada em tudo e em nada e a chamar tudo coaching: coaching de vendas, coaching disto e daquilo e daquele outro”.
“Isto teve a ver com a falta de emprego, em que as pessoas tiveram que se virar, e isto já tem uns anos. Não é de agora”, diz Maria Duarte Bello que descobriu o coaching em 2000. “Foi na Universidade Complutense de Madrid. Tirei as minhas formações em Espanha porque cá não havia”, recorda a docente, que se especializou em formação de executivos e é doutorada em Comunicação pela mesma universidade madrilena.
“Hoje em dia, há muitos cursos “com muitas certificações duvidosas, ou seja, houve aqui uma proliferação de que qualquer pessoa podia tirar um curso de coaching e ser coach”, acrescenta Maria Duarte Bello.
Certificações duvidosas
A oferta de cursos em coaching também tem aumentado em Portugal, no entanto, Jaime Ferreira da Silva levanta reservas para aquilo que chama de “formações de fim de semana”.
Os que não têm formação de base em Psicologia, “fazem cursos de fim de semana, dizem que são muito apaixonados. Fazem as formações em Inteligência Emocional ou PNL [Programação Neurolinguística], mas depois falta-lhes o background em psicologia para conseguirem teorizar sobre a prática. Se não temos conhecimento de suporte, como é que podemos fazer um bom diagnóstico?”, questiona.
Há poucas organizações com formação certificada em coaching no nosso país. Existem, contudo, organizações internacionais com representação cá. Mas o psicólogo não lhes reconhece mérito apelidando-as de “albergues espanhóis”, porque “desde que pague é membro” e tira um curso de curta duração.
Perigos de um mau coach
No que diz respeito aos riscos de uma má orientação por um mau coach, ambos reconhecem os perigos.
“Posso dizer que um mau coaching pode fazer muito mal a uma pessoa. Um bom coach é muito necessário. Uma má orientação pode até dar cabo da vida de uma pessoa”, avisa Maria Duarte Bello.
“Tirar um curso de coach ao fim de semana, em três dias, convenhamos que não é a mesma coisa do que o estudo de anos até porque nós temos que estar sempre, sempre a aprender”, continua. “Isto não é uma coisa que se saiba e que se faça, digo, conhecendo os meus pares (coaches)".
“Há uma série de outras pessoas que podem dizer que fazem coaching, mas não sei bem o que é que fazem, sei que há pessoas que tiraram cursos” e por essa razão, “o coaching não deve ser banalizado”, defende a coach. “No que diz respeito aos coaches que trabalham profissionalmente nas empresas, já não nos preocupamos com isso, porque ao fim de muitos anos, vemos o trigo a separar-se do joio”, constata.
Para Jaime Ferreira Silva tem sido uma missão sem fim. “Do ponto de vista do perigo de uma má utilização do coaching por não psicólogos no setor corporativo, há muito mais escrutínio”, reconhece. “Se o coach não psicólogo, não apresentar resultados, não vai ter os seus contratos renovados”, conclui o psicólogo, especializado em coaching psicológico e piscoterapia que agora transformaram em life coaching. Para o psicoterapeuta é aí que está o grande problema. No life coaching ou no “coaching aberto a todos”.
“Quando o coaching se abre à sociedade, na realidade há uma usurpação clara da profissão de psicólogo. Feita por não psicólogos. Normalmente associo essas pessoas aos cinco A’s, que enformam as atitudes e comportamentos desses não psicólogos, na realidade, são cinco perigos”, alerta, passando a explicar cada um dos A's.
"O primeiro A, é a apetência por mudar de profissão sem esforço. É tentador, faz-se um curso de fim de semana. Aprendem-se umas coisas de PNL (Programação Neuro-Linguística), de Inteligência Emocional para o jargão - para se ter discurso - e chega. Mas na realidade não chega. O segundo A, é a ausência de uma formação credenciada em psicologia, o terceiro é atrevimento, o quarto é atração pelo palco e por último, a ausência de escrúpulos", descreve. "Quando se juntam estas cinco dimensões tem-se um perigo na via pública. São pessoas que prometem curas rápidas".
Mas quando as coisas correm mal entre o coach e o coachee, muitas das queixas vão parar à Ordem dos Psicólogos.
“Todos os anos, recebo no meu consultório pessoas que foram burladas por estes indivíduos, acrescenta o psicólogo da Ordem dos Psicólogos e questiona “curar depressões em seis sessões? Curar uma fobia numa sessão? O discurso é o mesmo do populismo, que é prometer soluções fáceis para problemas complexos”, responde. “Neste caso com a agravante de ser direcionada para a saúde mental. Se a pessoa tiver pouca literacia sobre saúde psicológica, mais facilmente poderá ser enganada”, alerta.
E conclui, “como presidente do Conselho de Especialidade da Psicologia do Trabalho Social e das Organizações da Ordem dos Psicólogos, naturalmente que vamos fazendo sempre estas didáticas e isto é uma tarefa perpétua, no sentido de ir informando o público, em geral, dos perigos da escolha de uma pessoa sem formação em psicologia e com formação pós-graduada em psicoterapia ou em coaching para nos prestar ajuda psicológica sobretudo fora do setting das organizações”.
Como encontrar um bom coach?
“Diria que para mim, quem procura um coach profissional deve procurá-lo bem, deve tirar boas informações e então encetar esse caminho. Não deve fazê-lo de ânimo leve”, aconselha Maria Duarte Bello.
Já o psicoterapeuta recomenda a quem precisar deste tipo de ajuda deve procurar por serviços de psicologia e ir ao site da Ordem dos Psicólogos, onde poderá encontrar informação sobre coaching psicológico e consultar a lista de profissionais certificados e membros da Ordem.
"Essas pessoas têm um trajeto profissional e académico rastreável. No meu caso, por exemplo, foram cinco anos de licenciatura, um ano e meio de mestrado, seis anos de psicoterapia como paciente, foram cinco anos de formação didática para me tornar psicoterapeuta, foram mais de 100 horas de supervisão. Compare tudo isto com alguém que faz um curso de 50 ou de 100 horas. Estamos claramente perante uma farsa", conclui Jaime Ferreira da Silva.
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